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Ela

'Não tem como falar de Macunaíma sem mencionar tudo o que está acontecendo no Brasil', diz Bia Lessa, prestes a estrear montagem no Rio

Aos 61 anos, multiartista também adianta detalhes de sua adaptação de 'Grande sertão: veredas' para o cinema
Bia usa jaqueta Dylan Perrigo na Santuário, vestido Lona na Casa de Antônia, blusa Mara Mac (usada em todas as fotos) e anel VOA Foto: Pedro Bucher / Edição de moda: Patricia Tremblais. | Beleza: Stephanie Farah. | Assistência de fotografia: João Whitaker. | Produção de moda: Guilherme Alef. | Set design: Ana Laura Coelho.| Produção executiva: Matheus Martins
Bia usa jaqueta Dylan Perrigo na Santuário, vestido Lona na Casa de Antônia, blusa Mara Mac (usada em todas as fotos) e anel VOA Foto: Pedro Bucher / Edição de moda: Patricia Tremblais. | Beleza: Stephanie Farah. | Assistência de fotografia: João Whitaker. | Produção de moda: Guilherme Alef. | Set design: Ana Laura Coelho.| Produção executiva: Matheus Martins

Os ponteiros do relógio pendurado acima do quadro negro na sala de aula pareciam demasiado lentos para uma jovem Bia Lessa, nos tempos do antigo ginásio. “Ficava intrigada com a hora até bater o sinal. Olhava para aquilo e pensava: ‘estou perdendo mais 20 minutos da minha vida’”, recorda-se a diretora teatral que descobriu, “por acaso”, o seu destino profissional: “Fui assistir, nessa mesma época, a uma peça do meu tio, o diretor de teatro Celso Nunes, chamada ‘Interrogatório’, com a atriz Regina Braga. Fiquei louca! Era o que queria fazer e entrei no Tablado.”

Bia chegou à tradicional escola de atores do Rio na adolescência e fez parte da primeira turma da professora e atriz Louise Cardoso, com Maria Padilha e Rosane Gofman como colegas. “Mas logo percebi que ali era um lugar meio de olheiro e entendi que não queria ficar esperando que olhassem para mim. Eu me lembro como se fosse hoje. Virei para as minhas companheiras e falei: ‘Não vamos esperar ninguém, vamos fazer uma peça para nós!’. Chamamos o Wolf Maya, que fez a primeira direção dele, e começamos imediatamente. Entendi logo que o teatro é realização, a afirmação da potência do desejo.”

Aos 61 anos, Bia parece tomada pela mesma sede de criação, ainda que, para isso, julgue necessário ficar dez anos longe dos palcos, como fez até voltar de maneira avassaladora com a sua montagem de “Grande sertão: veredas”, em 2016. Parece uma contradição, mas esse hiato faz todo sentido dentro da lógica dessa multiartista. Imersa em exposições e projetos cinematográficos nesse intervalo, como o documentário “Então morri” (2016), dirigido com o ex-marido Dany Roland, ela diz ter se distanciado do teatro nessa época porque optou por ver de perto a realidade. “Decidi fazer documentário para descobrir o que são os homens, o que é a vida. Voltei, então, propondo uma representação com um trabalho físico e corporal mais intenso, que diz tanto ou mais do que o próprio texto.”

WEB (RGB) EL exclusivo Bia Lessa Foto: Bia Lessa usa camisa Andrea Marques e blusa de tule Mara Mac / Pedro Bucher
WEB (RGB) EL exclusivo Bia Lessa Foto: Bia Lessa usa camisa Andrea Marques e blusa de tule Mara Mac / Pedro Bucher

O mais recente desdobramento dessa pesquisa entra em cartaz no Centro do Rio, nesta quinta-feira, com a chegada de “Macunaíma — uma rapsódia musical” ao Teatro Carlos Gomes, a preços populares. A versão encenada pela companhia carioca Barca dos Corações Partidos e dirigida por Bia usa o clássico publicado por Mário de Andrade em 1928 para falar sobre “um país que não há mais e outro que brota”, nas palavras da própria diretora. Algo evidenciado já na cena inicial, em que o “herói sem nenhum caráter” nasce e morre algumas vezes, até que milhões de Macunaímas ganhem a vida. “É como quem diz: ‘Pode morrer, que nasce de novo; pode acabar, que a vida vem”, diz ela, que explora, na peça, a potência da criação brasileira com citações a nomes como Tunga, Lygia Clark, Franklin Cassaro, Caetano Veloso e Haroldo de Campos.

A montagem, de certa forma, traduz o estado de espírito da diretora, que se diz no máximo de seu otimismo e pessimismo ao mesmo tempo. “Da mesma maneira que fomos capazes de chegar onde estamos, podemos fazer outra coisa. Em meio a essa potência destruidora, emerge uma força criadora extraordinária”, pondera. “Não tem como falar de Macunaíma sem mencionar tudo o que está acontecendo no Brasil e no mundo, com um reacionarismo ascendente, uma divisão de propriedade radical. Estamos mais pobres e com pouquíssimas pessoas cada vez mais ricas. É muito grave o homem ter inventado coisas extraordinárias e ainda termos quem morra de fome. Já sabemos que criamos um mundo chinfrim, sem qualidade. Isso está presente nos meus espetáculos não de forma óbvia.”

Bia também observa com preocupação os cortes que acometem o setor cultural no país. “A maior censura que existe, para mim, é não termos condições de fazer teatro como tem que ser feito, com verba para passar um ano ensaiando, se preciso, pagando as pessoas com dignidade”, comenta. “A cultura tem que ser uma opção de governo. Estou falando de teatro, mas poderia estar falando de música, cinema, artes plásticas. A arte liberta. É tão importante quanto a ciência.”

Blusa Wymann, calça Lona na Casa de Antonia, anel Marcela Cavalcanti e botas UMA Foto: Pedro Bucher
Blusa Wymann, calça Lona na Casa de Antonia, anel Marcela Cavalcanti e botas UMA Foto: Pedro Bucher

Reflexões de quem tem a vida como laboratório. O Rio é a base. Bia mora numa casa de 1890, que foi toda reformada por ela, em Santa Teresa, bairro pelo qual é apaixonada e onde todas as “questões estão colocadas”, na visão dela. “É próximo ao Centro e há muitas favelas por perto. Não estou dentro de um condomínio, mas no meio da vida”, afirma, sem se esquecer do provincianismo que cativa alguém que viveu a infância em Avaré, no interior de São Paulo: “Às vezes, me pego saindo de pijama para comprar pão, os vizinhos são todos amigos”.

A casa de Santa Teresa, onde mora com a filha caçula Clara, de 20 anos, tem mangueira, bananeira e pé de mamão, além de vista para o horizonte e espaço para abrigar as “muitas famílias”. Bia adora aglutinar: a primogênita Maria, de 40, e o neto Miguel, de 2, estão sempre no endereço, assim como o ex-marido, o diretor e músico Dany Roland (“vira e mexe, ele mora um tempo lá”). “Muitas pessoas têm a chave. Também tenho um escritório na parte de baixo e, quando estou fazendo uma produção grande, os almoços são para 30 pessoas.”

O apego pela morada, porém, se esvai quando um trabalho está em curso. “Minha casa se desmonta, quebra a geladeira, as coisas perdem o valor para mim.” O comportamento que ela define como “rigor” inspirou uma profunda identificação em Caio Blat, durante todo o processo em torno da adaptação de “Grande sertão: veredas” para o teatro. “A Bia é uma fúria, leva tudo às últimas consequências. Tem sonhos grandes e vai até o fim para realizá-los”, comenta o ator, a quem coube o protagonista Riobaldo. “Muita gente, inclusive professores, dizia ser impossível transformar essa obra de Guimarães Rosa em peça. E foi justamente por isso que ela topou. Agarramos o livro pela unha.”

Depois de o espetáculo rodar o Brasil com ingressos disputados (a montagem volta ao Rio para uma temporada no Sesc Copacabana, a partir do dia 12), Bia submeteu o trabalho a um novo desafio: transpôs a obra para o cinema, num filme com estreia prevista para o primeiro semestre do ano que vem. “Peguei exatamente o espetáculo e o levei para um estúdio todo negro. Sem as grades que formam a plateia, a solidão ali não é mais enclausurada, mas uma solidão no vazio”, descreve a diretora, comentando que só estão em cena os atores e alguns elementos, como os bonecos de feltro no tamanho de pessoas que compõem a instalação da peça. “Eles funcionam como mochila, homens mortos, tijolos, muros e montanha.”

O longa foi gravado em São Paulo, durante 16 dias, com diárias de 12 horas. “Foi uma loucura. Não quero isso nunca mais na minha vida”, admite Bia, que ainda precisou lidar com o fato de Caio estar em meio às gravações de uma novela. Para dar conta, o ator passou noites sem dormir e fez algumas pontes aéreas entre Rio e São Paulo, com direito a ajuda de motoboy para ir do aeroporto ao set no menor tempo possível. “Terminávamos uma sequência de seis horas de gravação, com o corpo exausto, mas tínhamos que partir para outra tão longa quanto. Lembro-me de forçar músculos já machucados”, conta o ator. “Mas sempre pensei que a vida do bando de Riobaldo era exatamente assim. Não havia férias entre uma guerra e outra.”

Macacão Gilda Midani, blusa A.Brand e anel Tatiana Fontoura na Obra Ipanema Foto: Pedro Bucher
Macacão Gilda Midani, blusa A.Brand e anel Tatiana Fontoura na Obra Ipanema Foto: Pedro Bucher

A montagem teatral de “Grande Sertão” rendeu à Bia uma série de prêmios. Entre eles, o da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor direção, feito inédito para uma mulher nessa categoria. Embora reconheça o machismo existente no meio, ela afirma não ter sentido as consequências mais perversas dessa realidade na carreira. “Nem ao fazer a minha primeira ópera, quando ainda era uma ‘menina’”, ilustra. A explicação, segundo ela, vem da infância: “Sofri muito bullying por ser pequena (Bia tem 1,49m) e magra. No primário, tive que dançar quadrilha com o maternal. Chorava tanto... Comecei algum enfrentamento desde criança, o que me deu uma coisa mais masculina. Então, não senti, ao longo da vida, essa pressão por ser feminina.”

Na década de 1980, coube à diretora reinaugurar o Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Bia levou ao palco sua montagem de “Orlando”, de Virginia Woolf, munida de terra, fogo, folhas e água entre os elementos cênicos. “Sujava tudo, tinha que limpar até os refletores, quando acabava”, recorda-se. No ensaio geral, ela foi advertida pelos funcionários da casa: “Quando a Dona Violeta (Arraes) souber o que você fez com o teatro, você vai ver o que vai acontecer.” Pouco depois, a socióloga e então secretária de cultura do estado surgiria no local querendo saber quem era a responsável por aquilo tudo. Ao assumir a “culpa”, Bia ouviu um sincero agradecimento. Era o início de uma amizade que duraria até a morte de Violeta, em 2008, e levaria a diretora até uma das parceiras mais célebres de sua carreira: Maria Bethânia.

Vestido e calça, ambos FIT Foto: Pedro Bucher
Vestido e calça, ambos FIT Foto: Pedro Bucher

“A Viola fez essa ponte, e ficamos muito amigas”, conta Bia, sobre uma história que inclui imersões na casa da família de Bethânia, em Santo Amaro, na Bahia, e um punhado de cenários para os shows da cantora, incluindo o da turnê “Claros breus”, que chega ao Rio no mês que vem. “Muitas coisas nos unem. Fomos criadas no interior, gostamos da mesma cerveja tomada na rua, conversando”, comenta a diretora, ao passo que a amiga demonstra o mesmo apreço: “Admiro e amo a inquietação de Bia. Por ser assim, explode sempre em arte viva. Seja através da palavra, da música ou do teatro. Tudo nela reverbera arte”.

Cai o pano. Que venham os próximos atos.