Época Comportamento

A maldade humana como inspiração para obras de ficção

Em bate-papo na Casa ÉPOCA & Vogue, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva analisou os traços de psicopatias nos personagens das escritoras Leïla Slimani e Selva Almada
Marina Caruso, colunista do O Globo, a escritora Selva Almada, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e Leila Slimani Foto: Foto: Marcelo Saraiva
Marina Caruso, colunista do O Globo, a escritora Selva Almada, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e Leila Slimani Foto: Foto: Marcelo Saraiva

A maldade foi o tema da mesa que reuniu as escritoras Leïla Slimani e Selva Almada, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e a colunista do jornal O GLOBO Marina Caruso na tarde deste sábado na Casa de Não Ficção ÉPOCA & Vogue, no centro histórico de Paraty. A franco-marroquina Leïla Slimani, uma das estrelas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), é autora de Canção de ninar (Tusquets), um best-seller perturbador sobre uma babá que mata as duas crianças de que cuidava. A história é baseada num caso real ocorrido em Nova York. A argentina Selva Almada, outra convidada na Flip, lançou recentemente no Brasil o livro de não ficção Garotas mortas (Todavia), que investiga os homicídios de três mulheres em rincões argentinos nos anos 1980 e a cultura que permite o feminicídio. Ana Beatriz Barbosa Silva é autora de mais de uma dezena de livros, entre eles, Mentes perigosas (Globo Livros), sobre a psicopatia.

A escritora franco-marroquina Leila Slimani Foto: Foto: Marcelo Saraiva
A escritora franco-marroquina Leila Slimani Foto: Foto: Marcelo Saraiva

Silva comentou os livros de suas companheiras de mesa pelo viés da psiquiatria e identificou traços de psicopatia na babá de Canção de ninar e nos assassinos de mulheres de Garotas mortas . "A babá é uma psicopata típica, tem inteligência para manipular as pessoas. O psicopata é quase 100% razão e quase zero emoção", explicou. "Segundo pesquisas, 25% dos homens que cometem feminicídio são psicopatas." O que seriam, então, os outros 75% de feminicidas? Almada arriscou uma resposta: "São filhos do patriarcado. Não são doentes. São homens heterossexuais saudáveis. O feminicídio é um problema cultural." Almada contou que, quando os crimes ocorreram, na Argentina dos anos 1980, os assassinatos de mulheres eram tratados como crimes passionais, problemas de família, e não como tragédias sociais. "A violência não ocorre só mulheres de uma certa circunstância, mas é fruto da maneira como os homens são criados para ser homens e como as mulheres são criadas para ser mulheres", disse. Garotas morta , o livro de Almada causou algum desconforto na Argentina. Um homem, assessor de uma importante senadora argentina, moveu uma campanha contra a escritora e seu livro. Foi até mesmo elaborado um projeto de lei, assinado pela senadora, que propunha repúdio ao livro.

A plateia do debate na Casa ÉPOCA & Vogue Foto: Foto: Marcelo Saraiva
A plateia do debate na Casa ÉPOCA & Vogue Foto: Foto: Marcelo Saraiva

Slimani começou sua fala dizendo que sempre foi fascinada pela loucura -- e pela maneira caricatural como a loucura feminina é retratada na literatura e nas artes. Ela sempre leu muito sobre psiquiatria e, um dia, resolveu contar a história de "um monstro": uma babá que mata duas crianças indefesas. "Não faço diagnósticos dos meus personagens. Eu conto como é o mundo deles." O mundo da protagonista de Canção de ninar , Louise, é solitário. Ela é uma francesa pobre que trabalha como babá dos filhos de um casal imigrante. Faz um trabalho muitas vezes relegado a imigrantes pobres e de pele escura, mas é uma francesa branca, exilada de qualquer relação de solidariedade humana. "Ela está num abismo", disse Silva, a psiquiatra. "Ela não pertence a grupo nenhum. Essa falta de socialização é prejudicial ao ser humano. O isolamento é enlouquecedor."

Slimani recentemente lançou um livro de não ficção: Sexe et mensonges: la vie sexuelle au Maroc ( Sexo e mentiras: a vida sexual no Marrocos ). Inspirada pela Primavera Árabe, ela entrevistou mulheres marroquinas sobre a sexualidade num país tão repressor quanto o Marrocos. "Eram mulheres totalmente diferentes, mas todas elas tinham esse sentimento de estar despossuídas de seus próprios corpos. Uma mulher que não tem posse de seu próprio corpo não é uma cidadã", disse Slimani, que saudou o movimento #MeToo, que denuncia assédio sexual.

Ao final da conversa, uma pessoa da plateia perguntou sobre o mal cotidiano, escondido nas pequenas ações do dia a dia. Silva disse que, num país de desigualdade brutal como o Brasil, maldade é ostentação. E também usar o medo da violência para promover este ou aquele candidato à Presidência. Almada afirmou que os malvados são muito interessantes quando existem somente em obras de ficção e citou um tipo de maldade que gostaria de ver extinta: "o desprezo que nossos governos tem por nós", disse, com referências aos governos do Brasil e da Argentina. Slimani confessou esperar que a maldade não desapareça, pois seu trabalho como escritora depende da existência de vilões. "Vida longa aos psicopatas", provocou, arrancando risos do público.