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O romance entre a modelo Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans

A história de amor do casal quebra preconceitos e irradia cumplicidade
O casal Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans Foto: Cai Ramalho | Edição de moda larissa lucchese
O casal Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans Foto: Cai Ramalho | Edição de moda larissa lucchese

Tinha tudo para dar errado. O primeiro encontro presencial entre a modelo Lana Santucci e o body piercer Estevan Vicent teve como cenário um “hotel capenga”, próximo ao cruzamento da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, no Centro de São Paulo. “Pelas fotos, parecia limpo e simples. Mas o chuveiro jogava água para cima e dava choque. Tivemos que mudar de quarto três vezes”, recorda-se Lana. Ela, moradora da capital, e ele, de Itajaí, em Santa Catarina, puderam finalmente constatar, naquele início de outubro passado, o quão intenso seria o relacionamento iniciado semanas antes, pela internet.

O casal Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans Foto: Cai Ramalho | Edição de moda larissa lucchese
O casal Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans Foto: Cai Ramalho | Edição de moda larissa lucchese

Tinha tudo para dar certo. Bastaram poucas horas para que Lana, uma mulher trans, de 25 anos, e Estevan, um homem trans, de 26, ambos heterossexuais, se vissem completamente apaixonados. “Somos muito diferentes de uma pessoa cisgênero ( que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento ), respeitamos as questões dos nossos corpos. Fazemos isso em dobro”, comenta o rapaz. Lana continua: “Sabemos do que gostamos ou não. Temos esse cuidado que talvez não houvesse num relacionamento com uma pessoa cis. Não temos medo um do outro. Sabe aquela música da Rita Lee que diz ‘a gente faz amor por telepatia’? Nossa conexão é assim”.

Eles até tinham “dormido juntos” antes do encontro em São Paulo, mas havia uma distância de 600 quilômetros entre os seus respectivos travesseiros. “Passamos setembro inteiro conversando por chamada de vídeo e dormíamos com a câmera ligada”, conta Lana, sobre o fato de já existir certa intimidade entre os dois. Foi ela, aliás, quem começou o flerte, desde que passou a seguir o perfil de Estevan no Twitter. Interessada pelo rapaz tatuado, ela interagia com todas as suas postagens até que fisgou a atenção dele o suficiente para agendar um primeiro encontro virtual. “Um dia, ela falou que ia namorar comigo, e respondi: ‘Está doida? Lógico que não’. A gente mora longe”, diverte-se Estevan, em chamada de vídeo compartilhada com a companheira. “Começamos o nosso relacionamento porque ela quis. Afinal, não mando em nada aqui.”

Desde que essa história começou, Estevan nunca deixou de se surpreender com a modelo. “Na primeira vez em que me ligou, ficou chocado com a minha voz”, narra Lana. “Acho que esperava uma coisa menininha, delicadinha. E eu sou muito paulada, sou mulherona, né? Foi engraçado.” O segundo impacto veio na hora do encontro presencial, quando ele, que tem 1,62m, se viu diante da parceira de 1,83m. “Ao sair do carro, olhava para cima e via aquela mulher que não terminava”, descreve Estevan.

O casal Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans Foto: Cai Ramalho | Edição de moda larissa lucchese
O casal Lana Santucci, uma mulher trans, e o body piercer Estevan Vicent, um homens trans Foto: Cai Ramalho | Edição de moda larissa lucchese

Diferenças que eles apreciam e acham graça com a mesma intensidade com que assimilam as particularidades da existência de cada um. E aqui ambos fazem questão de falar sobre isso de modo mais íntimo, justamente para chamar atenção sobre a multiplicidade de corpos trans existentes. Lana não aguenta mais responder, entre outras coisas, que não há diferença entre transexual e travesti, algo que só diz respeito à maneira como cada pessoa prefere se identificar e nada tem a ver com cirurgias. “Eu, por exemplo, gosto de usar ‘travesti’, porque quero colocar essa palavra num lugar de privilégio. É assim que quero aparecer nas capas de revistas”, afirma. “Acho que venho um pouco para abrir portas para as minhas irmãs.”

Ela e Estevan também não estão interessados em fazer cirurgias de redesignação sexual. No caso da modelo, a transição, como ela queria, foi concluída há cerca cinco anos, juntamente com os tratamentos hormonais e a mudança de documentos. “Aprendi a entender o meu corpo enquanto mulher de pênis que sou. Precisamos naturalizar os corpos trans”, diz. O namorado, por sua vez, pensa somente em fazer a mastectomia. “A sociedade dita que, se você tem peito, é mulher. E isso acaba ficando na nossa cabeça de uma maneira que nos deixa muito mal. De resto, não tenho problema nenhum.”

A fala do rapaz diz respeito a tormentos impensáveis para uma pessoa cis, como uma simples ida ao toalete. “Às vezes, saio de casa e fico o dia inteiro me segurando para não ir ao banheiro, porque corro o risco de sofrer uma agressão”, ilustra. Mas ambos reiteram que a maneira como lidam com seus corpos traduz apenas algumas das possibilidades para transexuais. Afinal, como cita Estevan, ninguém é mais ou menos trans porque fez ou não a cirurgia de redesignação ou qualquer outro tipo de intervenção.

Filho de uma dona de casa e de um metalúrgico, Estevan tem quatro irmãos homens cis, três mais velhos e um mais novo, e diz ter encontrado acolhimento na família desde a infância, algo que considera um privilégio. “Quando vejo transexuais morrerem nas ruas, digo que se trata de uma segunda morte. A primeira se deu quando foram expulsos de casa”, afirma. Os pais do body piercer são evangélicos e, em um dado momento, tentaram instruí-lo a viver conforme as “normas bíblicas”. Porém, em função de dificuldades financeiras enfrentadas dentro de casa, o rapaz precisou trabalhar aos 15 anos, algo que fez sem abandonar os estudos. Conquistou, então, certa independência financeira ainda na adolescência. “Nessa época, passei a comprar as minhas próprias roupas e deixei de frequentar a igreja.”

Já Lana é filha de um advogado aposentado com uma dona de casa e tem dois irmãos mais velhos: um homem cis gay e uma mulher cis lésbica. “Minha família é toda LGBT”, observa. Assim como o namorado, teve todo o apoio quando iniciou a transição, por volta dos 20 anos. “Correu tudo bem, embora meus pais tenham mais de 60. Minha mãe me levou para comprar o meu primeiro sutiã”, conta, sobre a experiência vivenciada durante a faculdade de Moda, que começou a cursar aos 17. O mesmo acolhimento, ela diz, tem se desdobrado sobre o namoro. “Os pais dele me adoram, e os meus também o conhecem. As famílias, porém, ainda não se encontraram. Espero que aconteça logo.”

Apesar das origens diferentes, as histórias de Lana e Estevan voltam a se cruzar quando se recordam dos tempos de escola. Ambos relatam uma sequência de agressões vivenciada desde a educação infantil até o 3º ano do ensino médio. “Eu era um menino muito feminino. Os garotos me batiam, socavam o meu estômago, e nunca tive coragem de reagir. Fica essa violência dentro de nós. Acho que é por isso que tenho essa cara de brava. É como uma casca que criei”, reflete a modelo. O namorado, por sua vez, destaca que a frase “ai que saudade dos tempos de escola” jamais lhe soará familiar. “Nunca tive amigos. As meninas não queriam andar comigo, e os meninos, embora eu jogasse futebol com eles, me chamavam de ‘machorra’”, recorda-se. “Eu tinha hábito de usar gorros, e os garotos os pegavam e enchiam de cola ou jogavam no lixo. Também ameaçavam me bater.”

Conviver com essas agressões o fez criar um bloqueio na hora de fazer amizades, já que passou a ter dificuldade em confiar nas pessoas. Uma das poucas a conquistá-lo foi a gerente de loja Daniely Serralvo, amiga confidente e uma das maiores entusiastas do namoro com Lana. Segundo ela, acompanhar esse romance de perto é uma experiência inspiradora: “A luta deles por aceitação é diária e ainda tem a questão de morarem em estados diferentes. Eles me ensinam que amor é algo que precisamos estar dispostos a fazer dar certo”.

A distância é uma barreira a ser transposta sem ansiedade pelo casal, que consegue se ver a cada 15 dias. Afinal, Estevan ainda planeja cursar Nutrição e Lana tem a carreira em plena ebulição desde que foi “apadrinhada” por Alexandre Herchcovitch, ao participar do reality show com modelos trans “Born to Fashion”. “Ela me chamou atenção pela beleza única e pelo profissionalismo”, elogia o estilista. “Além disso, estuda e entende de moda. No dia da prova de roupa do último desfile da À La Garçonne que fez, ela me mostrou o look em que ficaria melhor.”

Recentemente, a modelo fez o primeiro casting para uma agência de Nova York, depois de já ter aparecido em campanhas de marcas como M.A.C., Vivara e John John, além de estampar páginas da Elle e da Vogue Portugal, só para citar alguns títulos. Estevan acompanha o voo da namorada com orgulho, enquanto torce para que o mesmo aconteça com mais pessoas trans. A empregabilidade, na opinião dele, é um dos pontos mais sensíveis para essa população. “Mandamos currículos e nos ignoram. As mesmas pessoas que nos acusam de não querermos trabalhar são aquelas que não nos dão oportunidades”, desabafa.

Diante de futuros promissores, os planos para construir uma família com filhos já despontam no horizonte, e Estevan cogita gerar o bebê. “Infelizmente, o atendimento ginecológico para homens trans é muito difícil, porque vários médicos se recusam a nos receber. Mas essa é uma ideia sobre a qual estou me adaptando. Quero que o nosso filho seja feito com o nosso amor. Como temos essa possibilidade, por nós dois sermos trans, acho que seria muito legal”, diz. Mas não estaria cedo para esse tipo projeto? “Parece que eu conheço a Lana há dez anos”, ele responde. Não há como duvidar.