Época Henrique Balbi

Coluna | Ágatha e Greta – o luto e a luta

É muito sintomático que, além da urgência e da gravidade dos fatos, sejam as imagens de duas garotas que tenham captado a atenção do público
A menina Agatha, de 8 anos, não resistiu aos ferimentos e morreu Foto: Reprodução
A menina Agatha, de 8 anos, não resistiu aos ferimentos e morreu Foto: Reprodução

Dois rostos de garotas estamparam notícias e publicações em redes sociais nos últimos dias. De um lado, a foto da sorridente Ágatha Félix, de oito anos, morta pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, segundo testemunhas do disparo letal. De outro, a foto da altiva Greta Thunberg, de dezesseis anos, ativista ambiental que se tornou ícone do movimento ecológico e da série de protestos da Greve Global pelo Clima. O luto e a luta.

As notícias falam por si só, embora ainda haja quem tente tergiversar ou se desviar do assunto: “não é bem assim”, “você tem que considerar que...”, “a situação é mais complexa”, etc. Para além de toda discussão, ou de toda tentativa retórica (mais ou menos agressiva) de suspender a discussão, persistem os fatos: as operações policiais do governo de Wilson Witzel no Rio de Janeiro têm entre suas consequências a morte de crianças em tiroteios ; as intervenções dos governos ao redor do mundo na questão ambiental são tímidas, quando não contraproducentes, para deter a escalada do colapso climático.

É muito sintomático que, além da urgência e da gravidade dos fatos, sejam as imagens de duas garotas que tenham captado a atenção do público. Em ambos os casos, entra em jogo o imaginário que vê na infância, e na juventude em geral, o porvir, o futuro – o velho clichê de que o amanhã pertence às crianças e aos adolescentes. Em seu discurso de abertura da Cúpula do Clima da ONU, Greta Thunberg subverteu intencionalmente o lugar-comum: “ Vocês roubaram meus sonhos e infância .”

Greta Thunberg discursa nas Nações Unidas Foto: Spencer Platt / Getty Images
Greta Thunberg discursa nas Nações Unidas Foto: Spencer Platt / Getty Images

Thunberg fez com que a autoindulgência de pais e mestres (a ladainha de que “estamos moldando um futuro melhor para nossos filhos”) se convertesse em acusação a quem trabalha e lucra com a aniquilação do futuro alheio, predando recursos naturais e devastando povos, formas de vida, cidades e ecossistemas. A mensagem deveria ecoar com ainda mais força no Brasil, onde empresas de mineração e de agropecuária, entre outras, estão diretamente implicadas nos impactos ecológicos destrutivos, na perseguição a povos indígenas ou na devastação de cidades como Brumadinho. Mas aqui o próprio Ministério responsável pelo meio ambiente é ocupado por uma figura como Ricardo Salles, ativamente empenhado em desinformação e sucateamento dos órgãos de fiscalização. Se a pasta se recusa a ouvir seus próprios servidores , por que esperar que um discurso ativista, internacional, tenha impacto sobre ela?

Mas não é só o discurso de Greta Thunberg que escancara o absurdo cotidiano e institucionalizado no Brasil; a morte de Ágatha Félix o evidencia ainda mais, por nos dizer respeito de modo mais explícito. Em seu artigo para Época , Luiz Fernando Vianna condensou num parágrafo a gravidade do fato, devidamente contextualizado: “A Ágatha de sexta-feira é o Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos, de 7 de setembro; é o Kauã Rozário, 11 anos, de 16 de maio; é o Kauan Peixoto, 12 anos, de 16 de março; é a Jenifer Cilene Gomes, 11 anos, de 14 de fevereiro. A morte de uma criança por bala de fuzil é medonha; as mortes de várias são estatísticas.” A reincidência nos estarrece tanto quanto o fato.

Ágatha gostava de jogar xadrez. Na foto, o tabuleiro que usava no Centro Educacional Rodrigues Silva Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Ágatha gostava de jogar xadrez. Na foto, o tabuleiro que usava no Centro Educacional Rodrigues Silva Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Não escapou a Vianna, como não deveria escapar a ninguém, o racismo que permeia toda a história. Ele está, por exemplo, no silêncio, na demora, no descaso e no cinismo das manifestações oficiais a respeito da morte de Ágatha, seja do governo de Witzel, seja da própria Polícia Militar, seja do governo de Bolsonaro, que fez sua carreira política na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Convém insistir na pergunta: as reações oficiais teriam sido as mesmas se a vítima fosse uma criança branca? A resposta está no texto de Vianna: “Neste país, carne negra e vida pobre como as de Ágatha valem menos.”

A reflexão, porém, deve seguir adiante. Nossas reações mesmo, dos cidadãos comuns, não podem ser problematizadas? Não estarão muito conformadas, ou então muito cínicas? Ou pior: não estarão colaborando para o ciclo de violência, se não concreta, ao menos simbólica? É preciso fazer o luto coletivo, mais amplo, da morte de Ágatha, mas ao mesmo tempo não devemos esquecer, como disse a poeta Stephanie Borges , de que assim como Ágatha Félix, “negra da favela”, há muitas meninas vivas e em risco.

Um dos desenhos de Ágatha Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo
Um dos desenhos de Ágatha Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

Há a dimensão simbólica, claro, que o compartilhamento de fotos e a indignação frente à notícia carregam. Evidentemente, é preciso tornar pública nossa oposição às ideias e às figuras políticas que produzem operações assassinas, genocidas. Mas ainda mais urgente é o fato de que há crianças, adultos, vidas em risco. Stephanie Borges, de novo: “parece que a desumanização nunca termina – em vida, crianças negras são invisíveis, são abstrações, a menos para quem está presente nas favelas e periferias; na morte se tornam símbolos.” Talvez devido à herança cristã, o debate público do Brasil (à esquerda e à direita) repercute com força a criação de mártires, que não deixam de ser também uma tentativa de compensação simbólica para traumas concretos. Será que isso ajuda ou atrapalha as lutas?

Não precisamos de novos mártires, pois a história brasileira está cheia deles e continua a criá-los, em escala industrial. Precisamos, sim, fazer com que o Estado brasileiro pare de matar quem ele diz proteger – seja por meio do esgotamento ecológico, seja por meio de balas de fuzil e ações letais da polícia. Mais do que fotos, as histórias de Ágatha e Greta são fatos, que exigem ação e resposta.

SOBRE O AUTOR
Henrique Balbi
é escritor e professor de literatura. Formou-se em jornalismo pela USP, onde também fez mestrado em Estudos Brasileiros e onde faz seu doutorado em Literatura Brasileira. Estagiou no núcleo de revistas da Folha de S.Paulo e foi colunista do site Salada de Cinema. Foi duas vezes finalista do Prêmio Off Flip de Literatura. Trabalha como assistente de ensino no Anglo Vestibulares desde 2016.
SOBRE O AUTOR
Henrique
Balbi
é escritor e professor de literatura. Formou-se em jornalismo pela USP, onde também fez mestrado em Estudos Brasileiros e onde faz seu doutorado em Literatura Brasileira. Estagiou no núcleo de revistas da Folha de S.Paulo e foi colunista do site Salada de Cinema. Foi duas vezes finalista do Prêmio Off Flip de Literatura. Trabalha como assistente de ensino no Anglo Vestibulares desde 2016.

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