Época 1087

A cor me fez escritora

Falta de identificação com os personagens fez com que jovem optasse pela literatura
Cristiane Sobral diz que seus personagens podem ser brancos ou negros, mas são sempre escritos do ponto de vista de uma mulher negra. Foto: Raissa Tuany
Cristiane Sobral diz que seus personagens podem ser brancos ou negros, mas são sempre escritos do ponto de vista de uma mulher negra. Foto: Raissa Tuany

Literatura é uma aposta para mim desde criança. Minha mãe era professora, e, em casa, sempre tive interesse por livros. Nessa época, já observava a ausência de personagens femininas e personagens negras nas obras que lia e nas informações que recebia da escola. Com essas inquietações, comecei a sentir o desejo de trabalhar como atriz e como escritora para produzir um campo de invenções onde eu pudesse existir, já que não me encaixava nos lugares que o mundo me apresentava. Na verdade, achava que eram não lugares. Comecei a me interessar pela língua portuguesa por ser um caminho para a escrita. Passei a participar de concursos de redação e de poesia na escola.

Em 2000, fui publicada pela primeira vez numa coleção chamada Cadernos negros , existente já há 41 anos. Nessa altura, fazia o curso de interpretação teatral na Universidade de Brasília ( UnB ) e havia começado a escrever dramaturgia. Dirigia um programa de esquetes teatrais chamado Quinta cênica . Nesse projeto, comecei a fazer escritas de cenas e de textos que eram apresentados, mas ainda não tinha tido nenhuma oportunidade de publicação. Como eu tinha muitas poesias guardadas desde a adolescência, esse material deu origem ao corpo de textos do meu primeiro livro, Não vou mais lavar os pratos , que está na terceira edição. De lá para cá, já publiquei oito livros, de vários gêneros, desde poesia à dramaturgia. Atualmente diretora da Companhia de Arte Negra Cabeça Feita, sou autora da peça Uma boneca no lixo , um texto que está fazendo 20 anos em 2019 e será remontado a partir de julho, com direção do uruguaio Hugo Rodas. Em março deste ano, ganhei um prêmio no Festival Frente Feminina pela peça Esperando Zumbi .

Quando eu era mais nova, ou não me via na literatura ou me via representada por meio de papéis de sofrimento, sempre no contexto da escravidão. Era como se nós existíssemos apenas no regime escravocrata. Isso me impactava muito, porque não nasci escrava. Minha mãe não era escrava, meu pai não era escravo. Por mais que a escravidão seja um elemento histórico que faça parte de nossa identidade, ele não é o único. Eu via e vejo minha mãe como uma das mulheres mais incríveis que conheci. Nos livros, não lia sobre personagens parecidas com ela. Na escola, as meninas diziam que eu era feia e que meu cabelo era horrível.

Já em casa, minha mãe dizia o contrário, que meu cabelo era lindo. Os livros, no entanto, não me contavam essa história. Esses livros diziam que os homens negros eram alcoólatras ou associados ao crime. Eram esses os personagens que eu encontrava. O problema não era o fato de a personagem ser uma empregada doméstica. A questão era que essa empregada doméstica simplesmente entrava e saía da história. Não se sabia mais nada sobre ela.

Tornei-me uma criança reclusa, que tinha certa dificuldade para dialogar com as pessoas, porque minha imaginação queria me levar para outros lugares. Queria ser uma fada, e a professora dizia que não havia fada negra. Falava que não me escolheria para ser a fada, porque nos livros não existem fadas como eu. Eu questionava: “O livro não é uma ficção? Por que na ficção não existem fadas negras?”. Se a literatura é um campo de ficção, ela pode apresentar o negro em qualquer lugar. Inclusive pode nos apresentar em lugares imaginários e construir imagens que sejam gestos para a realidade, apostas futuras para que negros ocupem espaços que qualquer cidadão pode ocupar.

O ator Grande Otelo, exceção no panteão dos atores brasileiros. Foto: Arquivo / Agência O Globo
O ator Grande Otelo, exceção no panteão dos atores brasileiros. Foto: Arquivo / Agência O Globo

Acredito que a raiz dos estereótipos na literatura é o fato de o negro ter chegado ao Brasil escravizado. Temos em nosso imaginário essa construção e temos autores predominantemente brancos e ricos. Essas pessoas tendem a reproduzir os negros que elas acham que conhecem. As ideias que esses autores usam para construir personagens negros são cristalizadas e não se aproximam dos critérios de humanidade.

Não existe um protocolo para ser branco, assim como não existe um protocolo para ser negro. Em razão desses estereótipos do processo de escravização, o negro é tido como burro ou preguiçoso. As pessoas que saem desse padrão são apresentadas como a exceção, a exemplo de Machado de Assis ou Grande Otelo.

É destituído do negro todo o arcabouço histórico que vem antes da escravidão. O que eles estavam fazendo no continente africano antes de chegarem aqui escravizados? Qual era o conhecimento científico que produziam? Quais as produções arquitetônicas dessas pessoas? Elas tinham saberes. Então o que existe na literatura é a reprodução de um lugar de negro, que historicamente está ligado à subalternidade e à opressão. Isso, porém, não faz jus à contribuição do povo negro para o fortalecimento do Brasil como nação.

Existe todo um conhecimento científico em universidades africanas que é anterior ao processo de escravização. Muitas vezes tudo isso fica de lado nos personagens que são representados pela literatura. Como a maioria das obras canônicas não fala de pretos e indígenas, e sim de europeus, tudo que vem da cultura negra é considerado exótico. Como um segmento que integra mais de 50% da população pode ser exótico? Exótico quer dizer fora da ótica, fora da realidade.

Existe a questão frequente de sermos vistos como literatura marginal ou de cunho social. Sempre falo que não faço literatura marginal nem social. Eu faço literatura. Essas classificações existem porque acham que não temos arcabouço intelectual e estético para produzir literatura. Sou uma escritora, sou uma inventora. Pesquiso palavras, pesquiso nomes e trabalho com o universo da criação assim como qualquer outro escritor. Meus livros não falam sobre a história da minha vida ou só sobre racismo, como se eu vivesse para escrever sobre isso. Seria de uma pobreza temática sem fim. Falo sobre mulheres e homens que amam, de pessoas que fracassam. Falo de complexidades e humanidades. Como uma mulher negra, que sou, existem pontos de vista. Quando escrevo ficção, meus personagens podem ser negros ou brancos, mas o ponto de vista é de uma mulher negra. Temos nosso lugar de fala, assim como pessoas brancas têm o lugar de fala delas. A questão é: a literatura brasileira pretende incluir outros lugares de fala ou não dá para dividir a fatia do bolo com mais ninguém?