Gente
PUBLICIDADE

"O real não está na saída, nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” Parafraseando Guimarães Rosa (1908-1967), a cantora Assucena, de 35 anos, quer ser vista e gritar ao mundo. Coloca-se na vida e nos palcos com uma voz cada vez mais potente sobre os momentos de transição que a atravessam. Esse é o tema do disco que coroa sua carreira solo, “Lusco-Fusco”, após o encerramento, em 2021, da banda As Baías — anteriormente, As Bahias e a Cozinha Mineira —, da qual fez parte durante seis anos ao lado da cantora Raquel Virgínia e do guitarrista Rafael Acerbi. “Esse disco significou muito para entender minha travessia. Fala sobre os afetos e o amor do ponto de vista de uma mulher trans. Me sinto mais à vontade e segura agora”, diz ela, entre um café e outro, durante entrevista em São Paulo, onde mora.

Com a banda, a cantora baiana conquistou um feito inédito. Foi a primeira mulher trans, ao lado de Raquel, a ser indicada duas vezes ao Grammy Latino. Em 2019 e 2020, os discos “Tarântula” e “Enquanto estamos distantes”, respectivamente, concorreram na categoria Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa. “Isso representou o reconhecimento de uma trajetória pessoal e coletiva árdua e bonita. Pessoas trans sempre produziram obras de arte e uma linguagem que, geralmente, estava nos espaços de marginalidade social. É histórico porque abre portas para a dignidade e a normalização dos nossos corpos”, celebra.

“Lusco-Fusco”, lançado no fim de setembro, com produção de Rafael Acerbi e do músico Pupillo e direção artística própria e da cantora Céu, será apresentado no festival Rock the Mountain, em Petrópolis, nos dias 4, 5, 11 e 12 de novembro. “Uma das coisas mais lindas do lusco-fusco, que é o momento de transição do dia para a noite e vice-versa, é sua paleta de cores. Tentei colocar gêneros musicais diversos no meu disco. Sou uma cantora romântica, dramática, visceral, então há luz e melancolia”, explica. O desejo latente por outros voos vinha aflorando, garante Assucena, antes mesmo do fim do grupo. O trio já andava, há tempos, de forma descompassada. “Temos que entender a hora de parar. Eu não estava mais apaixonada pelo trabalho, me diminuí na banda. Quando saí, não percebia minha fisionomia de artista”, conta.

Vestido Teodora Oshima, luvas Fernando Cozendey, meias Lupo e sapatos Zara — Foto: Maria Júlia Magalhães
Vestido Teodora Oshima, luvas Fernando Cozendey, meias Lupo e sapatos Zara — Foto: Maria Júlia Magalhães

Para se reencontrar, Assucena retornou às origens. Ainda em 2021, passou três meses em Vitória da Conquista, na Bahia, onde nasceu, e mergulhou na obra da cantora que a “pariu” como artista: a conterrânea Gal Costa (1945-2022). “Ela foi minha mestra e maior influência, com sensibilidade e beleza enormes. Gal mudou todos os meus planos”, brinca a cantora. Foi, então, dada a largada, com “Rio e também posso chorar”, uma série de shows em que cantava a musa tropicalista.

A cada apresentação, conectava-se ainda mais com suas convicções como artista, ao mesmo tempo em que explorava sua capacidade de transformação, uma característica nata, reconhecida pelo produtor Rafael Acerbi. “Nos conhecemos na faculdade. Somos grandes amigos e já moramos juntos. Quando a ouvi cantar, pela primeira vez, foi um espanto. Ela tem um timbre único e é impressionante ver sua evolução. Assim como Gal, é camaleônica”, compara. Tais características, acrescenta o pesquisador musical Marcelo Argôlo, autor do livro “Pop negro SSA: cenas musicais, cultura pop e negritude”, mostram o êxito da artista em dar “continuidade à nossa tradição de grandes cantoras”. E completa: “Sua voz e interpretação têm uma personalidade própria”.

Vestido Mônica Anjos — Foto: Maria Júlia Magalhães
Vestido Mônica Anjos — Foto: Maria Júlia Magalhães

Mas a arte não era a primeira opção de Assucena. Entre os planos “interrompidos” por Gal, estavam seguir a carreira acadêmica após concluir o curso de História, na USP. Foi no ambiente universitário que a baiana deu início ao processo de transição de gênero. “Meus pais tinham expectativas sobre mim, e tive a oportunidade de ir à faculdade. Já longe deles, transicionei mais tarde do que outras meninas, por volta dos 26 anos”, explica ela, sobre os privilégios em comparação à maioria das pessoas trans, que vivem quase sempre na marginalidade.

Assucena cresceu em uma família judia e tradicional, que não compreendia seus trejeitos femininos na infância e a vontade de desfilar pela casa de saia e salto alto ou cantar Whitney Houston a plenos pulmões. “Meu pai nunca lidou bem com isso. Ele queria que eu jogasse bola e ouvisse cantores homens”, relembra. Como estratégia de sobrevivência, obrigou-se a falar mais grosso e se portar “como um menino”. O que não a ajudou a escapar do bullying na escola. “Somos doutrinados a fazer isso. Era chamada de ‘mulherzinha’, os meninos batiam em mim.”

Blazer e calça Apt 03, brincos Ylla — Foto: Maria Júlia Magalhães
Blazer e calça Apt 03, brincos Ylla — Foto: Maria Júlia Magalhães

Seu refúgio para aplacar as dores foi a única irmã, a professora Ludmila Antunes, de 34 anos. “Fui como uma balança, que equilibrava a Assu de um lado e meus pais de outro”, descreve Ludmila. “Eu a ouvia e tentava compreendê-la. O momento de transição não é fácil para quem vive, mas também não é para a família.”

A aceitação veio mais rápida por parte da mãe. Com o pai, ficou quase dois anos sem conversar. “Ela tinha paciência e nunca forçou a barra. Meu pai sempre foi machista, mas, depois de muito diálogo e reencontros em festas de família, as coisas melhoraram e a relação entre eles passou a ser de respeito”, ressalta a irmã, mãe de dois filhos, Tarcis, de 7 anos, e Maria Alice, de 5, as grandes paixões de Assucena. Outra figura fundamental a dar apoio à cantora, e que pode ser surpreendente para muitos, foi a avó paterna, Luzia Araujo, de 77 anos. “Na casa dela, eu colocava roupas femininas, usava os saltos da minha tia. Ela ria, mas, ao mesmo tempo, pedia para eu parar, porque meus pais não iriam gostar”, relembra. Luzia também usou parte de um texto bíblico para chancelar a identidade da neta perante à família, dizendo que Deus não vê a aparência, mas olha o coração. “Com essa frase, ela me salvou e acolheu. Minha avó provou que o amor está acima de tudo.”

Vesido Teodora Oshima e brincos Ylla — Foto: Maria Júlia Magalhães
Vesido Teodora Oshima e brincos Ylla — Foto: Maria Júlia Magalhães

Na tradição judaica, sonhos são levados a sério. Assim, Assucena avisou aos pais que havia sonhado com um chamado para morar em São Paulo. “Criei essa história e falava disso aos poucos. Minhas feminilidades foram podadas, eu tinha de sair de Vitória da Conquista. Ficar lá era um suicídio simbólico, anularia a minha existência.” Ainda sobre a transição de gênero, a cantora pede para ressaltar um ponto que considera muito importante: a hormonização e a redesignação sexual das pessoas trans não devem ser compulsórias e estar atreladas ao processo. “Parece um caminho natural, mas não é. Pessoas trans precisam entender o significado dessas mudanças em suas vidas, se realmente querem isso ou não. Gênero nada tem a ver com hormônios e genitália”, pontua. Por enquanto, a cantora decidiu apenas pelo implante de silicone e a frontoplastia, cirurgia de feminização facial. Fará ambos em um futuro próximo.

Além de existir em um corpo que considera político, a forma como se define também o é. Por isso, Assucena se assume mulher trans e travesti. “A palavra travesti vem sendo ressignificada, porque era associada à marginalização do corpo trans. E nós não somos uma invenção, reivindicamos nossa existência”, afirma. Em suas canções, a baiana pleiteia não só a validação da própria identidade, mas também o amor, um dos sentimentos mais democráticos existentes, mas que, em sua história, oscilava entre revolta, dor e batalha. “Vivi o quase ter namorado, o quase ter beijado o menino por quem me apaixonei. A negação do afeto. E nunca aceitei esse lugar. Se todos podem amar, eu também quero”, afirma ela.

Vestido Guilherme Valente — Foto: Maria Júlia Magalhães
Vestido Guilherme Valente — Foto: Maria Júlia Magalhães

Pela primeira vez, Assucena conquistou esse direito. Seus olhos brilham ao falar sobre o namoro de quase três anos com um comerciante de 29. O casal se conheceu pela internet. “É a primeira vez que me relaciono com alguém de forma tão íntima. É alguém com quem sonho uma vida junto”, conta, empolgada. O parceiro também tem sido importante para que Assucena lide com as próprias inseguranças. “O corpo travesti tem muitas disforias. Eu era insegura sobre minha beleza, não ter seios ou uma vagina. Poderia ser um problema, já que ele só namorou mulheres cisgêneras. Mas ele me ajuda e é muito maduro.”

Em paralelo à carreira na música, Assucena estreou como atriz, em 2022, interpretando Medeia em “Mata teu pai, ópera-balada”, baseada na obra do poeta grego Eurípedes. Na adaptação da dramaturga Grace Passô, com direção de Inez Viana, ao invés da personagem-título matar os filhos para se vingar do marido, o algoz é o patriarcado. Pelo papel, foi indicada ao Prêmio Shell de Teatro 2023 como Melhor Atriz na seleção do júri de São Paulo. “Assucena é experiente e com muita bagagem, tem um processo de atuação quase autoral. Foi sua primeira peça, e é realmente um fenômeno”, elogia Inez. “Me desnudei. Foi uma experiência empoderadora e desafiadora”, diz a cantora. Sem deixar os planos de atuação de lado, a baiana prefere dar um passo de cada vez. Quer se firmar na música, rodando o Brasil e a América Latina com seus shows. Os outros sonhos, por enquanto, são bem tradicionais: “Quero formar uma família e ser mãe. Deve ser das coisas mais lindas. Ter um filho vai me educar, me ensinar como ser ou não ser”.

Mais recente Próxima Mãe italiana ganha na Justiça o direito de despejar seus dois filhos adultos de casa: 'Parasitas'
Mais do Globo

Vítimas foram sequestradas enquanto passavam temporada no país a trabalho

Vinculado à Al Qaeda, grupo jihadista do Níger difunde vídeo de 2 'reféns russos'

Nesta semana, Khalid Sheikh Muhammad concordou em assumir culpa por ataque, que deixou quase 3 mil mortos, para evitar condenação à pena morte

EUA anulam acordo judicial com acusado de ser autor intelectual dos ataques de 11 de Setembro de 2001 e voltam a considerar pena de morte

A pedido de Mano Menezes, tricolor inicia negociação por jogador de 22 anos de idade

Fluminense envia proposta pelo atacante Emiliano Gómez, do Boston River, vice-artilheiro do Campeonato Uruguaio

Meia foi eliminado da Olimpíada nesta sexta e é aguardado no Rio até domingo

Botafogo espera Almada de volta aos treinos na segunda e quer o argentino no jogo de volta contra o Bahia

Governo federal recorreu contra decisão que havia garantido compensação para quem ocupou funções de chefia

Tribunal suspende pagamento de 'penduricalho' com impacto bilionário para servidores do TCU

Até o momento as atletas têm maior participação nos resultados brasileiros em comparação aos Jogos de Tóqui-2020

Mulheres são responsáveis por cinco das sete medalhas do Brasil após uma semana de Jogos Olímpicos

Após show de stand-up em que comentou que era criticada por sua aparência, Punkie Johnson confirma que não estará na 50ª temporada do programa

Comediante que imita Kamala Harris 
deixa programa ‘Saturday Night Live’

Advogados do prefeito de São Paulo apontam 'artimanha' com objetivo eleitoral que atinge a honra do emedebista e chegaram a pedir exclusão de vídeos, mas depois recuaram

Nunes pede inquérito contra mulher que o acusa de envolvimento com esquema em creches

Brasileira será a sexta ginasta a participar da final do salto em Paris, enquanto a americana será a quarta

Olimpíadas 2024: Rebeca Andrade vai saltar depois de Simone Biles na final deste sábado em Paris

Fortuna do fundador da Amazon encolheu US$ 15,2 bilhões com o recuo de 8,8% dos papéis

Mais ricos do mundo perdem US$ 134 bilhões com queda das ações de tecnologia, liderados por Bezos