Época Michel Gherman

Coluna | A política anti-iluminista de Bolsonaro

Direita e esquerda democráticas são parceiras nas perspectivas de igualdade e liberdade. A extrema-direita, que acredita que a origem deve garantir privilégios e a liberdade pode gerar caos, não
O presidente Jair Bolsonaro Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
O presidente Jair Bolsonaro Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Devemos assumir: estamos aprendendo muito nesses oito meses de governo do presidente Jair Bolsonaro. De fato, foram poucos os chefes de Estado que, escancarando seus posicionamentos, possibilitaram uma reflexão tão clara sobre a política e os limites das estruturas democráticas.

A extrema-direita de Bolsonaro é tão caricata, tão simplória e tão pornográfica (sim, acho que é essa uma boa palavra) que nos faz refletir efetivamente sobre o que é a própria extrema-direita, viabilizando, assim, uma melhor compreensão das políticas do atual governo brasileiro.

Vejamos. Tirando os setores ultraliberais na economia e alguns dos representantes do conservadorismo político entre os militares, o governo Bolsonaro (principalmente por aquilo que diz o próprio presidente) adota um discurso claramente anti-iluminista.

O anti-iluminismo surge como fenômeno político como reação ao iluminismo. Tal qual afirma o historiador israelense Zeev Sternhell, as luzes surgidas com a Revolução Francesa produzem, também, sombras. Essas sombras adotam o passado como utopia. Os anti-iluministas imaginam um mundo que já foi bom e que passou pela degeneração da modernidade.

O fim dos privilégios, a emergência da diversidade e a expansão de direitos para minorias chegam a ser insuportáveis para aqueles que desejam retornar a um lugar habitado apenas por iguais. Um lugar onde as diferenças eram invisíveis, e onde cada grupo sabia exatamente seu espaço. Esse mundo imaginado pela extrema-direita seria, ao mesmo tempo, menos móvel, mais fixo e mais previsível. As mudanças, sempre graduais, garantiriam a continuidade de uma ordem estável e harmônica.

Momentos de crise fazem essa perspectiva, esse sonho com o passado, despertar. As sombras reaparecem e modelos típicos do anti-iluminismo adquirem expressão política.

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Direita e esquerda democráticas são parceiras nas perspectivas de igualdade e liberdade. A extrema-direita, que acredita que a origem deve garantir privilégios e a liberdade pode gerar caos, não. Ademais, a extrema-direita não acredita na história. Para os grupos anti-iluministas, a história deve ser contada a partir de seus valores e ideologia. Trata-se de uma história para doutrinar, não para refletir. Rompendo com a história, esses grupos acreditam em perspectivas conspiratórias. “Judeus”, “ciganos”, “comunistas”, “maçons”, enfim, todos já foram alvo. Hoje, temos ONGs, professores de humanas, indígenas... a nova extrema-direita adequa os alvos a suas demandas.

Assim, não devemos esquecer essa referência ideológica na luta da extrema-direita brasileira contra  o governo centrista do presidente francês, Emmanuel Macron. Para Bolsonaro, as florestas devem ser usadas para produzir lucro. Os indígenas, por sua vez, invisibilizados. Os ecologistas, neutralizados. Ideologicamente, as queimadas são, portanto, o símbolo do progresso, a recuperação, no passado, de um mundo que segue adiante. Sem impedimentos, sem amarras civilizatórias.

Nada poderia ser mais simbólico que a disputa com a França. Macron encarna, no imaginário reacionário de Bolsonaro, a própria Revolução Francesa, a expansão dos direitos. Macron seria, portanto, de esquerda e inimigo.

Para Bolsonaro, este não é apenas um mal-entendido por erros diplomáticos. Trata-se de um embate civilizatório. Bolsonaro acredita defender a Europa real, original e, nessa equação, Macron representa a Europa degenerada e revolucionária. Não é casual que, nesse cardápio ideológico, Bolsonaro negue ajuda da França e aceite (ou melhor, peça) a de Israel. Tal qual a França representa, no imaginário da extrema-direita, a Revolução, Israel representa, nesse mesmo imaginário, o reino de David, a volta de Jesus, os valores cristãos.

Nada tem a ver com a França ou com Israel reais. Tem tudo a ver com os olhos com os quais a extrema-direita olha para ambos.

Michel Gherman é pesquisador do NIEJ-UFRJ e colaborador do Instituto Brasil-Israel (IBI)

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