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Há, em nossa dramaturgia, uma geração de atrizes potentes que não apenas existem, mas persistem e resistem. São nomes como Iléa Ferraz, de 63 anos, Cyda Moreno, de 61, Maria Ceiça, de 58, e Vilma Melo, de 54. Artistas negras que estiveram em cena mesmo quando o Brasil ainda acreditava na democracia racial e a TV mostrava um país branco, distante do que somos. Mas, apesar da atuação delas, quando olho em retrospecto, é impossível não pensar num recorte pessoal: as protagonistas negras de novelas anteriores a mim foram Iolanda Braga (1941-2021) e Ruth de Souza (1921-2019), ainda na década de 1960.

Depois disso, há um hiato em que nomes como o quarteto da capa de ELA passou a retratar o verdadeiro significado da resiliência feminina negra nas artes, diante a falta de visibilidade. Para compreendermos isso, basta refletir sobre o que acontece com a geração de atrizes negras com mais de 50 anos no Brasil. Por que quase não as vemos na imprensa e na publicidade? Por que a mídia não joga luz sobre suas vidas, escolhas e trajetórias?

Vilma Melo: Atriz e professora de artes cênicas formada pela UNIRIO, tem entre os destaques no currículo o fato de ser a primeira atriz negra a vencer o Prêmio Shell de melhor atriz, em 2017, pelo espetáculo “Chica da Silva — o musical”. Além de enfileirar sucessos de crítica no teatro, ela é protagonista de “Encantado’s”, um hit de humor do Globoplay — Foto: Thiago Bruno
Vilma Melo: Atriz e professora de artes cênicas formada pela UNIRIO, tem entre os destaques no currículo o fato de ser a primeira atriz negra a vencer o Prêmio Shell de melhor atriz, em 2017, pelo espetáculo “Chica da Silva — o musical”. Além de enfileirar sucessos de crítica no teatro, ela é protagonista de “Encantado’s”, um hit de humor do Globoplay — Foto: Thiago Bruno

Saudamos e honramos, é verdade, Dona Ruth, Zezé Motta e Léa Garcia (1933-2023), atrizes que abriram os caminhos, enfrentaram um país em que mulheres negras eram impedidas até mesmo de sonhar. Contudo, insisto na pergunta: e as que vieram depois?

Comecei a trabalhar em novelas em 1995. Àquela altura, aos 16 anos, não havia protagonistas negras no ar, mas existia um grupo sobrevivente que me inspirava. Para que eu e um punhado de atrizes estivéssemos à frente dessas obras, mulheres negras incríveis e talentosas construíram esse caminho com trabalhos extraordinários, mas pouco mostrados e quase nada incensados. Cyda, Iléa, Maria Ceiça e Vilma são expoentes de uma geração que tentaram apagar. A seguir, elas refletem sobre como o Brasil as olhou — e tem olhado para elas.

Que carreira sonhavam quando se tornaram atrizes?

Cyda: Desde os 5 anos, queria ser artista. Mamãe alertava: “Minha filha, não tem lugar pra você onde você quer estar!”. Sofri muito racismo quando criança. Cresci querendo aparecer, queria um lugar que me desse visibilidade. Sentia um desejo muito grande de ser vista, ter voz e autonomia para evitar o apagamento pelo racismo. O teatro me deu essas ferramentas.

Vilma: Como menina preta, suburbana de Realengo, não me achava no direito de ter esse sonho. A minha mãe me disse: “Faz o que o seu coração pede. Você é muito nova, vai ter a chance de escolher que eu não tive”. Fui fazer artes cênicas. Mais tarde, compreendi que meu sonho era mudar o entorno que vivo por meio do teatro.

Iléa: Sempre quis ser atriz. Quando me perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia que desejava ser atriz, e isso causava espanto. Uma menina negra, retinta, atriz, ia fazer o quê?

Maria: Comecei fazendo teatro no Salão Paroquial da Igreja, mas não me imaginava atriz porque não éramos educadas para ocupar esse espaço. Nunca me disseram “sua voz é bonita, vá cantar!” ou “você pode ser atriz”. Então migrei, fiz escola técnica, fui para a engenharia, até que percebi que não era o que gostava. Fui estudar teatro já casada, com filho. Quase desisti várias vezes. Só tinha a Ruth e a Zezé como referência. Foi um caminho muito solitário e, até hoje, me vejo muito sozinha.

Iléa Ferraz: Com perfil multimídia, transita entre atuação, canto, literatura e artes visuais. Foi indicada ao Shell, na categoria de melhor atriz em 2003, com a peça “Nunca pensei que ia ver esse dia”. Na TV, atuou em produções de sucesso como “Xica da Silva” (TV Manchete), “A padroeira” e “Tenda dos Milagres” (ambas da TV Globo) — Foto: Thiago Bruno
Iléa Ferraz: Com perfil multimídia, transita entre atuação, canto, literatura e artes visuais. Foi indicada ao Shell, na categoria de melhor atriz em 2003, com a peça “Nunca pensei que ia ver esse dia”. Na TV, atuou em produções de sucesso como “Xica da Silva” (TV Manchete), “A padroeira” e “Tenda dos Milagres” (ambas da TV Globo) — Foto: Thiago Bruno

O mercado de arte não deu estabilidade durante muito tempo para vocês...

Cyda: Sim. É uma solidão, uma insegurança. Acabei de fazer a novela “Amor perfeito” (TV Globo), com uma personagem linda, mas você sai sem nenhuma confiança. Fiz “A padroeira” (TV Globo), em 2002, e só voltei a ter um contrato 21 anos depois.

Iléa: Uma das estratégias do racismo é nos invisibilizar e nos tirar a condição financeira. Uma dificuldade que impediu a continuidade de muitos trabalhos. Às vezes, precisávamos buscar outro ofício completamente diferente. Se perguntar a um artista jovem se ele se lembra de um ou dois trabalhos de Léa Garcia e Ruth de Souza, ele não vai se lembrar. Agora, se fizer a mesma pergunta em relação a atores brancos da mesma geração, as pessoas vão se lembrar. Sabe por quê? Porque eles tiveram visibilidade. Estavam ganhando dinheiro, se autoproduzindo. Isso fez com que algumas pessoas permanecessem em determinados lugares e outras sofressem um apagamento em vida.

Mesmo assim, nunca disseram: “Ah, desisto!”?

Cyda: Saí de Belo Horizonte e fui para São Paulo quando estava no auge, fiz viagens para a Europa, casei e vim para o Rio, para começar tudo de novo. Depois, fundei a Companhia em Black e Preto e, quando estava bombando, fiquei sem condições de ficar no Rio. Sempre que voltava para algum lugar, tinha que recomeçar.

Atriz, produtora cultural, pesquisadora de teatro negro, professora e mestre em ensino de artes cênicas pela UNIRIO, atuou em novelas como “Amor perfeito” e “A padroeira”, da TV Globo. Também produziu e protagonizou os espetáculos “Eu amarelo: Carolina Maria de Jesus”, “Luiza Mahin… eu ainda continuo aqui” (ambos indicados ao Shell) e “Ninas” — Foto: Thiago Bruno
Atriz, produtora cultural, pesquisadora de teatro negro, professora e mestre em ensino de artes cênicas pela UNIRIO, atuou em novelas como “Amor perfeito” e “A padroeira”, da TV Globo. Também produziu e protagonizou os espetáculos “Eu amarelo: Carolina Maria de Jesus”, “Luiza Mahin… eu ainda continuo aqui” (ambos indicados ao Shell) e “Ninas” — Foto: Thiago Bruno

Como acham que são vistas pelo mercado?

Maria: O mercado não nos vê. O etarismo com racismo inviabiliza a mulher preta madura.

Vilma: Já fiz espetáculo para mais de seis mil crianças e adolescentes no gogó. Quando ganhei o Prêmio Shell (em 2017), as meninas perguntavam: “É possível?”. É, mas em 29 edições (do prêmio) onde estavam a dona Ruth, a dona Chica Xavier e a dona Léa? Onde estavam a Iléa, Ceiça e Cyda? A gente sabe onde elas estavam. Minha primeira crítica dizia: “Vilma Melo iria muito longe, não fosse o fato de ser preta, o que é uma grande pena”. Preciso dizer mais?

Cyda: Preenchemos exatamente esse espaço entre os que estão chegando e a geração da Léa. Continuamos fazendo. Mesmo não ocupando como gostaríamos, a nossa arte estava lá. Agora, quem vai fazer as avós, as mulheres mais maduras?

Maria: Aí é que está, Cyda, não estão escrevendo (papéis) para nós. Continuamos lutando contra a invisibilidade. É como se não existíssemos.

Cyda: Para o audiovisual, continuamos invisíveis. Tenho carreira graças a outros subterfúgios que a arte me deu, como fazer meus espetáculos, trazer os personagens que acredito, a representatividade desses heróis. Se esperasse isso (do audiovisual), estaria completamente apagada.

Maria Ceiça: No ar como a Tia Marlene no remake de “Elas por elas”, na TV Globo, a atriz esteve no elenco de obras de sucesso do canal, como “Fera ferida” e “Por amor”. Além da TV, tem também grandes sucessos do cinema no currículo. “Orfeu”, de Cacá Diegues, e “Se eu fosse você”, de Daniel Filho, são dois exemplos — Foto: Thiago Bruno
Maria Ceiça: No ar como a Tia Marlene no remake de “Elas por elas”, na TV Globo, a atriz esteve no elenco de obras de sucesso do canal, como “Fera ferida” e “Por amor”. Além da TV, tem também grandes sucessos do cinema no currículo. “Orfeu”, de Cacá Diegues, e “Se eu fosse você”, de Daniel Filho, são dois exemplos — Foto: Thiago Bruno

Como se sentiam quando viam que havia papéis para atrizes da geração anterior ou posterior?

Maria: Se as cotas raciais não tivessem possibilitado o questionamento sobre as questões raciais, essa juventude também estaria apagada. A internet é a grande responsável por esse boom de atuação de gente jovem. Somos do meio.

Iléa: O racismo é muito eficaz em nos apagar para que a sociedade possa se manter como está. Quem tem privilégios segue com eles. E ainda tem o etarismo. Se as atrizes brancas começam a senti-lo quando estão com 50, 60, 70 anos, começamos a sentir isso aos 40. Gosto do termo velha, louvo a velhice porque acho bom envelhecer. Se você elimina a visibilidade, elimina a possibilidade de ser um espelho.

Vilma: Se você me pergunta onde estamos, a minha resposta é: não sei. Porque essa é uma pergunta que gostaria de fazer para a mídia. Neste momento, estou protagonizando uma série que acabou ganhando o coração de muita gente e se passa dentro e um supermercado (“Encantado’s”, no Globoplay). Mesmo assim, não fiz um merchan sequer. Se fizer uma busca no Google, não vai me encontrar. Nada disso é por acaso... Mas, apesar disso, o que me agrada é que essa galera que vem aí vê o espelhamento.

Atrizes posaram para ensaio exclusivo e foram entrevistadas por Taís Araujo — Foto: Thiago Bruno
Atrizes posaram para ensaio exclusivo e foram entrevistadas por Taís Araujo — Foto: Thiago Bruno

Após tanto apagamento, quais os planos de vocês para o futuro? Quais são os seus sonhos?

Maria: Vou produzir dois espetáculos de teatro e terminar o meu documentário, que comecei a filmar com o meu dinheiro. Já o meu sonho? Sou teimosa demais, quero atuar muito. Continuo sonhando que vou conseguir ser a atriz que penso que posso ser.

Cyda: Acabei de interpretar três ancestrais, incluindo a Nina Simone (1933-2003). Para vocês terem uma ideia, 15 dias antes de acabar, já não tinha mais ingresso. Meu sonho, então, é conseguir uma carreira à altura desse espetáculo. Quero fazer novela, estar no audiovisual, fazer um papel bacana. Até para me dar um pouco de respiro, porque ficamos cansadas de tanto lutar.

Iléa: Os meus planos são trabalhar bastante, ganhar dinheiro, realizar. No próximo ano, vou ser diretora assistente do espetáculo sobre o Martinho da Vila, com a direção do Miguel Falabella. Venho com um espetáculo infantil que dirigi junto com a Cintia Esperança e também como atriz num outro espetáculo, com outras atrizes negras. Sonho estar em um caminho de produção para que tenha uma visibilidade retumbante e que isso possa gerar verba para mim e para muita gente. Precisamos de mais dignidade financeira. As artes visuais e plásticas me fizeram não apenas sobreviver, mas resistir como artista.

Vilma: Estou fora do Brasil, mas, neste mês de novembro, tem um monte de coisas acontecendo, porque tudo o que fiz no último ano está ligado às pessoas pretas. Então, estão sendo lançadas séries e filmes, como “Amar é para os fortes” (Prime Video) e “União instável” (Netflix), e acho que “Encantado’s” (segunda temporada) também vai ser lançada pelo Globoplay. Em breve, vai ser lançado (na mesma plataforma) o filme “Ritmo de Natal”. No final do ano, volto a fazer os espetáculos. Enquanto isso, o meu sonho de vida é continuar trabalhando. Porque, quando você chega aos 50 anos, já começa a pensar: “Será que vai continuar tendo trabalho para mim?”.

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