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“A transexualidade é como uma rosa que a vida me entregou na infância e que ainda semeio, aos 37 anos recém-completados. Essa flor foi crescendo ao longo da minha adolescência na Granja Guarany, bairro da periferia de Teresópolis, Região Serrana do Rio, onde nasci, fui criada e moro até hoje. Senti que ela começou a criar raízes aos 11 anos, logo após ter perdido meu pai, José, em 1998. Ele se despediu para viver um dia comum e infartou. Atrasei um pouco o desabrochar da minha identidade de gênero para poupar minha mãe, Almerinda, que ficou um mês internada, em choque, por causa da morte do marido. Permaneci ‘no armário’ até a maioridade, pela nossa família.

Meu pai nunca soube que eu não era como as outras crianças. Ele serviu como suboficial das Marinhas de Guerra e Mercante, e já tinha sido transferido para a Reserva quando a fatalidade aconteceu. Tenho poucas memórias das vezes em que me levou para conhecer instalações militares e, até hoje, guardo uma ‘carteirinha’ da instituição em um dos dias em que estivemos lá. O documento é vitalício, mas inclui apenas o meu ‘nome morto’, que é como as pessoas trans chamam suas identificações anteriores à transição. Não há utilidade além da memória.

A retificação dos documentos foi a primeira batalha que travei no Judiciário. Levou oito anos, pois os cartórios ainda não alteravam nossos nomes e sexo sem que antes abríssemos processos (o modelo atual só foi estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal em 2018). O tempo de tramitação, por coincidência, foi semelhante ao que a minha mãe demorou para conquistar o direito de receber a pensão destinada às viúvas de militares. Essa ainda é a nossa segunda batalha nos tribunais.

'Sou a filha do meu pai que foi descoberta tardiamente': Stella encara a própria história enquanto enfrenta uma disputa diante do maior tribunal do país — Foto: Leo Martins/Ag. O Globo
'Sou a filha do meu pai que foi descoberta tardiamente': Stella encara a própria história enquanto enfrenta uma disputa diante do maior tribunal do país — Foto: Leo Martins/Ag. O Globo

Com dois filhos para continuar criando sozinha, minha mãe procurou um advogado que a ajudasse a receber uma ‘fatia’ do dinheiro a que os descendentes do meu pai teriam direito. Era um legado da sua carreira como militar: ele trabalhou para garantir esse amparo a nós. Além da nossa família, ele havia tido um primeiro casamento, do qual nasceram minhas duas irmãs mais velhas. Ambas são pensionistas, assim como a mãe delas — e todas radicalmente contrárias a qualquer nova divisão.

Na minha casa, os repasses só chegaram posteriormente, a mando da Justiça, que demorou a reconhecer a união estável dos meus pais. Minha mãe recebe até hoje, do Governo Federal, em parcelas mensais de R$ 2 mil. Eu e meu irmão, filhos da segunda união, éramos contemplados pelo benefício até os 21 anos. Depois, pelas regras da época, só seguiam atendidas, de maneira vitalícia, as filhas solteiras, do sexo feminino. É o meu caso.

Não há como saber de que maneira o meu pai reagiria se me conhecesse hoje. Ele sempre foi um homem culto e antenado. Gostava de ler, sobretudo os jornais aos domingos. Imagino, então, que, se estivesse vivo, atualizaria-se e aprenderia a lidar com os novos tempos. Infelizmente, só posso mesmo imaginar. A certeza que tenho é de que ele nunca aceitaria a própria família desamparada.

Inspirada pela insistência da minha mãe, decidi em 2021 que tentaria ser incluída entre as mulheres que recebem a pensão deixada pelo meu pai militar. Comecei pesquisando na internet por casos semelhantes. Encontrei o de uma mulher transexual que havia conseguido uma vitória (em 2011, no Rio Grande do Norte) e o de um homem transexual que, após a transição, abandonou o registro feminino e perdeu a pensão (em 2017, no Rio de Janeiro). Decidi, então, procurar a Marinha. Fui bem atendida após uma triagem e me recomendaram criar uma conta bancária, como se o benefício fosse ser pago. Nunca foi. O motivo? A transição de gênero.

Com a ajuda da Defensoria Pública, abri um processo na Justiça Federal de Teresópolis para questionar a recusa da Marinha. Após uma vitória em primeira instância, perdi na segunda. E isso me chateia: é como se me dessem o direito e, em seguida, tirassem. Até quem trabalhava me representando no caso perdeu a esperança. Procurei, então, a advogada Bianca Figueira dos Santos, mulher trans e especializada em Forças Armadas. Com a ajuda dela, meu caso passou a tramitar no STF recentemente. O desfecho virá de Brasília, onde nunca estive

Em abril, os ministros decidiram que a decisão relativa a mim terá repercussão geral. Ou seja: servirei como ‘norte’ para que juízes e desembargadores pelo país avaliem pedidos de pensão feitos por filhas transexuais de militares. É uma responsabilidade que multiplica a minha luta.

Histórias de pessoas trans costumam repetir a que eu tenho vivido. Hipocondríaca, minha mãe, sempre com um remédio para tudo, tentou me ‘salvar’ com a ajuda de psicólogo, padre, pastor, pai de santo e rezadeira. Na nossa vizinhança, onde me conhecem desde criança, ainda ouço comentários negativos. O tom é o mesmo inclusive diante de todas as portas que bati à procura de emprego. O preconceito me isolou do mercado formal e, hoje, preciso de renda.

'A prostituição me acolheu, assim como a muitas outras garotas trans', conta Stella, em meio à análise de seu caso pelo STF — Foto: Leo Martins/Ag. O Globo
'A prostituição me acolheu, assim como a muitas outras garotas trans', conta Stella, em meio à análise de seu caso pelo STF — Foto: Leo Martins/Ag. O Globo

Ao longo de 18 anos (metade da minha vida), a prostituição me acolheu, assim como a muitas garotas trans que, como eu, só tinham o próprio corpo como investimento. Trabalhavam na Esquina do Pecado, ponto da cidade em que éramos procuradas por trabalhadores, empresários, políticos e até líderes religiosos. A atividade é de risco, mas foi a única que consegui exercer. Não tenho o dom para os salões de beleza, onde muitas de nós trabalham. Cheguei a começar uma faculdade de Fisioterapia, mas também não encontrei vocação. Também me alistei na Marinha, como meu irmão, mas fui dispensada. Saindo da seleção, comprei minha primeira peruca, que rapidamente se pagou. O dinheiro da rua é rápido, mas acaba logo.

Nos últimos anos, perdi muitas ex-companheiras de trabalho. Elas ficaram doentes, se perderam nas drogas ou foram vítimas da violência. Algumas morreram nos bancos de carona, em acidentes causados por clientes alcoolizados. Ninguém tinha carteira assinada, férias ou plano de saúde. Eu mesma me vi obrigada a parar: o corpo já não aguentava mais. Fui acometida por uma trombose na perna esquerda e, então, abandonei os saltos altos. A prostituição também me abandonou. O mercado mudou, novas meninas chegaram e eu perdi espaço.

Algumas de nós desistem e ‘desmontam o circo’ — como chamamos quando a transição de gênero é desfeita. Outras, menos numerosas, encontram brechas nas barreiras que a sociedade, por meio do mercado de trabalho, nos impõe. Não consegui encontrar esse espaço estudando ou entregando currículos, é verdade. Mas tenho fé e certeza de que a Justiça, muitas vezes transgressora, vai me ajudar a prosseguir.”

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