Época Brasil 1098

Para Pedro Ferreira de Souza, redução da desigualdade na Era Lula é contestável

Autor de um premiado estudo sobre a realidade brasileira, o sociólogo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concorda que houve inegáveis ganhos de renda para os mais pobres, mas os ricos ficaram ainda mais ricos
Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Souza é autor de “Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, Hucitec Editora. Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Souza é autor de “Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, Hucitec Editora. Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

1. O senhor questiona a crença de que a desigualdade teria despencado na era Lula. Por que o aumento da renda dos mais pobres durante os governos petistas não resultou em um redução substancial da desigualdade?

Quando olhamos para os dados do Imposto de Renda, a tese de que a desigualdade diminuiu nos anos petistas enfraquece. Houve ganho de renda para os mais pobres, sem dúvida, mas também para os mais ricos. O topo e a base da pirâmide se deram muito bem, o que acabou espremendo os estratos intermediários. O Bolsa Família tem muitos méritos na redução da pobreza, mas esperar que um programa que custa menos de 0,5% do PIB ( Produto Interno Bruto ) resolva, sozinho, a desigualdade é esperar demais. Entendemos melhor a desigualdade brasileira quando olhamos para os mais ricos, não para os mais pobres. O Brasil não é um país de classe média com pobreza residual. O topo da pirâmide concentra uma parte imensa da renda. Reduzir a desigualdade é uma tarefa muito difícil. Ainda mais quando a redistribuição de renda não é feita do topo para a base.

2. Que políticas faltaram para uma redução substancial da desigualdade?

Nos últimos 20, 25 anos, melhoramos em termos de proteção social, inclusão dos mais pobres e até educação. Mas há uma bola quicando na área: a reforma tributária. Impostos são uma ferramenta à disposição do Estado para atuar sobre mais ricos e redistribuir a partir do topo. Isso não quer dizer que uma boa reforma tributária faria a desigualdade brasileira despencar, mas seria capaz de promover uma queda na desigualdade maior e melhor do que vimos nos governos petistas. Precisamos de uma reforma que não se preocupe tanto com o peso total dos impostos — se pagamos muito ou pouco em relação ao PIB —, mas com a distribuição desses impostos. Ou seja: com quem paga os impostos que financiam o Estado brasileiro. Temos um amplo espaço para melhorar o Imposto de Renda e os impostos sobre patrimônio, que são ferramentas que o Brasil usa pouco.

3. A prioridade deve ser o combate à desigualdade ou à pobreza? Por quê?

No curto prazo, os governos têm mais margem de manobra para combater a pobreza do que a desigualdade. Politicamente, é mais fácil para um governo se comprometer com a erradicação da pobreza do que com a diminuição da desigualdade. Não é difícil entender o argumento por trás disso: primeiro, devemos nos preocupar com os que estão em situação pior. Atacar com mais ênfase a pobreza do que a desigualdade é mais fácil em termos orçamentários, mas redistribuir a partir do topo ajuda a financiar programas sociais para os que têm menos. Este é o acordo social-democrata: tributação progressiva que penaliza os mais ricos para, numa compensação solidária, prover serviços para toda a população e, especialmente, os mais pobres. O Brasil não encarou esse desafio adequadamente.

Diminuir a desigualdade é difícil. Não há bala de prata que resolva o problema, ainda mais num país como o Brasil. O problema é que muita gente tem aversão ao tema. Você fala em combate à desigualdade e já acham que você quer nivelar por baixo, que todo mundo ganhe igual etc. Não é desse espantalho que estamos falando. Criticar a desigualdade não quer dizer que todo mundo tem de ser igual. Isso não aconteceu em lugar nenhum do mundo. Também não adiantar idealizar os países europeus. O acesso a todos aqueles serviços públicos não é só uma questão de renda mais alta. É resultado de sociedades muito menos desiguais do que a nossa. Todo brasileiro percebe que nossa desigualdade é uma das maiores do mundo e que esse contraste extremo entre ricos e pobres precisa diminuir para um patamar mais civilizado e compatível com a democracia.

4. Seu livro apresenta dados sobre a concentração da renda brasileira de 1926 a 2013. Como a sucessão de governos autoritários e democráticos nesse período impactou a distribuição de renda no Brasil?

É complicado atribuir o aumento ou a queda da desigualdade a ditaduras ou democracia, porque há outros fatores em jogo. Mas, fazendo um resumo um pouco grosseiro, é possível dizer que as ditaduras foram mais eficientes em aumentar a desigualdade do que a democracia em reduzi-la. Há períodos de aumento da desigualdade muito claros no Estado Novo (1937-1945) e depois do golpe militar de 1964 até, mais ou menos, 1972. Entre 1945 e 1964, houve uma queda razoável da desigualdade, mas essa tendência foi revertida pela ditadura e substituída por um forte aumento da desigualdade. Em períodos ditatoriais, é possível reformar instituições de modo autoritário e implementar mudanças que beneficiem um grupo restrito de aliados. A grande pergunta é: se há alguma relação entre democracia e combate à desigualdade, por que não vimos, depois da redemocratização, uma nítida redução da concentração de renda? Houve alguma inclusão social e melhora do acesso a padrões mínimos de bem-estar, consumo e serviços públicos, mas, em termos de desigualdade, a mudança não foi tão grande.

5. Por que a democracia não foi tão eficiente em combater a desigualdade?

Seria de esperar que os mais pobres votassem em massa em candidatos que implementassem políticas que os favorecessem, mas o mundo é mais complicado que isso. Na democracia, os ricos têm recursos econômicos, culturais, sociais e políticos para se organizar, conseguir vantagens junto ao Estado e impor vetos a determinadas mudanças que os prejudicariam, como um Imposto de Renda reformado para ser mais redistributivo. Ainda que ações que beneficiem a massa da população, como a valorização do salário mínimo, sejam muito visíveis, ações que beneficiam os ricos às vezes são obscuras, difíceis de entender e menos divulgadas, porque têm a ver com regulações muito específicas, condições de acesso a crédito e temas distantes do cotidiano.

6. O governo e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), argumentam que a reforma da Previdência combate privilégios e desigualdades. A oposição afirma o contrário: que a reforma vai aprofundar as desigualdades. Algum deles tem razão?

Quando o governo ( Michel ) Temer enviou sua reforma da Previdência ao Congresso, nós fizemos um trabalho aqui no Ipea para simular os efeitos distributivos da reforma. Concluímos que governo e oposição estavam errados: não haveria nem distribuição de renda nem caos social. Não conheço as entrelinhas do texto da reforma atual, mas, como é parecida com a de Temer, a aposta segura é que ela não vai impactar a desigualdade. O feito da reforma vai ser fiscal, não distributivo.