Ela

Oficina de rebolado com viés político é sucesso no Rio

Mulheres e homens tem procurado cada vez mais o projeto AfroFunk Rio
Taísa durante aula na sede do grupo Ta na Rua, na Lapa Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Taísa durante aula na sede do grupo Ta na Rua, na Lapa Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Foi só o ritmo 150 BPM do funk carioca começar a ecoar pelo segundo andar da sede do grupo de teatro Tá na Rua, na Lapa, que um mar de glúteos se derramou pelo salão num ritmo frenético. No meio deles, Taísa Machado ditava as regras, enquanto mexia os quadris bem rente ao chão: “É para dançar olhando sempre por cima do ombro. Ninguém aqui se abaixa para passar pano. É só para rebolar mesmo.”

Era dia de Oficina Proibidona, uma das atividades de seu projeto AfroFunk Rio, que explora a força política por trás de um rebolado e anda fazendo o maior sucesso justamente por causa disso. Desde a primeira aula, em 2014, mais de mil mulheres (e um punhado de homens) já ouviram os ensinamentos de Taísa e puderam estabelecer uma nova relação com os seus corpos por meio da dança, que passeia entre o funk e outros ritmos ligados à cultura negra.

A premissa da oficina se mistura com a história de sua criadora, hoje com 29 anos, que deu seus primeiros passos ritmados em aulas de balé clássico, na Pavuna, onde morava.

— Quando eu era pequena, houve um período em que minha mãe começou a trabalhar muito, e eu passava o dia inteiro numa academia de dança. Mas, quando fiz uns 9 anos, fiquei muito gordinha e parei de ir às aulas por vergonha — conta Taísa, que retomou o gingado despretensiosamente na adolescência. — Depois, nos mudamos para Barra de São João, na região litorânea e, aos 14 anos, comecei a fugir para ir a bailes funks no Rio. Dizia à minha mãe que ia dormir na casa de uma amiga, mas pegava um ônibus, descia no ( terminal ) Novo Rio e subia o Morro da Providência. Voltava no dia seguinte de manhã.

Se nos bailes ela encontrou um ritmo que eletrizava o seu corpo, ao entrar para o Tá na Rua, já aos 20 anos, Taísa aprendeu com o diretor Amir Haddad o quão político poderia ser aquele mesmo corpo.

— Sempre soube que era negra, mas foi numa peça sobre Anastácia que entendi o lugar social em que me encontrava na história — lembra. — A partir daquele momento, passei a ficar aberta aos meus impulsos, me mexendo e me exibindo, sem me sentir mal com isso.

Taísa, então, se jogou em aulas de dança africana e chegou a fazer parte da companhia de Eliete Miranda por dois anos. Somando toda essa bagagem, criou o AfroFunk, que já na primeira aula, anunciada pelo Facebook, atraiu 35 alunas.

— Quando vi que iria rolar, comecei a pesquisar de onde vinha essa coisa de rebolar e como esse movimento pode mudar as nossas vidas. Foi quando descobri que as mulheres fazem isso há mais de cinco mil anos. As mouras e as egípcias rebolavam, e essa atitude era interpretada de uma maneira completamente diferente. Havia dois motivos principais: preparar o corpo para o parto e para o prazer sexual. Ou seja, não havia a essa conotação de um mero entretenimento, como acontece hoje em dia — afirma ela.

Durante a pesquisa, Taísa descobriu — e se encantou — por vários ritmos. Um deles é o baikoko, muito popular em países africanos, como Gana, Uganda e Costa do Marfim. Nessa dança, as mulheres executam seus rebolados na intimidade com seus parceiros e em ocasiões especiais. Em casamentos, por exemplo, as convidadas dançam para emanar energia e prosperidade sexual para a noiva.

Aulas usam as batidas do funk e têm influência de ritmos africanos Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Aulas usam as batidas do funk e têm influência de ritmos africanos Foto: Ana Branco / Agência O Globo

— Quando uma mulher mais velha se apresenta, todas as outras têm que parar, porque é hora de aprender com quem tem mais domínio sobre o quadril e o ventre — diz ela.

Não é difícil imaginar que muitas alunas andam animadas com os resultados, digamos, mais voluptuosos das aulas.

— Várias meninas me chamam no canto e dizem: “estou transando bem melhor agora” — conta Taísa.

Nas atividades, aliás, não há espaço para vergonha ou tabu. Até porque as músicas escolhidas para embalar os rebolados na Oficina Proibidona são bem explícitas quando o assunto é sexo. As alunas adoram.

— Outro dia fui chamada para dar aula particular para um grupo de mulheres numa cobertura no Flamengo. Eram todas brancas, com mais de 40 anos, e fizeram questão de que eu tocasse só “funk putaria” — relata a professora.

Mas os impactos vão muito além do que acontece entre quatro paredes. Há mulheres mais velhas que aparecem de bermuda na primeira aula e, em poucos dias, adotam o shortinho; meninas que chegam duras no movimento e ganham malemolência; e também quem passe a vislumbrar uma profissão, como aconteceu com a jovem Janayna Santana, de 21 anos.

— Sempre fui ligada à dança urbana, mas foi com as aulas que entendi que podia fazer disso o meu futuro profissional. Então, decidi cursar dança na UFRJ — conta Janayna, hoje no primeiro período da graduação. — Fiz anos de balé clássico, que adoro, mas a oficina me mostrou que não há só esse caminho para chegar a algum lugar dentro da profissão.

Janayna Santana fez vestibular para dança depois das aulas Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Janayna Santana fez vestibular para dança depois das aulas Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Único homem da turma no dia em que a reportagem visitou a aula, o iluminador cênico Rafael Turatti, de 28 anos, seguia com afinco as coordenadas da professora. Para ele, estar num espaço de protagonismo negro e feminino é um privilégio:

— Todo o mundo se beneficia de um ambiente onde há mulheres empoderadas e livres, porque ali não acontecem coisas recorrentes em outros locais, como discriminação e julgamentos baseados em moralismo.

Já que romper barreiras é especialidade da casa, a francesa Elsa Leydier, de 30 anos, também tem investido no rebolado.

— Gosto muito do Brasil e da cultura africana, mas sinto que o país está se esquecendo das suas raízes. Por isso, achei o trabalho tão interessante — comenta ela. — Além disso, a aula mostra como rebolar nos empodera. Mexer a bunda é maravilhoso.

A observação de Elsa toca num ponto importante para Taísa. Segundo ela, a maneira como a sociedade reage às mulheres que rebolam mostra o quanto a dança é urgente.

— Quando era criança, a Carla Perez era meu ídolo, e me lembro de como existiam várias lendas urbanas com a intenção de desqualificá-la quanto à sua inteligência. Hoje, entendo o que era isso. Negras rebolando são taxadas de burras e sujas. Brancas, de burras e indecentes.

A francesa Elsa Leydier é uma das alunas Foto: Ana Branco / Agência O Globo
A francesa Elsa Leydier é uma das alunas Foto: Ana Branco / Agência O Globo

A julgar pela agenda lotada de Taísa, que dá aula em outros três endereços pela cidade, esse perverso jogo de poderes está começando a virar.

— Mexer o corpo também é um tipo de saber. Mulheres do mundo inteiro estão rebolando e transformando algo que as diminuía num instrumento de poder — avalia ela.

Rebolar é preciso. Julgar não é preciso.