Época personagem da semana

A anatomia da foto oficial do governo Jair Bolsonaro

Toda foto de ministério novo tem um clima de romance de Agatha Christie. A gente olha e pensa: quais serão os primeiros a sair da trama?
A foto oficial do governo Bolsonaro Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
A foto oficial do governo Bolsonaro Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Há 24 pessoas na foto: o presidente, o vice e 22 ministros. A área está bastante ocupada, mas os olhos se dirigem ao vazio. É natural que, diante de uma imagem, o centro dela receba nossa primeira mirada. E no meio da foto tem um vazio. Tem um vazio no meio da foto.

Quando as retinas já fatigadas despertam da fixação, percebe-se que o vazio está acima de Jair Bolsonaro. E à esquerda dele. É como se faltasse alguém.

Talvez seja o ministro do Trabalho. Após 88 anos de serviços prestados ao país, o Ministério do Trabalho foi extinto pelo novo presidente. A medida pode integrar os planos para libertar o povo do socialismo, como ele prometeu em discurso para a parcela desse povo que foi saudá-lo diante do Palácio do Planalto, em 1º de janeiro. Ou pode ser que o trabalho, do ponto de vista formal, esteja mesmo fora de moda no mundo de hoje. O Ministério do Biscate e da Precarização é uma alternativa a se cogitar.

Ou quem falta é Carlos Bolsonaro? O filho 02, vereador no Rio de Janeiro e agora tuiteiro 01 da República, ficou atrás do pai no Rolls-Royce presidencial durante o desfile por Brasília. Sentado como se estivesse num buggy a cortar dunas, ele produziu uma das imagens mais inquietantes da cerimônia de posse. Estava ali como o guarda-costas de absoluta confiança, o sucessor político ou o irmão que fez isso só para rir da cara dos outros dois? O espaço desocupado na foto ministerial talvez lhe coubesse.

Gente experiente do ramo diz que fotografia não tem regra. Mas aquele vazio bem no meio do quadro e bem sobre a cabeça de Bolsonaro ficou estranho. É um inimigo oculto? Por ora, evitemos metáforas e paranoias.

A composição deixou mal o astronauta Marcos Pontes, ministro da Ciência e da Tecnologia. De baixa estatura e postado um pouco distante de Marcelo Álvaro Antônio, titular do Turismo, ele ficou isolado, solto no ar. Mas evitemos também esse tipo de comentário metido a engraçado, pois estamos tratando de um ministério sério, muito sério.

Praticamente não há sorrisos nos rostos dos 22 ministros. Na foto de Daniel Marenco, no Globo, há o esgar de Marcos Pontes, e alguns lábios se esforçam, sem muito sucesso, para disfarçar a sisudez de seus donos. Quanto a dentes, ao menos na foto de Marenco, só se veem os da pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. É um sorriso que até surpreende, dada a importância de sua missão num governo cujo presidente discursou contra a “desestruturação da família” e o “desvirtuamento dos direitos humanos”. E que elegeu como inimigo da pátria o “politicamente correto”.

Este último combate ele começou a travar já na montagem de sua equipe. Escalou apenas duas mulheres. Melhor do que Michel Temer, que não escalou nenhuma ao virar presidente em 2016. Ainda assim, é pouco. Basta constatar o desequilíbrio da foto. As duas ficaram do mesmo lado, próximas uma da outra, deixando todo o resto do quadro para os homens. Outro descuido de composição. Da foto e do ministério.

Bolsonaro poderia ter aprendido com uma mulher, a sua própria, Michelle, que há várias coisas boas no politicamente correto. Entre elas, dar visibilidade à língua de sinais e gestos utilizada pelos surdos, como ela fez no parlatório.

Tereza Cristina cuidará do humanamente incorreto. Na noite do dia 1º, o presidente assinou Medida Provisória transferindo para o Ministério da Agricultura, o dela, a tarefa de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas. Liderança ruralista, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, ela terá a chance de cumprir o que foi apregoado por Bolsonaro na campanha eleitoral: não identificar, não delimitar e não demarcar nenhuma terra indígena.

É preciso abrir os olhos, e eles percebem que não é apenas um governo de homens, mas, majoritariamente, de homens brancos. Não chega a surpreender, já que entre as frases mais famosas de Bolsonaro estão as ditas contra mulheres, negros, indígenas, gays e tudo o que lhe soar diferente. Em suma, contra as “minorias, que devem se curvar às maiorias”, como vociferou em célebre discurso.

Uma exceção é o vice-presidente, Hamilton Mourão. Porém, embora se autodeclare indígena, ele já condenou o que vê como “indolência” dos povos indígenas — além da “malandragem” oriunda da África — e atribuiu a beleza do neto ao “branqueamento da raça”. Tudo dito em tom de brincadeira, porque, afinal, o racismo no Brasil é uma invenção do politicamente correto, não é mesmo?

Os olhos agora vão buscar na foto os ministros mais importantes. O da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, arejou a si próprio ao escolher uma camisa social clara, deixando no armário o figurino preto que utilizava em sua caça a malfeitores. Mas a composição da imagem também não lhe foi de todo favorável. Está ao lado de Mourão, o general linha-dura, e Ernesto Araújo, o chanceler cuja devoção religiosa tangencia o fanatismo. Parece estar alinhado com eles. Mas pode ser apenas outro acaso gerado pela foto.

Moro ainda esboça uma abertura de lábios. Araújo, não, embora a barba possa esconder algum relaxamento. Difícil apostar nisso, pois ele está empenhado na missão conferida por Deus e por Olavo de Carvalho de aniquilar o globalismo, o marxismo cultural, o Saci-Pererê e a Cuca.

Araújo e o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, estão na infantaria do combate a tudo o que Bolsonaro chama de ideológico — adjetivo que, em seu vocabulário, é sinônimo de coisa ruim. Vélez está perto de Araújo, separando-os apenas Tarcísio de Freitas (Infraestrutura). Está de camisa escura, mas tem certa jovialidade conferida pelos óculos e pela harmonia entre gravata e paletó.

O superpoderoso Paulo Guedes, da Economia, aparenta algum enfado. Mas é o que ele aparenta em quase todas as fotos. Trata-se de alguém que não gosta de pompa. É o único com gravata cheia de figurinhas. E o paletó está aberto. Na foto de Marenco, ele já mira algo além, talvez as facadas que precisa começar a dar no Sistema S e nos gastos em geral. (Aliás, não convém que integrantes do governo Bolsonaro usem metáforas com facas. Imagens assim são sempre perigosas. Não se fala de corda em casa de enforcado.)

Por fim, mas de forma alguma menos importante, os militares precisam ser buscados pelos olhos. São cinco, o que talvez contribua para a seriedade que a foto exala. Perto de uma das pontas está o da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, em postura rígida. Perto da outra, o da Segurança Institucional, Augusto Heleno, quase invisível em meio aos altões que o margeiam. Tamanha discrição só reforça que eles é que vão mandar mesmo. Já Onyx Lorenzoni (Casa Civil), bem ao lado de Bolsonaro, com expressão vitoriosa... A ver.

Toda foto de ministério novo tem um clima de romance de Agatha Christie. A gente olha e pensa: quais serão os primeiros a sair da trama? O fato de Luiz Henrique Mandetta, escolhido para a Saúde, estar à beira da foto (à direita de quem vê) não o ajuda. Ele é investigado por supostamente ter favorecido duas empresas num contrato de R$ 9,9 milhões quando era secretário em Campo Grande.

Jair Bolsonaro prometeu uma equipe de 15 pessoas e assumiu com 22. Ainda assim, é uma redução significativa. Fernando Collor assumiu com 12, mas deu no que deu. Fernando Henrique, Lula e Dilma sempre tiveram mais de 30 ministros. Isso gerava muitos sorrisos nas fotos, mas, se pensarmos em literatura policial, aumentava o número de suspeitos.

Em 1º de janeiro de 2015, Dilma posou com outras 38 pessoas. O sorriso de Michel Temer é largo. O de Eliseu Padilha, lá em cima, à esquerda, também. Gilberto Kassab é outro que sorri. O fim da história a gente conhece.