1. O senhor questiona a crença de que a desigualdade teria despencado na era Lula. Por que o aumento da renda dos mais pobres durante os governos petistas não resultou em um redução substancial da desigualdade?
Quando olhamos para os dados do Imposto de Renda, a tese de que a desigualdade diminuiu nos anos petistas enfraquece. Houve ganho de renda para os mais pobres, sem dúvida, mas também para os mais ricos. O topo e a base da pirâmide se deram muito bem, o que acabou espremendo os estratos intermediários. O Bolsa Família tem muitos méritos na redução da pobreza, mas esperar que um programa que custa menos de 0,5% do PIB ( Produto Interno Bruto ) resolva, sozinho, a desigualdade é esperar demais. Entendemos melhor a desigualdade brasileira quando olhamos para os mais ricos, não para os mais pobres. O Brasil não é um país de classe média com pobreza residual. O topo da pirâmide concentra uma parte imensa da renda. Reduzir a desigualdade é uma tarefa muito difícil. Ainda mais quando a redistribuição de renda não é feita do topo para a base.
2. Que políticas faltaram para uma redução substancial da desigualdade?
Nos últimos 20, 25 anos, melhoramos em termos de proteção social, inclusão dos mais pobres e até educação. Mas há uma bola quicando na área: a reforma tributária. Impostos são uma ferramenta à disposição do Estado para atuar sobre mais ricos e redistribuir a partir do topo. Isso não quer dizer que uma boa reforma tributária faria a desigualdade brasileira despencar, mas seria capaz de promover uma queda na desigualdade maior e melhor do que vimos nos governos petistas. Precisamos de uma reforma que não se preocupe tanto com o peso total dos impostos — se pagamos muito ou pouco em relação ao PIB —, mas com a distribuição desses impostos. Ou seja: com quem paga os impostos que financiam o Estado brasileiro. Temos um amplo espaço para melhorar o Imposto de Renda e os impostos sobre patrimônio, que são ferramentas que o Brasil usa pouco.
3. A prioridade deve ser o combate à desigualdade ou à pobreza? Por quê?
No curto prazo, os governos têm mais margem de manobra para combater a pobreza do que a desigualdade. Politicamente, é mais fácil para um governo se comprometer com a erradicação da pobreza do que com a diminuição da desigualdade. Não é difícil entender o argumento por trás disso: primeiro, devemos nos preocupar com os que estão em situação pior. Atacar com mais ênfase a pobreza do que a desigualdade é mais fácil em termos orçamentários, mas redistribuir a partir do topo ajuda a financiar programas sociais para os que têm menos. Este é o acordo social-democrata: tributação progressiva que penaliza os mais ricos para, numa compensação solidária, prover serviços para toda a população e, especialmente, os mais pobres. O Brasil não encarou esse desafio adequadamente.
Diminuir a desigualdade é difícil. Não há bala de prata que resolva o problema, ainda mais num país como o Brasil. O problema é que muita gente tem aversão ao tema. Você fala em combate à desigualdade e já acham que você quer nivelar por baixo, que todo mundo ganhe igual etc. Não é desse espantalho que estamos falando. Criticar a desigualdade não quer dizer que todo mundo tem de ser igual. Isso não aconteceu em lugar nenhum do mundo. Também não adiantar idealizar os países europeus. O acesso a todos aqueles serviços públicos não é só uma questão de renda mais alta. É resultado de sociedades muito menos desiguais do que a nossa. Todo brasileiro percebe que nossa desigualdade é uma das maiores do mundo e que esse contraste extremo entre ricos e pobres precisa diminuir para um patamar mais civilizado e compatível com a democracia.
4. Seu livro apresenta dados sobre a concentração da renda brasileira de 1926 a 2013. Como a sucessão de governos autoritários e democráticos nesse período impactou a distribuição de renda no Brasil?
É complicado atribuir o aumento ou a queda da desigualdade a ditaduras ou democracia, porque há outros fatores em jogo. Mas, fazendo um resumo um pouco grosseiro, é possível dizer que as ditaduras foram mais eficientes em aumentar a desigualdade do que a democracia em reduzi-la. Há períodos de aumento da desigualdade muito claros no Estado Novo (1937-1945) e depois do golpe militar de 1964 até, mais ou menos, 1972. Entre 1945 e 1964, houve uma queda razoável da desigualdade, mas essa tendência foi revertida pela ditadura e substituída por um forte aumento da desigualdade. Em períodos ditatoriais, é possível reformar instituições de modo autoritário e implementar mudanças que beneficiem um grupo restrito de aliados. A grande pergunta é: se há alguma relação entre democracia e combate à desigualdade, por que não vimos, depois da redemocratização, uma nítida redução da concentração de renda? Houve alguma inclusão social e melhora do acesso a padrões mínimos de bem-estar, consumo e serviços públicos, mas, em termos de desigualdade, a mudança não foi tão grande.
5. Por que a democracia não foi tão eficiente em combater a desigualdade?
Seria de esperar que os mais pobres votassem em massa em candidatos que implementassem políticas que os favorecessem, mas o mundo é mais complicado que isso. Na democracia, os ricos têm recursos econômicos, culturais, sociais e políticos para se organizar, conseguir vantagens junto ao Estado e impor vetos a determinadas mudanças que os prejudicariam, como um Imposto de Renda reformado para ser mais redistributivo. Ainda que ações que beneficiem a massa da população, como a valorização do salário mínimo, sejam muito visíveis, ações que beneficiam os ricos às vezes são obscuras, difíceis de entender e menos divulgadas, porque têm a ver com regulações muito específicas, condições de acesso a crédito e temas distantes do cotidiano.
6. O governo e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), argumentam que a reforma da Previdência combate privilégios e desigualdades. A oposição afirma o contrário: que a reforma vai aprofundar as desigualdades. Algum deles tem razão?
Quando o governo ( Michel ) Temer enviou sua reforma da Previdência ao Congresso, nós fizemos um trabalho aqui no Ipea para simular os efeitos distributivos da reforma. Concluímos que governo e oposição estavam errados: não haveria nem distribuição de renda nem caos social. Não conheço as entrelinhas do texto da reforma atual, mas, como é parecida com a de Temer, a aposta segura é que ela não vai impactar a desigualdade. O feito da reforma vai ser fiscal, não distributivo.