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Por Euardo Vanini


Anna Muylaert veste camiseta Hering, camisa e calça Dolce & Gabbana, óculos Boss e botas Louis Vuitton — Foto: Marcus Steinmeyer
Anna Muylaert veste camiseta Hering, camisa e calça Dolce & Gabbana, óculos Boss e botas Louis Vuitton — Foto: Marcus Steinmeyer

Duas horas de uma entrevista iniciada no set de filmagens e terminada na casa onde mora, no bairro da Lapa, em São Paulo, não foram suficientes para Anna Muylaert falar tudo o que anda atravessado na garganta. A diretora e roteirista, que trabalha na pós-produção de seu próximo longa, “O clube das mulheres de negócios”, ainda sem previsão de lançamento, quis continuar a conversa por telefone, uma semana depois.

Anna sentiu o peso do massacre que uma mulher enfrenta quando encontra o sucesso ao ganhar projeção internacional com o premiado “Que horas ela volta?”, em 2015. “Seu nome vira uma marca, e as pessoas se aproximam interessadas nela. Não queria, mas fui manipulada para atender aos desejos dos outros. Naquele período, perdi o leme da minha vida”, desabafa a paulistana, de 58 anos, do outro lado da linha, numa manhã de domingo. “Ao passar por tudo isso, pensei em deixar de fazer cinema. Poxa, você luta para na hora da festa só ‘apanhar’?”

São frases ditas entre histórias que vão do âmbito pessoal ao profissional, vivenciadas ao longo dos dois anos de divulgação do filme, emendado com o lançamento do longa “Mãe só há uma”, em 2016. Em meio a maratonas de entrevistas, viagens internacionais e estreias em salas de cinema abarrotadas, ela sofreu, fora do ambiente do trabalho, um assédio sexual sobre o qual pede para não entrar em detalhes, embora considere importante mencioná-lo. Sabe que outras mulheres passam por isso. “É muito frustrante enfrentar uma situação dessas. Fiquei atônita, de cama.”

Enquanto tentava digerir a dor, Anna precisou também lidar com “amigos” que se aproximaram por interesses comerciais e com um relacionamento abusivo. “Tive um namorado que falava coisas do tipo ‘você está trabalhando demais, então vou te trair’. Eu ouvia isso entrando no set. Quando não aguentava mais, eu me separei. Passei a trancar a casa toda por medo de violência”, conta. “E aí você olha para trás e vê que a vida inteira aguentou coisas que não devia ter aguentado. As mulheres, porém, são educadas para isso.”

Mas foi uma delas, uma amiga de verdade, quem chamou a atenção da cineasta sobre a toxidade da relação e sugeriu buscar um grupo de apoio. As fichas caíram conforme Anna acessava outros relatos que ecoavam o cotidiano experimentado dentro da própria casa. “Quando me dei conta, foi muito humilhante. Mas era como se a existência me dissesse: ‘Acorda ou vai piorar’.”

No trabalho, o machismo tampouco dava trégua. Ficava evidente em situações como a reunião com um distribuidor americano que se dirigia apenas ao parceiro profissional, sentado ao lado dela. “Ele só falava do filme, dos personagens e do roteiro com o produtor, homem, e eu ali, parecendo uma criança”, recorda-se. “Era como se dissessem: ‘Você fez a parte artística, mas do negócio não vai fazer parte. Por isso o meu novo longa tem essa palavra (negócio) no título.”

Veio a pandemia, e a reclusão involuntária a fez entender, aos poucos, que abrir mão da carreira estava fora de cogitação. Passou a cuidar da horta, fez horas de meditação e análise, assistiu a palestras e vídeos pela internet, leu muitos livros e iniciou uma cruzada até estabelecer que passaria a tratar a si como prioridade. No meio desse processo, o roteiro do novo filme ganhou os contornos finais que, por coincidência ou não, se materializaram na forma do projeto mais ousado de sua carreira e que vai suceder “Alvorada”, documentário de 2021 em que ela e Lô Politi mostram os bastidores da vida de Dilma Rousseff, durante o processo de impeachment.

Além de um elenco volumoso, formado por nomes como Irene Ravache, Louise Cardoso, Ítala Nandi, Cristina Pereira, Rafael Vitti e Luis Miranda, “O clube das mulheres de negócios” tem mais elementos narrativos do que as produções anteriores. Há também o uso de efeitos especiais para dar conta das misteriosas onças que rondam a trama. “É como se fosse três dos meus outros filmes juntos. Depois de 20 anos fazendo longas, parece que um bicho interior disse: ‘Vá um pouco mais além. Tenha coragem!’.”

A ambição, diz, parte não só do desejo de responder aos anos de violência de gênero, mas também ao cenário estabelecido no Brasil, com a ascensão do autoritarismo e os desmontes na cultura. “Todo cidadão está um pouco em estado de choque. Que valores são esses, de destruição, em curso?”, questiona.

A trama une ação, suspense e humor e se passa num ambiente imaginário, onde os estereótipos de gênero estão invertidos: mulheres ocupam o poder, enquanto homens são criados para serem submissos. Não se trata, porém, de uma tentativa de mostrar como seria um mundo comandado por elas. A troca serve para sublinhar os mecanismos do patriarcado, já que as personagens reproduzem o assédio, o autoritarismo e a corrupção.

Cristina Pereira, a quem coube o papel de Cesária, a presidente do tal clube, afirma que todas as referências encontradas para a sua personagem, marcada pelo perfil autoritário, eram masculinas. “A gente não imaginava que essas pessoas ainda estivessem por aí, mas elas saíram dos armários com esse comportamento agressivo e retrógrado. Por isso, o filme é atual.”

No dia em que a reportagem visitou o set de filmagens, num clube de elite às margens da Represa Guarapiranga, na Zona Sul de São Paulo, uma das gravações não pôde ser acompanhada, por se tratar de uma tórrida cena de sexo. Revelar o conteúdo implicaria em spoilers, mas a protagonista da tal sequência era ninguém menos do que Ítala Nandi, musa do Teatro Oficina e que não perdeu a piada, ao encontrar os jornalistas. “Nunca trepei tanto! Acho que é o filme em que mais faço sexo”, ironizou a atriz, de 80 anos. “Sou a mais velha do elenco, e as cenas de prazer vêm através de uma mulher que não é jovem. É muito libertário fazer isso num filme cult.”

Ítala também estava satisfeita com o processo de pré-produção e filmagem conduzido por Anna, algo reiterado pelas colegas de elenco Irene Ravache e Louise Cardoso, em conversas nos bastidores. “Quando recebi o roteiro, quis fazer o filme e ser dirigida por ela imediatamente. Só não sabia que era uma mulher tão afetuosa. Tivemos total liberdade nos ensaios, o que é muito enriquecedor para o artista”, salientou Irene, reverberando as falas de Louise: “Ela divide a criação conosco e estimula os atores a voarem. Não berra, não grita, mesmo enfrentando todos os problemas que é fazer arte num país com um governo que odeia a arte.”

O tom cordial descrito pelas atrizes revela, mais uma vez, a determinação da cineasta em romper padrões. Quando começou a dirigir, 30 anos atrás, Anna encontrou bem poucas mulheres no comando de um set. Ainda assim, as que existiam reproduziam uma postura um tanto “masculina”, com falas e atitudes arbitrárias para que fossem respeitadas. “Naquela época, só de ser mulher e entrar num set, você já era desmoralizada. Eu me lembro de câmeras não obedecerem o que você pedia. Então, decidi que só ia dirigir quando tivesse condições internas de fazer isso sem precisar ser autoritária. Demorou uns 10 anos. A minha proposta é convidar o outro a também se expressar.”

O fascínio pelo cinema, ela lembra, vem de criança, quando usava uma câmera Instamatic para fotografar o avô Durval, que enfrentava um câncer. “Achava que se tirasse fotos, ele não morreria”, narra, sobre um sentimento que ficou ainda mais latente quando, aos 11 anos, viu uma menina com uma câmera super 8 em punho. “Até hoje acho que cinema tem a ver com imortalização.”

“Amarcord”, filme de 1973 de Federico Fellini, consolidou esse fascínio assim como sessões no tradicional Cine Bijou, e ela decidiu fazer cinema quando ainda era uma adolescente de 15 anos. Com 16, entrou na Escola de Comunicação e Artes da USP e, anos depois, a convite do apresentador Serginho Groisman foi parar na TV Cultura. Na época, a Fundação Padre Anchieta, responsável pelo canal, era presidida pelo seu pai, Roberto Muylaert. “Mas não houve nepotismo. Pelo contrário, ele tinha medo de que pensassem isso”, frisa. Lá trabalhou como roteirista ao lado de Cao Hamburger no cultuado “Castelo Rá-tim-bum”, e atribui aos anos de experiência na TV educativa a preocupação pelo propósito que permeia seus filmes.

“Que horas ela volta?” é um marco nesse sentido, pois fez muita gente enxergar o quão abusiva pode ser a relação entre patrões e empregadas domésticas no Brasil. Anna confrontou ali a postura de uma elite à qual ela própria, nascida no Alto de Pinheiros, está vinculada. “Sou muito crítica ao lugar de onde vim, embora nunca vá deixar de pertencer a ele, porque me abriu portas”, reconhece. “Mas o cinema leva você a diferentes lugares, pessoas e temas. Devo a ele essa ampliação de horizontes.”

O tom contestador aparece também no espectro familiar, na maneira como cultua um diálogo aberto com os filhos. Mãe de José, de 27 anos, do casamento com o músico e ator André Abujamra, e de Joaquim, de 22, do namoro com o pintor Marcio Antonon, ela afirma que não existem tabus entre eles. “São dois amigos. Falamos de tudo, de sexo a drogas. Digo: ‘Até aqui, vai. Depois disso, não!’. Friso que as drogas terminadas em ‘ína’ são ruins e acho que respeitam isso”, conta a cineasta, que experimentou ácido durante a juventude. “Foram experiências reveladoras mas, logo em seguida, percebi que não era uma via. O caminho para essa compreensão maior está mais ligado à meditação e ao silêncio. Por outro lado, sabia que chegariam até os meus filhos. Então, achei importante fazer essa distinção.”

A firmeza nas falas de Anna reflete a paz e a segurança de quem está feliz com a maturidade alcançada ao longo dos anos. “Faço tudo o que quero e, desse ponto de vista, eu me sinto mais jovem do que quando tinha 20 anos”, compara. Superados os percalços, parece orgulhosa ao observar como a vontade de não se entregar a manteve de pé. Há, nas palavras dela, uma revolução neurológica em curso. “Pela primeira vez na minha vida, estou feliz solteira. Já estive assim antes, mas sempre me achava incompleta. Namorar é bom, sexo é bom. Mas não é algo de que preciso para formar minha identidade.”

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