Época Ruan de Sousa Gabriel

Cartas suecas e cartões de Natal

Os indies suecos Jens Lekman e Annika Norlin passaram o ano trocando canções epistolares que ensinam sobre a estranha temporalidade guardada em envelopes
De janeiro a dezembro, os cantores indies suecos Jens Lekman e Annika Norlin trocaram cartas em forma de canções Foto: Reprodução
De janeiro a dezembro, os cantores indies suecos Jens Lekman e Annika Norlin trocaram cartas em forma de canções Foto: Reprodução

Em março de 2011, o jornal espanhol El País publicou um troca de e-mails entre os escritores Ricardo Piglia e Roberto Bolaño . Depois de conversarem sobre o que é ser latino-americano e concordarem que “os tradutores são os únicos verdadeiros profissionais da literatura”, Piglia contou que o compositor francês Erik Satie jamais abria as cartas que recebia de seus amigos, embora não deixasse nenhuma sem resposta. Satie olhava o nome do remetente e escrevia uma resposta. “A correspondência é fantástica porque todos falam de coisas diferentes e essa, obviamente, é a essência do diálogo”, afirmou Piglia.

Toda correspondência presume um diálogo: o remetente escreve umas linhas para um amigo (notícias, comentários sobre o tempo, delírios que ninguém diz em voz alta mas que soam bem por escrito), caminha até o correio, posta a carta e volta para casa (ou segue para o trabalho) torcendo para que envelope não se extravie, para que os carteiros não entrem em greve, para que a carta não se perca para sempre na portaria do prédio. Se o destinatário não for um discípulo de Satie, ele decerto abrirá o envelope e lerá com atenção o que o amigo lhe escreveu. Talvez responda. Escreva umas poucas páginas reagindo às perguntas propostas, comentando o tempo e contando as últimas novidades de sua vida – poucas, uma vez que escrever cartas é um exercício tão exigente (fisicamente até) que sobra pouco tempo para novidades. Com sorte, essa carta-resposta chegará a seu destino e depois virá outra, e outra, um vai-e-vem epistolar – um diálogo. Mas desconfio que Piglia esteja correto: o diálogo epistolar é sempre um monólogo, mesmo quando os envelopes são abertos e as cartas lidas. Não há como ser diferente, uma vez que as cartas correm num outro tempo, desigual e combinado. Uma carta é sempre um convite para que o destinatário fale de si, sem se preocupar com a coerência ou a possibilidade de entediar o destinatário (que talvez nem leia a carta...).

Ao longo deste ano, acompanhei uma correspondência que seguiu mais ou menos essas regras deduzidas do comentário de Piglia. De janeiro a dezembro, os cantores indies suecos Jens Lekman e Annika Norlin trocaram cartas em forma de canções (ou canções em forma de cartas). O projeto se chamou Correspondence e começou no dia 4 de janeiro, quando Lekman enviou uma canção a Norlin, “Who really needs who”, na qual recordava um amigo de infância chamado Francisco e se perguntava como fazer amigos depois de adulto. Cartas costumam ser cheias dessas perguntas desajeitadas, que não soam bem em voz alta. Nos últimos versos, Lekman perguntou: “Você gostaria de trocar cartas comigo?” (“Would you like to correspond?”). No primeiro dia de fevereiro, veio da resposta de Norlin, a carta-canção “Showering in Public”. E assim passou o ano: Lekman enviava uma carta-canção nos meses ímpares e Norlin respondia nos pares. Lekman já havia inventado um projeto parecido: Postcards . Ao longo de 2015, toda semana ele divulgou um cartão postal em forma de canção (ou uma canção em forma de cartão postal).

As cartas-canções são muito bonitas. Mas, às vezes, dá para desconfiar que Lekman e Norlin – compositores como Satie –, nem sequer ouviram o que o outro cantou antes de responder. Em algumas cartas-canções, o interlocutor nem ao menos é mencionado, como em “Forever Young, Forever Beautiful” e “Cosmetics Store”. Na maioria delas, o assunto da carta anterior é mencionado de passagem, como quem diz “eu li a sua carta, tá ok?”, mas logo começam monólogos delirantes, meio tristes e solitários. A solidão, aliás, é um tema que perpassa todas as cartas-canções. Em abril, Norlin escreveu que estava exausta e ansiosa, e que pensava em passar meses hibernando, como um urso despreocupado. “Toc-toc, você está aí? Me desculpe por te acordar, camarada ursa” (“Knock knock, are you there?/ Sorry to wake you my fellow bear”), respondeu Lekman em maio, e disse que perdeu a conta de quantas pessoas exaustas conhecia, “assombradas por listas de afazeres mais longas do que os créditos finais de um filme” (“I’ve seen too many people round me haunted/ By the cruelest to do lists/ longer than the end credits of movies”).

Lekman e Norlin se perdiam nas cartas falando de si mesmos: da solidão que sentiam e de como se sentiam menos sozinhos graças às cartas. Essa lamentação indie-nórdica não funcionaria numa conversa cara a cara, telefônica ou no WhatsApp. Ninguém aguenta conversar com quem só fala de si e transforma todo comentário do outro em uma história pessoal longuíssima e patética. Mas as cartas são outro registro, outro tempo. Uma carta, por mais confessional e delirante que seja, é sempre escrita para uma outra pessoa, que ao lê-la se reconhece ali, como coautor. Identifica-se com as reclamações, os delírios, as piadas, os relatos de sonhos e as histórias vergonhosas. O destinatário também é lido quando lê a carta que lhe escreveram. Talvez por isso os amigos de Satie, ao ler o que o compositor lhes escrevia em resposta, não desconfiavam que ele não tinha o hábito de abrir envelopes.

A cartas (inclusive as que se apresentam como canções) impõem uma nova temporalidade, que recusa o imediatismo do WhatsApp. Trocar cartas é um exercício de paciência. Nunca se sabe quando a próxima carta vai chegar (se chegar...). As greves, a humanidade dos carteiros, as intempéries, tudo pode impedir um envelope de chegar a seu destino. Lekman e Norlin sabem disso, embora não tenham explicado algumas demoras. Ele só enviou a carta de julho no dia 12! Talvez Norlin tenha pensado que ele desistira da correspondência. Talvez ela tenha atrasado de propósito a carta de agosto, entregue no dia 17. Missivistas costumam ser vingativos. Cartas também carregam notícias velhas. Uma carta não diz nada que já não tenha sido dito no WhatsApp (numa canção, Norlin comenta o resultado das eleições suecas com quase um mês de atraso). Cartas são lacunas no tempo. Escritas num presente que logo se transforma em passado para um destinatário que habita o futuro. Quando, num outro presente, o destinatário recebe a carta, ele lê um relato do passado, mas precisa respondê-lo pensando no futuro. Seriam as cartas uma indício da eternidade?

Outro indício da eternidade, penso eu, são as canções de Natal – os hinos religiosos, em geral, mas os natalinos em particular. A carta enviada por Norlin a Lekman em dezembro, que encerrou o projeto Correspondence, é sobre “Noite Feliz”, o que talvez transforme essa carta-canção num cartão de Natal. Norlin recorda (e ficcionaliza) que “Noite Feliz” foi escrita por um padre austríaco chamado Joseph, que pedira a seu amigo Franz para compor a melodia. Norlin imagina o coral da igreja cantando “Noite Feliz” pela primeira vez e pergunta: será que os coralistas se emocionaram? As velhinhas reclamaram do novo repertório natalino? “Eles não sabiam que ‘Noite Feliz’ seria ‘Noite Feliz’” ("They had no idea ‘Silent Night’ would turn out to be/ ‘Silent Night’), ou seja, eles não sabiam, naquele presente (1818), que essa canção sobre uma noite de um passado mítico seria cantada em todos os Natais do futuro, em todo o mundo, nas mais diversas línguas. Canções natalinas são como cartas, confundem a ordem do tempo. Uma canção de Natal cantada hoje é quase um eco de todas as vezes que foi cantada no passado (e no futuro). Assim como uma carta é um pedaço do passado lançado ao futuro e recebido no presente. Acho estranhamente reconfortante pensar nisso nas proximidades do ano novo. Só não sei se é consolo suficiente para quem descobriu que ninguém lia suas cartas.