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'Quando o coração está presente, até o insuportável é suportável', diz Fernanda Montenegro, sobre único amor

Às vésperas de tomar posse na ABL, atriz fala sobre cultura, envelhecimento e imortalidade
Fernanda Montengro é capa da Revista Ela, deste domingo Foto: Fe Pinheiro
Fernanda Montengro é capa da Revista Ela, deste domingo Foto: Fe Pinheiro

Foram quatro horas de fascinante imersão no mundo de Fernanda Montenegro. Meus olhos escanearam estantes e paredes do apartamento da atriz em Ipanema. Com os azuis intensos do mar e do céu de verão entrando pelas janelas, o painel colorido de obras de arte de Burle Marx, Heitor dos Prazeres e Manuel Eudócio, entre tantos outros, evidencia que se trata da casa de alguém que ama a cultura. O ambiente é de paz. Surge a voz perfeita da anfitriã, que agradece o elogio e assinala: “É a casa de uma pessoa que vive há quase um século”. De fato. Os móveis da sala, sobreviventes de cenografias passadas, dão testemunho parcial de uma carreira de quase oito décadas.

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Aos 92 anos, às vésperas de se tornar imortal pela Academia Brasileira de Letras, onde ocupará, a partir de sexta-feira, a cadeira 17, que pertencia a Afonso Arinos de Mello Franco, Fernanda ama a vida “desesperadamente”. Aspira à imortalidade física. Crê que o Brasil voltou à estaca zero, que estamos “sem plumagem, com a pele entregue à intempérie”, mas não se cala. “Chegou a hora das perguntas desassossegantes’’, diz, sugerindo rumo para a entrevista.

A “musa sereníssima” do dramaturgo Nelson Rodrigues afirma que, mais que nunca, a esperança “tem que ser ativa”.

Notei que “A velhice”, de Simone de Beauvoir, parecia se projetar um pouquinho para fora da estante do quarto onde ela foi maquiada. E que repousava em seu escritório “O livro do desassossego”, de Fernando Pessoa, no qual o poeta português previne: “Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la”.

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“Vamos conversar”, diz Fernanda, dando a deixa. Ponho o celular no modo avião, ligo o gravador e encaro o olhar hipnótico. Quem está diante de mim não é lenda nem mito, palavra que o Brasil arruinou. É uma mulher aberta a falar com paixão e profundidade sobre teatro, nação, amizade, amor, mistério. O inarredável mistério da vida, para usar uma expressão tão dela. Convido a gozar a brisa nesta página e nas seguintes.

O GLOBO - Quando seu livro “Prólogo, ato, epílogo” saiu, Artur Xexéo escreveu que “passamos pela morte de Getúlio, a megalomania de Juscelino, a renúncia de Jânio (...) a ditadura, o plano Collor, a Lava-Jato, a pauta de costumes de Bolsonaro... Mas tivemos a sorte de ter Fernanda Montenegro em cena. Isso, certamente, ajudou a transformar esses anos duros nos melhores anos de nossas vidas”. Como se sente ao ouvir isso hoje?

FERNANDA MONTENEGRO - Nós pertencemos ao século passado. Nele, houve guerra, epidemia, houve os anos 20. Foi o século de duas bombas atômicas e de uma revolução nas artes, na medicina, na antropologia, na sociologia. Está na hora de o novo século começar. Entramos no século com o pior e o melhor dele. O pior já chegou. No princípio, era o verbo. Agora é: no princípio é o botão. E não estou dizendo isso sem futuro. Não. Temos que participar e desenvolver a cultura do tempo contemporâneo.

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Enquanto se arrumava para este ensaio fotográfico, você disse: “Agora não é uma personagem, sou eu”. Na Academia Brasileira de Letras, a Fernanda de fardão quem será?

Tem que aprender. Ali tem um ritual bem vivido, a Academia caminha pra 130 anos. Há uma estrutura ritualizada. Sempre foi um espaço cultural consagrado e resistiu ao tempo. Há muitos anos frequento a Academia porque amigos tomam posse, então eu me propus. Achei bonito o reconhecimento dessa arte de palco. Uma coisa é a dramaturgia. Outra é um ser humano em cena, jogando sua criatividade em cima de outro ser humano imaginado por um poeta, por um escritor. Cada um entra com a sua vivência, seu tempo, sua resistência, seu fôlego.

É assim que você entra agora, em outro papel?

Não é um papel. Até onde possa me perceber, devo representar muito pouco fora de cena. Não vou fazer discurso, vou fazer uma fala. É uma fala não acadêmica: a aceitação de uma mulher de teatro, de palco, uma atriz. É uma área vista com ( hesita ), com certas reservas. Nós temos uma arte amoral. Não é imoral. Amoral.

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Marta Góes, que colaborou com seu livro, acha que a ABL é o coroamento de uma longa vida de trabalho dedicada a dignificar a profissão de atriz. Concorda?

O teatro tem 500 anos no Brasil. E me aconteceu esse fenômeno. Aceitei o desafio por ser o instrumento de uma arte amoral, não cultuada, a não ser pelos da tribo. Sou uma pessoa vocacionada. Minha vocação me leva, não tenho como resistir.

Você aceitou montagens ousadas como “The Flash and Crash Days” (1991), de Gerald Thomas. Por que topou riscos depois de estar consagrada?

Qualquer hora que você entra em cena, para dar conta do que for, é vida ou morte. Entrar em cena é sempre um risco. Ou você é aceito ou é rejeitado ali. Não há meio-termo. Há atores extraordinários, que não desistem, porque é uma vocação inarredável. Se pararem, será o fim de uma vida. Todo ser humano deveria ter como ofício pôr em prática a sua vocação.

Sigo minha vocação há 35 anos. Mesmo assim, recorri a grandes jornalistas e escritores, vivos ou mortos, para formular algumas perguntas. Por favor, comente esta frase de Millôr Fernandes: “Somos feitos de pó, vaidade e muito medo”.

É isso mesmo. A gente vive sempre no risco. Mesmo para quem busca uns amparos econômicos, viver é perigoso. Viver é muito perigoso. Você tem surpresas: um ser humano está perfeito e, de repente, cai morto. A cada dia, sua agonia; está na Bíblia. Estou com o Millôr. E a gente tem ambição, sim, de continuar vivo. E, talvez, nem ser desafiado pela morte. Quem sabe não dá uma imortalidade física? Não é imortalidade artística, não, física. Física! Mas, não: a gente cai morto.

Desculpe-me, mas quem faz aquela cena do café da manhã com Paulo Autran (Na novela “Guerra dos Sexos”, de 1983, os dois atores atiraRam um no outro todos os alimentos sobre a mesa) é imortal.

Aquela cena nós fizemos uma única vez, no fim de um dia imenso de gravação. Entregaram a mesa, os leites, os chocolates, os bolos, e fomos nós, compreende? Inspiradas pelos deuses, três câmeras registraram, pá, pá, pá! O acaso talvez seja o grande personagem dessa cena.

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O acaso é bem importante na vida, não lhe parece?

Simone de Beauvoir diz que o acaso tem sempre a última palavra. É isso ou o “a cada dia, sua agonia”, bíblico.

Qual foi o peso do acaso na sua carreira?

Tenho pensado muito nisso. Por que fui por aqui e não por ali? Deixei situações que seriam minha consagração, meu futuro. Disse não, não quero. Por quê? Não sei te falar. Por que você dobra para a direita e não para a esquerda? Eu digo isso não politicamente, porque politicamente a gente opta.

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Qual é o lado bom da velhice?

A memória. Se a velhice permitir a memória, essa é a sua vida. Fui beneficiada pela minha constituição.

Em “Flor de obsessão”, seleção de Ruy Castro, há esta frase de Nelson Rodrigues: “A morte de um velho amigo é uma catástrofe na memória. Todas as nossas relações com o passado ficam alteradas”.

Cada amigo que se vai atravessou anos de encontros, desencontros. Tenho um profundo desassossego porque meus amigos, em grande número, os que estiveram comigo nessa viagem, já se foram. Velho fica chato porque começa a contar aos mais novos algo para poder passar uma memória. É a falta da memória de um companheiro ou companheira. Nós somos muito poucos na casa dos 90.

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Quem são seus grandes amigos que ainda estão aqui?

Nathalia Timberg. Laura Cardoso. Lima Duarte. Estou lembrando os de 90 a 95. Se tiver esquecido alguém, peço que me desculpem. Nos 80 já tem bastante gente.

Dos que já se foram, de quem tem mais saudades?

Fora do amor da minha vida, que é Fernando (Torres), de Sérgio (Britto) e Ítalo (Rossi). Vivemos juntos mais de 50 anos. E trabalhando no teatro, na televisão, trocando opiniões sobre tudo: livros, artes, cinema, viagens. No teatro há uma presença inarredável. Tem que haver cumplicidade.

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Outra frase de Nelson Rodrigues: “A mulher de um homem só é recente na história do coração humano”.

Se o coração não está ali, você não fica. Seja de que era for, de que época for. Quando o coração está presente, até o insuportável é suportável. Porque o coração está presente. De ambos os lados.

Como alguém tão interessante e dona de si pode ter tido apenas um parceiro na vida?, pergunta Maria Fortuna, repórter do Segundo Caderno. Mais: onde deságua sua libido? Qual o lugar do sexo na sua vida?

É básico ( pausa ). É básico. Entra-se aí numa zona muito particular. Por outro lado, tanto eu como meu companheiro de vida, na nossa jogada cênica, no nosso trato dramático, no nosso jogo amoral que é o teatro, vivemos tudo ali. Se não, não atravessa a boca de cena, entendeu? Não há personagem sem sexualidade. E você tem que dar conta.

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O espaço cênico é o espaço da liberdade?

Vale tudo ali. Por outro lado, você é um instrumento: você executa, você interpreta. É esquizofrênico. E daí? Agora, voltou para casa... É o integramento de um par. É interessante.

Passou pela sua cabeça se casar de novo?

Não, não, não! Estive junto com esse homem 60 anos. Nos aturamos, nos encontramos, nos desencontramos, nos perdoamos, nos buscamos. Houve uma cumplicidade que não sei explicar. Mas não sou um caso único. Há muitos mais pares pela vida afora do que sonha nossa vã filosofia, sabe? Não faço romance, conto a realidade. Qual é o mistério dessa realidade, eu não sei. A gente vive a vida, e não é uma ciência exata.

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Segundo Míriam Leitão, “Vivemos uma tragédia grega. Seis milhões de pessoas mortas no mundo por uma doença da qual o presidente do Brasil debochou. Vemos um ditador matando um povo diante de nossos olhos, E a cultura sendo tratada como se fosse coisa de marginais. É hora de ouvir dona Fernanda”.

Quando a Segunda Guerra acabou, eu tinha 15 anos. Veio a esperança da construtividade. Hoje, vejo que era um arrebatamento romântico. Mas chegamos a isso... Então, hoje a esperança, mais do que nunca, tem que ser ativa. Estamos com esse trágico governo, um presidente que faz como símbolo da sua atividade presidencial uma mão ( faz o gesto de Jair Bolsonaro ) que é uma arma ou o sexo de um homem. É um emblema sórdido. Agora, esse homem só está no poder porque todos os governos que o precederam, embora mais simpáticos, mais democratas, não fizeram o suficiente. Dou como exemplo as favelas. É uma herança. Por que não tiraram esse homem do poder? A carência social não deveria estar tão potente.

Como se muda isso?

Não sei. Às vezes eu penso que Brasília é um país que coloniza o Brasil.

Você já disse que não vota mais. Mudou de ideia?

Não vou votar. O mais simbólico desse governo foi o fim da cultura das artes. Não tem governo radical que não pare a cultura das artes. Mas estamos nas catacumbas, vivos. E não estamos extinguidos.

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Quem você tem lido ou relido?

Graciliano Ramos. Machado de Assis. Clarice Lispector. Cecília Meireles. Nélida Piñon.

Quem, com sua arte, ajuda a restaurar o orgulho de ser brasileiro?

No momento? Caetano.

Você lê muito sobre a guerra na Ucrânia? Nossa colunista Dorrit Harazim gostaria de saber onde você se informa e com que frequência?

Ainda leio jornal. Leio a Folha, o Estadão, O GLOBO. Leio os jornais de manhã ou de madrugada; se já está disponível a edição do dia seguinte, leio no pequenininho ( celular ).

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A que horas você costuma ir dormir?

Sempre chego quase às 2h da madrugada, porque é uma vida em cima de um palco. Então, 1h30, 2h, pela vida afora.

Quando abre os olhos de manhã, qual é a primeira coisa que pensa? Na carta para o Paulo Autran que está no seu livro, você diz : “amo a vida desesperadamente”. Ainda é assim?

A mesma coisa. Acordei, vou para a vida. Tenho receio que um dia eu acorde... se eu não acordar, ótimo, porque não passarei pelo processo, mas que eu acorde e.... não vá para a vida. Porque a velhice tem um desplugamento.

Como você sente isso, que é algo que não chegou?

Não chegou, mas já fui melhor. Corria pela vida afora ( risos ). Agora vou devagar e sempre. Sou de família longeva, mas comecei a ficar espantada de estar caminhando para os cem anos. E o mundo zerado de novo, o Brasil zerado de novo. Mas acredito que haverá uma geração que vai tocar o Brasil para o tempo contemporâneo. Estamos ainda no século XIX.

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Como é sua troca com seus três netos, Joaquim, Davi e Antônio, em relação a isso? Eles serão diferentes? O que você projeta?

Eles serão diferentes. Têm consciência. Acho que não são românticos como eu fui aos 20 anos. São contemporâneos.

Patrícia Kogut, nossa colunista de TV, gostaria de saber o papel da crítica na sua formação. O que diz aos atores jovens quando questionam se devem levar em conta o peso da opinião dos críticos?

Têm que levar em conta. Você tem uma expressão que não só o crítico, mas, vamos dizer, o elemento da plateia, o ser humano da plateia, te aceita ou te rejeita. A gente vive disso, de se exibir publicamente e ser aceito ou rejeitado.

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Nosso tempo está quase acabando (Fernanda precisa sair para uma solenidade em homenagem ao acadêmico Candido Mendes)...

Quero dizer o seguinte: estamos em tempo de mudança da plumagem. Estamos sem as penas, com a pele entregue à intempérie. Não entendo por que o Brasil não se salvou desse homem. Até quando Brasília vai ser um país invasor? Talvez se precise de mais duas gerações para sentir que caminhamos, a tal ponto chegamos a zero com esse homem.

Como é a angústia de saber que você não verá isso?

Não verei.

Mas mantém a fé de que seus netos verão?

É. Começarão a ver. Meus netos começarão a ver.