Exclusivo para Assinantes
Ela Gente

Premiados entre os negros mais influentes do mundo, Érico Brás e Kenia Maria unem amor e ativismo

Ator e escritora se conheceram no Rio e compartilham trajetória na militância e nas artes
Kenia e Érico, ambos de looks totais Gucci Foto: Thiago Bruno
Kenia e Érico, ambos de looks totais Gucci Foto: Thiago Bruno

É no cruzamento das ruas Buenos Aires e da Quitanda que essa história começa. Foi lá, no coração do Rio, que o ator Érico Brás e a escritora Kenia Maria se encontraram pela primeira vez. Eram 7 de agosto de 2010 e, como se recorda Érico, Kenia vinha atravessando a rua e ele, encantado pela beleza daquela mulher, teve a sensação de que ela o olhava com curiosidade de fã (algo que ela nega), já que o ator acabara de experimentar o gosto do sucesso com o filme “Ó paí, ó” (2007).

— Disse a ela: “você é linda” — lembra Érico. — Kenia disse que me conhecia do cinema e perguntou o que eu fazia aqui na cidade. Respondi que estava em cartaz no teatro com “Orfeu” e a convidei para assistir. Também pedi seu telefone, mas não tinha onde anotar. Gravei os oito números na memória.

Dois anos depois, eles começaram a namorar. Oito mais tarde, entraram na lista 100 Negros Mais Influentes do Mundo, celebrados numa cerimônia realizada no mês passado, em Nova York, pela organização mundial Most Influential People of African Descent (Mipad). Junto a eles, o protagonista de “Pantera Negra”, Chadwick Boseman, a duquesa de Sussex Meghan Markle e o neto de Nelson Mandela, Nbaba Mandela, engrossavam o caldo dos nomes mencionados. E o casal ainda desempenha funções distintas na Organização das Nações Unidas (ONU).

O que aconteceu no Centro do Rio há oito anos foi um autêntico encontro de almas. As histórias de vida de Érico e Kenia mostram como a sintonia entre os dois começou a ser alinhada desde que eles deram seus primeiros passos. Nascida em Del Castilho, Kenia conta ter sido criada em meio a uma família com os dois pés fincados nas causas sociais.

— Meu avô era do Sindicato dos Ferroviários e esteve muito envolvido com reivindicações trabalhistas na década de 1960. Também tive uma educação com a cultura africana sempre muito presente, para que crescesse com autoestima. Passei longe de alisamentos capilares, vivi sem TV em casa e, aos 14, minha mãe me colocou para fazer dança afro. Tudo isso me ajudou a ser uma militante desde muito cedo — conta ela, que entrou de vez para a linha de frente do ativismo depois da chacina de Vigário Geral, em 1993, quando 21 pessoas foram assassinadas. — Tinha 18 anos e conheci algumas pessoas que me levaram para fazer um trabalho social com a dança na comunidade.

Kenia usa Salvatore Ferragamo, Cavendish, anel, brinco e pulseiras, todos Rajasthan, sandálias Schutz e cinto Loja Três. Érico veste jaqueta, camisa e calça, todos Oficina Reserva, camiseta Hugo Boss, tênis AD e anel Gucci Foto: Thiago Bruno | Edição de moda: Patricia Tremblais | Beleza: Maria Paula Mapo | Produção de moda: Lucas Bueno | Produção executiva: Matheus Martins | Assistente de fotografia: Leonardo Sombra | Tratamento de imagem: Eddie Mendes | Agradecimentos: CCBB
Kenia usa Salvatore Ferragamo, Cavendish, anel, brinco e pulseiras, todos Rajasthan, sandálias Schutz e cinto Loja Três. Érico veste jaqueta, camisa e calça, todos Oficina Reserva, camiseta Hugo Boss, tênis AD e anel Gucci Foto: Thiago Bruno | Edição de moda: Patricia Tremblais | Beleza: Maria Paula Mapo | Produção de moda: Lucas Bueno | Produção executiva: Matheus Martins | Assistente de fotografia: Leonardo Sombra | Tratamento de imagem: Eddie Mendes | Agradecimentos: CCBB

Enquanto isso, no subúrbio de Salvador, Érico seguia com a construção do que define ser um “ator-cidadão”, entregando-se à ficção sem perder a realidade de vista. O primeiro contato com a profissão foi aos 8 anos, por meio de um grupo de teatro da igreja frequentada pela mãe, uma das maiores entusiastas de sua carreira. “Se você quer fazer teatro, é porque você precisa”, disse ela, certa vez.

— Nesse período, tive o apoio de um padre chamado Ricardo, que também me incentivou muito. Ele me botou para ler livros, ver vídeos e também me mostrou a primeira revista Raça, dizendo: “olha como vocês são bonitos e também podem estar nesses lugares” — lembra Érico.

Era um caminho sem volta. O jovem cresceu e virou professor de Artes Cênicas em escolas públicas, depois de entrar para o Bando de Teatro Olodum. Na época, o grupo se instalou no Teatro Vila Velha, no Centro de Salvador, região historicamente dominada pela elite — uma experiência que se revelou muito simbólica para o ator.

— O Vila Velha abriu as portas, na década de 1990, para um grupo de teatro que tinha consciência da falta de negros nos palcos, porque o Brasil é racista e acha que os negros não conseguem encenar Shakespeare, e na plateia, já que o teatro brasileiro é excludente. As pessoas dizem: “vocês não gostam de teatro”. Mas como um cara que ganha um salário mínimo vai pagar para uma família de quatro pessoas ir a um espetáculo no fim de semana com ingresso a R$ 150? — questiona o ator.

Kenia usa terno Eva, camisa Animale, anel Rajasthan e brincos Metally. Érico usa jaqueta Osklen, camisa Foxton, calça Reserva e tênis Belchior Foto: Thiago Bruno
Kenia usa terno Eva, camisa Animale, anel Rajasthan e brincos Metally. Érico usa jaqueta Osklen, camisa Foxton, calça Reserva e tênis Belchior Foto: Thiago Bruno

Graças ao trabalho no teatro, Érico foi escalado para o elenco de “Ó paí, ó” que, por sua vez, lhe rendeu o convite para a tal montagem de “Orfeu” no Rio, assinada por Aderbal Freire Filho. Ao terminar a temporada, ele se sentiu totalmente conectado à cidade e não quis voltar para a Salvador. Todos os caminhos apontavam para a esquina da Buenos Aires e da Quitanda naqueles 7 de agosto de 2010.

Foi no candomblé que Érico e Kenia consolidaram essa história. Levada pelo companheiro aos terreiros, ela perdeu o “medo” dos rituais e entendeu o quão profundo era o que se passava lá dentro, assim como a conexão entre os dois.

— Mesmo criada por babalorixás, tinha medo da religião, e ele me trouxe um novo olhar, mostrando como seria importante receber essa herança espiritual — diz Kenia. — A história da escravidão não foi reparada, e não tenho como saber quem foram meus avós, por exemplo. Também não sei se a minha família e a do Érico já se cruzaram. Mas o candomblé é um lugar de resgate, em que toda a nossa história é passada através da oralidade. Dentro do terreiro, somos todos irmãos.

Camisa e brincos, ambos NK Store Foto: Thiago Bruno
Camisa e brincos, ambos NK Store Foto: Thiago Bruno

Numa cerimônia em Salvador, os dois viveram uma espécie de retiro espiritual, em que tiveram seus corpos purificados com ervas sagradas e receberam os cuidados de homens e mulheres do terreiro. Érico conta que, por meio da religião, eles compreenderam que sua missão no mundo seria muito mais frutífera se estivessem juntos. Kenia se descobriu Ialorixá e Érico, Moba de Xangô. E, se ele é de Xangô e ela, de Oxum, há aí uma uma bela coincidência.

— Na história dos africanos, esses dois foram casados a vida inteira — destaca o ator. — O jeito como entendemos nossa ancestralidade e nosso lugar no Brasil como possíveis herdeiros de tronos africanos faz de nós duas pessoas que conseguem pensar juntas, discordar e formar uma família.

A família, aliás, é grande. Kenia tem um casal de filhos, fruto de outro relacionamento, e Érico, uma filha, que mora em Salvador. Novos herdeiros não estão nos planos.

— Como sou mãe de santo, serei eterna mãe — diz Kenia.

Érico usa trench coat Burberry, camisa e gravata, ambos Salvatore Ferragamo, calça Redley, sapatos Mr. Cat. e boina Belchior. Kenia veste tricô Animale, chemise Angela Brito Brand, saia Loja Três sapatos Melissa por A lá Garçonne e óculos Toty Lupas Foto: Thiago Bruno
Érico usa trench coat Burberry, camisa e gravata, ambos Salvatore Ferragamo, calça Redley, sapatos Mr. Cat. e boina Belchior. Kenia veste tricô Animale, chemise Angela Brito Brand, saia Loja Três sapatos Melissa por A lá Garçonne e óculos Toty Lupas Foto: Thiago Bruno

Por trás do reconhecimento celebrado em Nova York, estão dois profissionais que jamais dissociam seus ofícios da luta pela igualdade racial. Kenia já escreveu dois livros infantis, “Flechinha, o rei da floresta” (Male Mirim) e “Lindas águas — O mundo da menina rainha” (Uirapuru), este em parceria com o companheiro, e se prepara para lançar outros títulos, motivada pela lei que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas.

— Os livros didáticos sempre apresentam o negro da mesma forma, com as mãos acorrentadas, e o branco com a caneta na mão — critica ela. — Isso é uma violência. A gente precisa ter a nossa história contada da maneira correta não só para os negros, como também para os brancos, para que não tenhamos mais situações como a que viralizou há alguns dias, em que uma mãe fantasiou seu filho de escravo.

Em breve, Kenia vai retomar a produção da websérie “Tá bom pra você”, protagonizada por negros, e a peça “A invenção da criação”, escrita e interpretada por ela, com a presença de Érico em cena. Além disso, ela se prepara para dirigir um documentário sobre Marielle Franco, a convite da família da vereadora.

— Ela falou como ninguém sobre a realidade da mulher negra no Brasil — afirma.

Érico segue nos elencos de “Zorra total” e da “Escolinha do Professor Raimundo — Nova geração”, em que faz Eustáquio, personagem originalmente interpretado por ninguém menos que Grande Otelo, e começará as filmagens do longa “L.O.C.A. — Liga das obsessivas compulsivas por amor”, dirigido por Cláudia Jouvin. No teatro, acaba de entrar para o elenco de “O frenético Dancin’ Days”, interpretando o mítico DJ Dom Pepe. O convite partiu da diretora do espetáculo, Deborah Colker, e do autor, Nelson Motta.

- Érico canta, dança e atua com personalidade e com a malemolência, elegância e swing que queremos para o nosso Dom Pepe - elogia Deborah. - Ele joga o jogo, passa a bola, faz o gol, e canta, dança e atua com personalidade.

Blazer e calça, ambos Gucci e sapatos Melissa Foto: Thiago Bruno
Blazer e calça, ambos Gucci e sapatos Melissa Foto: Thiago Bruno

Em meio a essa intensa agenda, os dois ainda desempenham suas respectivas funções junto à ONU: Érico como conselheiro pelo Fundo de População das Nações Unidas, e Kenia como a primeira Defensora dos Direitos das Mulheres Negras, no mundo. Mesmo diante de tanta visibilidade, eles refutam veemente que estejam numa posição de privilégio.

— Moramos perto do Posto 6 e costumo andar de bicicleta com meus filhos nos fins de semana. Às vezes, vejo a Cris Vianna, a Sheron Menezzes, mas há pouquíssimas pessoas da minha idade, parecidas comigo. Claro que é uma vantagem estar ali, mas privilégio, nunca — diz Kenia. — Outro dia, fomos a um restaurante em Ipanema, e as pessoas não paravam de olhar para o meu cabelo, a minha bolsa. De que vale estar num lugar caro desses, jantando como se fosse um animal ali?

Nada disso, entretanto, intimida os dois. Arredar os pés dos espaços conquistados está fora de cogitação.

— Há uma população negra feminina, como é o meu caso, que não vai baixar a cabeça. O Brasil está num momento trágico e interessante. Se um lado insiste em retroceder, há mulheres falando sem barreiras. O país vai ter que se entender com elas e com os homens que não estão mais dispostos a criar seus filhos para serem “machos”, baterem nas suas mulheres e andar de azul ou preto. O Brasil disposto a retroceder não vai conseguir isso, porque não vamos deixar — avisa Kenia.