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Época 1079

Ayahuasca, o chá que parece um sonho

Neurocientista pesquisa o potencial antidepressivo da bebida conhecida também como santo-daime
Professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Dráulio Barros de Araújo disse ter sentido um conforto emocional muito grande ao experimentar a ayahuasca. Foto: Arquivo pessoal
Professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Dráulio Barros de Araújo disse ter sentido um conforto emocional muito grande ao experimentar a ayahuasca. Foto: Arquivo pessoal

Em 2005, eu era professor da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Na época, trabalhava com diferentes técnicas de neuroimagem e as aplicava em questões de neurociência, desde epilepsia até AVC. Na ocasião, eu tinha um aluno de doutorado que frequentava uma das igrejas do santo- daime. Nós conversávamos muito sobre a vivência que ele tinha com a ayahuasca; e, apesar de já ter ouvido falar, eu nunca tinha tido experiência com ela. Em novembro daquele ano, apareceu a primeira oportunidade, a convite desse aluno, de ir a uma das cerimônias da igreja, em Ribeirão Preto. Embora tenha sido algo muito profundo para mim, não mudou minha vida, como algumas pessoas relatam. Mas o que me marcou desde aquela época foi a percepção de que, sob o efeito da ayahuasca, é possível perceber vários fenômenos que ocorrem quando sonhamos. Muitos dos elementos que eu presenciava ali carregavam um impacto emocional muito forte. No caso de um sonho, quando acordamos temos a clara noção de que aquilo foi só um sonho. Ao retornar da experiência com a ayahuasca, o que mais me chamou a atenção foi que ela continuava tendo status de realidade. No dia seguinte, também tive uma sensação de muita tranquilidade e de poucos pensamentos. Senti um conforto emocional muito grande.

Quando saí dessa primeira experiência, ficou claro para mim que ela poderia ser estudada para identificar um pouco melhor quais eram as bases neurais por trás daquele processo. Então, começamos a planejar um primeiro experimento científico usando a ayahuasca. Para isso, nos pareceu apropriado realizar o estudo com voluntários experientes no uso da ayahuasca, porque não sabíamos qual seria a reação de uma pessoa sob o efeito da substância dentro de um hospital universitário. Achamos por bem recorrer a membros da igreja, e, nesse primeiro contato, ficou evidente o papel terapêutico da ayahuasca. Pessoas se apresentavam voluntariamente, dizendo que haviam melhorado de quadros de depressão e de uso abusivo de álcool. Também relatavam ter deixado o uso abusivo de crack e de cocaína. Por causa disso, achamos melhor abrir uma segunda linha de estudo, que teria outra perspectiva: avaliar os efeitos antidepressivos da ayahuasca.

Como era um estudo inicial, fizemos o que chamamos de desenho aberto. Nós e os pacientes sabíamos que o que estava sendo ministrado era a substância. Nesse primeiro ensaio, recrutamos 17 pacientes com depressão resistente a tratamento, isto é, pacientes que já haviam sido submetidos a dois tratamentos antidepressivos e que não tinham respondido a eles. Para avaliar os sintomas, pegamos uma escala que atribui o grau de severidade da depressão em um indivíduo e a aplicamos antes da sessão, ao longo da sessão e de um a 21 dias depois da sessão. O que observamos foi a significativa diminuição do quadro depressivo naqueles pacientes já um dia após o uso da substância, o que perdurou nos dias posteriores.

Cipó usado na preparação da ayahuasca, bebida ingerida em rituais religiosos de povos da Amazônia. Foto: Jairo Galvis Henao / Flickr
Cipó usado na preparação da ayahuasca, bebida ingerida em rituais religiosos de povos da Amazônia. Foto: Jairo Galvis Henao / Flickr

Em 2012, fizemos um segundo ensaio, com 35 pacientes, dessa vez com a presença de placebo. Observamos basicamente que o efeito antidepressivo da ayahuasca é superior ao do placebo e esse efeito continua aparecendo na maioria dos pacientes um dia depois da sessão. Mas nem todo mundo respondeu, ou seja, a ayahuasca não é uma bala de prata. Por outro lado, ninguém piorou com ela. No pior dos cenários, a melhora não foi significativa. Uma mensagem importante a passar é que uma única intervenção com a ayahuasca melhora agudamente o quadro depressivo dessas pessoas. Esse efeito agudo tem uma resposta muito importante no que diz respeito à depressão. Cem por cento dos antidepressivos comercialmente disponíveis demoram cerca de 15 dias para fazer efeito. Do ponto de vista da psiquiatria, isso é muito difícil. Imagine tratar uma dor de cabeça que só vai passar daqui a 15 dias? É um tratamento que tem um empirismo muito grande.

O fato de termos observado um efeito antidepressivo rápido faz com que esse tipo de tratamento ganhe uma perspectiva importante do ponto de vista da psiquiatria, que é a possibilidade de termos um tratamento para a depressão com resposta rápida. Apesar disso, não vislumbro a ayahuasca virando medicamento em um futuro próximo. Primeiro precisamos entender qual a forma de apresentar essa terapia aos pacientes. Ainda não existe um modelo. Em outras palavras, a ayahuasca deve ser ministrada todo dia ou a cada 15 dias? Qual é a dose a ser dada? Será tomada por via oral ou estratificada? Não se sabe ainda. O que acredito é que, se algum dia ela ou qualquer outro psicodélico tiver algum tipo de aplicação em larga escala, será como procedimento em clínicas; não acho que será possível comprar essas substâncias em farmácia com receita médica.

Durante a pesquisa, tivemos a possibilidade de analisar tanto pacientes com depressão quanto pacientes sem depressão. De forma geral, os pacientes depressivos sofrem mais durante as sessões do que os pacientes que não têm depressão. Uma paciente que tinha ideação suicida, por exemplo, em um ponto se viu dentro de um caixão com a mãe chorando a seu lado. Ela, porém, não conseguia se mexer para avisar à mãe que não estava morta. Outro paciente relatou uma experiência de dor profunda. Mas o que é uma dor profunda? Ele disse que entrou em contato com a essência da dor. Então tudo para ele era dor. Ele viu dor, ele cheirou dor, ele ouviu dor. Não era uma dor apenas física. Era uma dor mental. Ele disse que conseguiu ver a dor.

Embora boa parte dos pacientes tenha tido experiências duras, no dia seguinte observamos uma melhora robusta. A maioria relatou uma sensação de tranquilidade, como se nenhum problema fosse tão grande como imaginava. Outros relataram estados de total comunhão com a vida. Uma paciente se viu em um campo cheio de flores, onde encontrou uma irmã que tinha morrido. A irmã olhava para ela no sonho e dizia que estava bem e que ela já não precisava se preocupar. Agora, estamos tentando quantificar o que faz um paciente ter uma resposta positiva ou quais são as características de um grupo que teve uma resposta positiva em comparação a um paciente que não teve a mesma resposta. Queremos entender quanto a experiência determina a melhora do paciente. Essas são questões que nos interessam e que temos explorado recentemente.