Época Denis R. Burgierman

Coluna | Como a guerra contra as drogas mata as crianças

A proibição causa mais mortes do que qualquer substância ilícita; impedir o funcionamento deste mercado não é difícil: é absolutamente impossível
Manifestantes protestam contra morte de Agatha Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo
Manifestantes protestam contra morte de Agatha Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo

E a bala furou a carroceria da Kombi, passou pelo banco traseiro e entrou pelas costas da menina, parando seu coração, encerrando sua vida, aos 8 anos de idade. Uma tragédia. Uma fatalidade. O fim do mundo. E o desespero dos pais e do avô, que estava ao lado da criança dentro da kombi, são quase insuportáveis, quase impossíveis de conceber. Mas, ao mesmo tempo, o que aconteceu com Agatha é rotina, e nada indica que vá deixar de ser. No Brasil, matamos crianças.

Só no Rio de Janeiro, só este ano, outras 15 crianças foram baleados pela polícia, antes de Ágatha. Um menino de 11 anos foi abatido enquanto passeava de bicicleta, uma menina de 6 foi atingida quando dançava no quintal de casa, um bebê de menos de 2 perdeu a vida no colo da mãe. Um feto morreu baleado em abril, dentro da barriga da mãe, aos oito meses de gravidez. Rotina.

É óbvio que temos essa rotina porque temos péssimos políticos, que gostam de incitar a sede de sangue da população, surfando no medo que domina este país violento. Mês passado, o governador do Rio torrou dinheiro público com um voo de helicóptero só para ir comemorar a morte de uma pessoa pela polícia. Mas ele é incapaz de fazer uma só crítica às operações que matam crianças. Passa à polícia o recado implícito de que, havendo dúvida, é mais garantido atirar.

Mas Witzel só pode fazer isso porque o Brasil está se tornando um dos últimos países do mundo a adotar a estratégia da guerra às drogas, que é a tentativa de impedir a circulação de drogas com metralhadoras. Nenhum outro país da América Latina - e quase nenhum do mundo desenvolvido — insiste ainda na violenta e ineficaz criminalização dos usuários de drogas.

Não se trata de defender as drogas. Drogas são perigosas sim, ainda mais quando não têm nenhuma regulação, nenhum esforço de redução de danos por parte do Estado. É importante ter políticas públicas que busquem diminuir o consumo problemático de drogas. E é compreensível a ideia de reprimir esse mercado. Afinal, ninguém quer que drogas causem danos às pessoas - principalmente às crianças. Foi para proteger as crianças que proibimos as drogas.

Mas, na prática, não tem funcionado assim. A proibição mata muito mais crianças do que qualquer droga. Mata porque impedir o funcionamento do mercado de drogas não é difícil: é absolutamente impossível. Nunca nenhum país do mundo conseguiu. Há um mercado bilionário que a droga movimenta, e não importa quantas pessoas vão ser presas e mortas, sempre haverá alguém disposto a correr o risco de ocupar seu lugar.

O mercado ilegal de drogas cria inevitavelmente um incentivo para uma disputa do território. Vender drogas dá tanto lucro que vale a pena ir para a guerra para assumir o controle de uma boca. Essa disputa mata muita gente, o tempo todo — crianças inclusive. E não é só que mata: ela inferniza quem está vivo. Nesse ambiente, crianças têm dificuldade para ir à escola, para brincar, crescem oprimidas e traumatizadas com a violência.

Claro que não é em todo bairro que isso acontece, embora seja sim em todos os bairros (sem exceção) que há gente vendendo e usando drogas. Nas regiões ricas, nada disso tem consequências mais sérias. Mas, nas periferias, não bastasse a falta de serviços públicos de qualidade, há sempre balas voando.

Esse apartheid regional é consequência direta da guerra às drogas. No Brasil, a coisa é mais explícita ainda. Aqui, a polícia usa como critério para diferenciar usuário de traficante o bairro onde ele foi preso. Se for nos bairros centrais, mais ricos, é usuário. Se for na favela é traficante. Isso porque, na falta de critérios objetivos para distinguir uma coisa da outra, a Justiça aceita a argumentação de que traficante é quem é pego com droga numa região “dominada pelo tráfico”. E “região dominada pelo tráfico” é sinônimo de bairro pobre, sem serviços públicos.

A não ser que seja um lugar dominado pela milícia - principalmente no Rio de Janeiro, mas cada vez mais no Brasil todo. Milícias são máfias infiltradas no Estado, que entram na disputa por territórios contra os traficantes, para lucrar vendendo serviços de proteção e controlando o mercado negro da região. Um a mais em guerra para dominar territórios, fazendo voar balas para todo lado - e matando crianças.

As crianças que morrem assassinadas rotineiramente no Brasil são só a ponta extrema de um imenso iceberg. Se crianças morrem todo mês, adolescentes e jovens morrem aos montes todos os dias. Para cada 100 mil jovens brasileiros, 70 morrem assassinados, um índice holocáustico, entre os piores do mundo, semelhante ao do Haiti, país desestruturado e assolado por guerras civis.

A guerra contra as drogas é uma política extrema, que foi justificada pela necessidade de proteger os jovens das drogas. Mas ela não está fazendo isso, ao contrário - ela está matando-os. Enquanto isso, o mundo todo se move na direção de descriminalizar as drogas ou até legalizar algumas delas. O resultado que se vê dessas políticas mais racionais é bem claro: num ambiente bem regulado, menos jovens usam drogas, porque comerciantes pedem RG, traficantes não.

Mas, para além disso: países que tenham com políticas de drogas racionais não ficam matando crianças. Você não preferia viver num país onde matar crianças não é rotina?

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