Época 1086

A marca humana de Philip Roth no apartamento que deixou em Nova York

Imóvel em que viveu o escritor está à venda e atrai visitantes ávidos por conhecer sua intimidade
Philip Roth contempla a vista do apartamento em direção às casas tradicionais da 78th Street e às torres da 57th Street. Foto: Philip Montgomery / The New York Times
Philip Roth contempla a vista do apartamento em direção às casas tradicionais da 78th Street e às torres da 57th Street. Foto: Philip Montgomery / The New York Times

Quando alguém muito famoso morre, é natural que se crie toda uma fantasia em torno de como foi sua vida, onde essa pessoa morava, como era sua casa, que tipo de roupa tinha em seu guarda-roupa. No caso do escritor americano Phillip Roth (1933-2018), não é preciso mais imaginar. O apartamento do autor de O complexo de Portnoy (1969) está à venda por US$ 3,2 milhões (R$ 12,6 milhões) e aberto, desde março, à visitação de interessados.

Para atrair o maior número de visitantes, os corretores têm exibido o imóvel, com 140 metros quadrados, situado no Upper West Side de Manhattan, com todos os objetos do autor dentro.

Uma reportagem do Wall Street Journal detalhou: “Os sapatos do sr. Roth ainda estavam ao lado da cama, suas blusas estavam dobradas no armário e sua escova de dentes estava na xícara na pia do banheiro. O Prêmio Pulitzer que ele ganhou em 1998 permanecia sobre uma das mesas”.

Uma vizinha, a jornalista e escritora Terena Bell, reclamou no Guardian londrino que tal exposição era por demais macabra. “Roth era meu vizinho do lado. No domingo passado, vi compradores em potencial entrar e sair do prédio a tarde toda. As pessoas, compreensivelmente, precisam ver uma propriedade antes de comprá-la, mas Roth era um homem reservado, e acho que ele não quereria estranhos checando seus pertences. As preferências de higiene dental do escritor são da conta de alguém? Roth era escritor, mas para mim também era um vizinho que conversava sobre basquete e que um dia me disse para colocar um suéter porque estava frio lá fora.”

A polêmica provocou restrições aos interessados no apartamento de Roth. ÉPOCA acompanhou a visita de um potencial comprador brasileiro. Ao chegar ao endereço, próximo ao Museu de História Natural de Nova York, a recepção não foi das melhores, em razão da divulgação de que os objetos pessoais do autor estavam à mostra. “Foi uma pessoa que se dizia amiga dele que veio aqui supostamente para nos ajudar a catalogar tudo, não ajudou em nada e ainda publicou essa reportagem dizendo que estávamos explorando a morte dele”, reclamou o corretor Scott Moore.

Na visita de ÉPOCA, apenas algumas fotos foram permitidas, de preferência aquelas que não mostrassem os objetos pessoais do autor. Quando questionado se era possível fazer uma foto da sala em plano geral, pelo menos, o corretor e uma auxiliar se colocaram em frente à escrivaninha.

A foto do closet não podia mostrar as camisas sociais e calças que ainda estavam penduradas nos cabides. Tampouco os prêmios que adornavam a parede próxima ao banheiro, que ainda tinha todas as toalhas estendidas e um par de chinelos aos pés da cama, como relatara o Journal .

A visita não durou mais que 15 minutos. O imóvel está à venda em dois tipos de planta (dois ou três quartos). A surpresa do apartamento, de estilo bastante contemporâneo, é a existência de duas portas secretas. Uma delas dá acesso a uma banheira, que fica bem de frente para o escritório conjugado com a sala e, consequentemente, para a linda e ampla vista do sul de Manhattan. É possível imaginar Roth deitado na banheira, relaxando, lendo um dos cinco volumes sobre a Guerra Civil americana que estavam em uma de suas estantes e olhando para os edifícios que circundam o Central Park.

A outra passagem secreta fica dentro da suíte de hóspedes, à direita da planta. Ela liga o apartamento de Roth a um estúdio que está alugado. Lembra um pouco a arquitetura do apartamento do filme O bebê de Rosemary , que na história fica a poucos metros dali, no Dakota Building. Caso o comprador queira levar também o estúdio, o apartamento ficaria com três suítes e quatro sacadas, atingindo então o valor de US$ 3,8 milhões, o equivalente a quase R$ 15 milhões.

O panfleto de venda informa que os compradores têm de estar aptos a pagar mais US$ 1.927 de condomínio e US$ 1.765 de imposto, totalizando o equivalente a R$ 15 mil em gastos de manutenção a cada mês. O edifício conta com uma pequena academia de ginástica, porteiro 24 horas e um “faz-tudo” que vive no prédio.

“Roth: ‘Eu faço longas caminhadas por Nova York. De vez em quando, paro e vejo que estou sorrindo. Eu me ouço dizendo em voz alta: ‘Lar’’”

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Nascido em Newark, Nova Jersey, em 19 de março de 1933, Roth morreu de insuficiência cardíaca no apartamento do Upper West Side em 22 de maio do ano passado. Ele se mudara para o apartamento da West 79th Street em 2004. Costumava dividir seu tempo entre Nova York e sua fazenda na zona rural de Connecticut, preferindo passar os meses mais quentes no campo. Os responsáveis pelo espólio não informaram o que será feito da fazenda.

Os bens devem ser vendidos porque Roth não teve filhos. Os livros do autor e alguns itens pessoais terão como destino final a Biblioteca Pública de Newark.

Roth comprou o apartamento em 1989, usando-o inicialmente como estúdio de escrita. Morava a alguns quarteirões de distância com a então esposa Claire Bloom. Depois que o casamento do casal terminou — e Bloom publicou um livro de memórias contundente sobre a relação —, Roth se retirou para sua casa em Connecticut por vários anos, usando o apartamento da 79th Street como pousada para as raras viagens à cidade. Durante esse período, escreveu os três livros conhecidos como Trilogia americana: Pastoral americana (1997), Casei com um comunista (1998) e A marca humana (2000).

Após o sucesso da trilogia, Roth voltou para Nova York. Comprou o apartamento ao lado de seu estúdio e combinou as duas unidades para criar sua casa. Ele transformou uma das cozinhas em um closet e instalou um par adicional de portas perto da entrada principal para evitar o barulho.

Até sua aposentadoria, depois de terminar o romance Nêmesis (2010), Roth trabalhou quase continuamente em pé, valendo-se de uma escrivaninha especial para tal, em razão de dores crônicas nas costas. Usou o mesmo computador da Dell por anos. Na área de trabalho, manteve à mão um dicionário de sinônimos e uma cópia de Death and the afterlife ( A morte e a vida após a morte , em tradução livre), do professor de filosofia americano Samuel Scheffler. Havia também um aparelho de fax — Roth não usou e-mail até pouco antes de se aposentar.

O escritor pendurou na parede da cozinha um esboço a lápis de uma planta baixa de seu apartamento de infância em Newark, no segundo andar da 81 Summit Avenue, e na parede de sua sala havia um mapa emoldurado de Newark.

Roth na poltrona Eames predileta. Por causa da dor nas costas, ele passou a escrever em pé, em uma escrivaninha especialmente projetada para tal. Foto: Fred R. Conrad / The New York Times
Roth na poltrona Eames predileta. Por causa da dor nas costas, ele passou a escrever em pé, em uma escrivaninha especialmente projetada para tal. Foto: Fred R. Conrad / The New York Times

Roth gostou do Upper West Side “porque havia muitos judeus lá”, anotou seu biógrafo Blake Bailey. Os livros do autor eram frequentemente ambientados na comunidade judaica de sua infância, agora muito reduzida na terra natal. Ele era frequentemente visto no Upper West Side fazendo compras no minimercado Zabar’s ou tomando café da manhã no francês Nice Matin.

As vistas das janelas do apartamento de Roth incluem casas tradicionais da 78th Street e as novas torres em construção na 57th Street. Para contemplar o cenário, tinha à disposição uma poltrona Eames e um pufe de couro preto bem gasto. Na decoração relativamente simples, destacam-se peças simbólicas como a cartola que o colega escritor Saul Bellow usou ao aceitar o Prêmio Nobel de literatura em 1976.

Um quarto tem uma parede com prateleiras do chão ao teto cheias de livros, incluindo Adeus às armas , de Ernest Hemingway, e Guerra e paz , de Tolstói. Uma prateleira mais baixa contém cópias das obras do próprio Roth.

Ele escreveu que, quando menino, vivendo em Nova Jersey, Nova York parecia “uma cidade muito mais mítica do que Paris ou Roma”. E, enquanto o autor ganhador do Prêmio Pulitzer narrava notoriamente a classe trabalhadora de Newark de sua juventude, ele passou grande parte de sua vida adulta vivendo em Manhattan. Em seu romance Mentiras , escrito no começo da década de 90, Roth definiu-se: “Eu faço longas caminhadas em Nova York. De vez em quando, paro e vejo que estou sorrindo. Eu me ouço dizendo em voz alta: ‘Lar’”.