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Prestes a lançar seu primeiro filme como diretora, Ana Flavia Cavalcanti debate abismos sociais brasileiros

Atriz também roda o país com a performance “A babá quer passear” e o solo “serviçal”
Ana Flavia usa camisa Louis Vuitton e brincos Amsterdam Sauer em ensaio para a revista Ela Foto: Foto: Jorge Bispo | Edição de moda: Patricia Tremblais | Beleza: Titto Vidal | Produção de moda: Aline Dias Swoboda | Produção de objetos: Mariana Franca | Assistentes de fotografia: Nathalia Atayde e Isabel Scorza | Objetos: Óbidos Antiguidades | Agradecimentos: Cidade das Artes | Tratamento de imagem: Luis Caruso
Ana Flavia usa camisa Louis Vuitton e brincos Amsterdam Sauer em ensaio para a revista Ela Foto: Foto: Jorge Bispo | Edição de moda: Patricia Tremblais | Beleza: Titto Vidal | Produção de moda: Aline Dias Swoboda | Produção de objetos: Mariana Franca | Assistentes de fotografia: Nathalia Atayde e Isabel Scorza | Objetos: Óbidos Antiguidades | Agradecimentos: Cidade das Artes | Tratamento de imagem: Luis Caruso

Ana Flavia Cavalcanti é gigante. Ela lança seu primeiro trabalho como diretora de cinema nos próximos meses, estreia uma peça no Rio em novembro e está prestes a voltar ao ar como vilã de uma série na TV aberta. Mas a atriz também cabe num carrinho de bebê, ainda que tenha sido adaptado para receber uma mulher de 1,69m de altura.

O carrinho é parte de dois projetos interligados, a performance “A babá quer passear” e o solo-debate “Serviçal”, em que Ana Flavia revisita a sua história e investiga algumas chagas sociais brasileiras. O mote é expor os meandros do racismo estrutural que permeiam a relação entre patrões e empregadas domésticas.

— Nunca gostei da relação que a gente tem com as empregadas domésticas no Brasil. E isso não vem do nada. Sou filha de uma delas. Quando era pequena, fui diversas vezes com a minha mãe para o trabalho, onde vivi situações chatas e preconceituosas — conta ela. — Quando me mudei para o Rio e comecei a observar mulheres uniformizadas, em sua maioria negras, empurrando carrinhos com crianças brancas, passei a me perguntar: quem cuida dos filhos dessas mulheres? Quem cuida delas?

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A performance foi levada a público pela primeira vez há um ano. Vestida de branco, Ana Flavia se enfiou num carrinho rosa em plena Rua Oscar Freire, meca do “pibão” de São Paulo. Amarrado à estrutura, uma balão flutuava a frase “a babá quer passear”. Ao se colocar nessa posição, ela ouviu de tudo. Houve quem conversasse sobre como poderia melhorar a relação com as funcionárias e quem dissesse coisas que ficaram entaladas na garganta da atriz.

Nessa primeira experiência, uma mulher se aproximou e disse não enxergar racismo nessas relações. Para ela, era “uma questão de patroa”. Como justificativa, comentou: “Tenho uma babá negra e a deixo beijar meu filho. Já minha amiga tem uma babá branca, melhor que a minha, e não permite.” Ana, então, quis saber por que uma patroa não deixaria a babá beijar os filhos. “Bactéria. Essa gente está cheia”, justificou a interlocutora.

Ana Flavia usa blusa e calça, ambos Animale, sandálias Christian Louboutin e brincos Amsterdam Sauer Foto: Bispo
Ana Flavia usa blusa e calça, ambos Animale, sandálias Christian Louboutin e brincos Amsterdam Sauer Foto: Bispo

Nesta quarta-feira, Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha, ela volta à rua onde tudo começou para o aniversário de “um ano da babá”, com direito a bolo e crianças. Durante todo esse tempo, a atriz repetiu a performance em diferentes cidades e vivenciou experiências que a levaram a criar o solo “Serviçal”. A apresentação começa com a atriz dentro do mesmo carrinho, em cima do palco. Ela, então, pede que alguém da plateia a tire daquela situação. Uma vez liberta, convida as pessoas negras do público a dividirem a cena com ela e compartilharem suas experiências.

— Estava me sentindo intoxicada com o que ouvia nas ruas com o trabalho. Até pensei em parar. Mas aí cheguei à conclusão de que, na verdade, precisava ter outras vozes comigo, abrindo esse espaço para mostrar como é ser trabalhador negro no Brasil — explica.

Há cerca de dois meses, em uma sessão em São Paulo, Waldecir Cavalcanti, mãe de Ana Flavia, estava entre as pessoas que dividiram o palco e compartilharam parte de sua história. Tendo estudado até a 4ª série do ensino fundamental e mãe solteira de três filhos, trabalhar como doméstica se mostrou um caminho inevitável. Hoje, ela é cuidadora de uma senhora em estágio avançado de Alzheimer, parte de uma família para quem Waldecir já trabalhou como babá e faxineira. Aos 61 anos, ela ainda não pode se aposentar, porque seus patrões ficaram oito anos sem contribuir para o seu INSS, algo que só mudou depois de um acordo.

Macacão Glória Coelho na Dona Coisa Foto: Bispo
Macacão Glória Coelho na Dona Coisa Foto: Bispo

— Fico muito orgulhosa em ver tudo o que minha filha construiu. Ela passou muita coisa comigo. Às vezes, eu a levava para o trabalho, e ela precisava ficar presa num canto para não se misturar à família dos patrões. Acho que essas experiências deixaram muitas marcas na vida dela — diz Waldecir.

A própria Ana Flavia chegou a trabalhar como babá aos 12 anos, quando cuidou da filha de uma vizinha. Aos 15, prestou serviços a uma família para quem a mãe trabalhava.

— A mulher estava grávida e precisava de “uma menina” como companhia. Essa expressão ecoa até hoje na minha cabeça — relembra, contando que, entre as tarefas, tinha que dar conta de pilhas de louça suja e da sujeira do cachorro. — O marido dela vivia falando que eu tinha que estudar. Mas essa fala era tão deslocada. Como faria isso, se estava o dia todo ali?

Ana Flavia fez um dos primeiros contatos com o universo teatral aos 12 anos. Foi quando leu “Álbum de família”, de Nelson Rodrigues, na biblioteca de Atibaia, interior de São Paulo, onde passou a maior parte da infância. A relação se estreitou anos à frente, depois que um colega lhe apresentou uma escola de artes cênicas na capital paulista, e ela buscou a preparação profissional.

Após investir na carreira, Ana Flavia chegou até o elenco de apoio da série “S.O.S. Emergência”, sua primeira participação na TV Globo. Com o fim do projeto, pegou o dinheiro que havia juntado e se mandou para Paris, ainda que não soubesse falar uma palavra em francês. Mas não foi sem propósito: estava determinada a fazer estágio no Théâtre du Soleil, uma das companhias mais importantes do mundo.

“O marido dela vivia falando que eu tinha que estudar. Mas essa fala era tão deslocada”

Ana Flavia Cavalcanti
Atriz

— Bati lá com a cara e a coragem. Eles estavam se preparando para rodar o filme sobre a última peça em cartaz, e estava tudo uma loucura. A Ariane ( Mnouchkine, uma das fundadoras da companhia ) ia morar lá no teatro. Nesse dia, ela perdeu um travesseiro, e a equipe inteira foi procurá-lo. Acabei encontrando, o que foi ótimo, porque virou um gancho para me aproximar. Passei um tempo com eles como voluntária. Foi muito potente vê-los trabalhando — descreve.

De volta ao Brasil, Ana Flavia ganhou um papel na novela “Além do tempo” e, na sequência, a personagem que projetou seu nome entre o grande público: a diretora Dóris, responsável por um colégio estadual, em “Malhação — Viva a diferença”.

A temporada encerrada no semestre passado fez sucesso ao abordar temas como sexualidade e problemas da educação pública. Autor da trama, Cao Hamburger elogia a atuação da atriz, que se relacionou muito bem com a proposta e teve entre os pontos altos uma cena em que proferia um discurso em defesa do ensino público.

— Ana Flavia colaborou muito para a construção dessa personagem, e essa cena foi antológica. Na edição final, são quase seis minutos de fala em defesa da escola pública. Foi histórico isso ir ao ar num canal de TV aberta, no horário em que a novela passava — reconhece ele.

Blusa Maria Filó e calça Bo.Bô. Foto: Bispo
Blusa Maria Filó e calça Bo.Bô. Foto: Bispo

No texto, a personagem cita o educador Anísio Teixeira para dizer que “só vai existir democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que produz a democracia”, enfatizando que “essa máquina se chama escola pública”.

A experiência na novela rendeu à atriz uma coleção de boas histórias. Desde que o folhetim começou, ela viu seu número de seguidores no Instagram saltar de cerca de dois mil para mais de 160 mil. Com eles, vieram desabafos e relatos “inbox”.

— Muitos jovens me contavam como a escola e até a diretora mudaram depois de “Malhação” — recorda-se Ana Flavia.

“Ana Flavia colaborou muito para a construção dessa personagem”

Cao Hamburger
Autor de 'Malhação - Viva a diferença'

Agora, ela se prepara para voltar ao ar em novembro, na pele da vilã Naomi, na segunda temporada de “A garota da moto”, exibida pelo SBT e pela Fox. Enquanto isso, também tem uma estreia programada para os palcos cariocas, no elenco da peça “Mundo”, dos premiados autores Julia Spadaccini e Jô Bilac.

— O espetáculo fala sobre a delicadeza humana e o atropelamento dela por uma urgência de um mundo digital — adianta Jô, que é só elogios a Ana Flavia. — Ela é sensível e camaleônica, se destaca pela delicadeza que constrói seus personagens. Ana é analógica ( risos ).

No ano em que um levantamento da Agência Nacional do Cinema mostrou como o mercado cinematográfico brasileiro é uma indústria protagonizada por homens brancos e que nenhum dos 142 longas-metragens lançados em salas de exibição em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra, a atriz também conclui sua primeira experiência como diretora. Seu curta “Rã” começa a ser enviado para festivais nos próximos meses.

Top Iorane, calça Levi’s e bracelete Amsterdam Sauer Foto: Bispo
Top Iorane, calça Levi’s e bracelete Amsterdam Sauer Foto: Bispo

Assim como “A babá quer passear” e “Serviçal”, a produção revisita o passado, ao retratar um episódio que Ana Flavia viveu aos 6 anos. Na época, ela morava numa comunidade em Diadema (SP), onde um mercadinho comercializava produtos vencidos, como embutidos e iogurte, alimentos que os moradores não tinham dinheiro para comprar nos mercados tradicionais. Um dia, uma carga inusitada e cara foi disponibilizada por lá.

— Quando escrevi o roteiro, inicialmente, não tive coragem de assumir de onde vinham esses produtos. Demorei muito para dizer que me alimentei de comida do lixo. Fazer esse trabalho falando da minha própria infância foi muito difícil. Levei para a terapia, dei uma chorada — desabafa. — Depois, percebi que, na verdade, abro espaço para recontar uma história que vivi e não precisa continuar do jeito que foi.

Ana Flavia é assim: gosta de passear por muitos lugares e não está a fim de fazer isso sozinha.