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Coluna | Internet implodiu o conceito de obscenidade

Em 1973, no caso Miller versus Califórnia, a Suprema Corte Americana criou regra para definir quando algo é 'legalmente obsceno'
Jeremy Irons, como Humbert Humbert, e Dominique Swain, como Lolita, em cena do filme de Adrian Lyne Foto: Reprodução
Jeremy Irons, como Humbert Humbert, e Dominique Swain, como Lolita, em cena do filme de Adrian Lyne Foto: Reprodução

Há seis décadas era publicado no Reino Unido o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, em meio a uma grande polêmica.

A personagem que dá nome ao célebre romance do escritor russo é uma garota de 12 anos, 1,48 m de altura, ombros frágeis cor de mel, costas flexíveis e cabelos castanhos.

Seu nome é Dolores Haze — ou Lola, Dolly, Lo, Lolita — e ela mantém relações sexuais com o padrasto.

O livro foi recusado por quatro editoras americanas no ano anterior ao de sua primeira publicação, na França, em setembro de 1955, pela Olympia Press, que tinha no catálogo obras de escritores controversos como Samuel Beckett e Jean Genet, além de literatura erótica de segunda categoria.

Os 5 mil exemplares do romance, editado em inglês, esgotaram-se rapidamente. Pouco depois, a polícia francesa o baniu, e a obra ficou fora das prateleiras por dois anos.

Só em 1958 acabou publicada sem incidentes nos Estados Unidos e, em 1959, aportou na Inglaterra. Neste período chegou aos 100 mil exemplares nas primeiras semanas, marca antes alcançada apenas pelo dramalhão E o Vento Levou .

Os motivos dos ataques a Nabokov quando da publicação do livro não poderiam ser mais óbvios — foi descrito como obsceno.

Vladimir Nabokov era um homem inteligente, culto, vaidoso, sofisticado, imune à vulgaridade. Erudição, grande habilidade linguística e uma prosa ao mesmo tempo eloquente e elegante fizeram dele uma das mais respeitadas figuras da literatura no século XX.

Estreou em 1926 com o romance Machenka . Escreveu, entre outros, os romances Pnin (1957) e Fogo pálido (1962), diversos contos e a autobiografia A pessoa em questão (1967). Com Lolita , não só criou uma personagem memorável, como um clássico da literatura.

Causou ultraje a história do pedófilo confesso Humbert Humbert, um acadêmico europeu de 37 anos que chega aos Estados Unidos, hospeda-se na casa da viúva Charlotte Haze e se envolve com a filha adolescente.

A obra não foi proscrita porque, no fim dos anos 50, a Suprema Corte Americana e o Parlamento Britânico começavam a aprovar estatutos de proteção à palavra escrita.

Ao longo do tempo, muitas obras literárias foram descritas como obscenas ou processadas sob a lei da obscenidade, incluindo trabalhos de Baudelaire, Lenny Bruce, William Burroughs, Allen Ginsberg, James Joyce, D.H. Lawrence, Henry Miller, Beckett e o Marquês de Sade.

Em 1973, no caso Miller versus Califórnia, a Suprema Corte Americana criou uma regra para definir quando algo pode ser considerado “legalmente obsceno”.

No caso, o pornógrafo Marvin Miller havia sido preso após uma denúncia por obscenidade e a situação só foi solucionada após a interferência da corte.

Criou-se então o teste Miller, segundo o qual só podem ser considerados obscenos textos, imagens ou atos que, de maneira cumulativa, preencham três condições:

1) Se uma pessoa inserida regularmente no convívio social, seguindo padrões contemporâneos da sua comunidade, considere que o ato desperte interesse erótico.

2) Quando o ato retrata ou descreve conduta sexual de modo ofensivo, nos termos do que é definido em legislação aplicável ao caso.

3) Quando o ato não possua qualquer valor literário, artístico, político ou científico.

A criação da regra favoreceu a liberdade de expressão e contribuiu para diminuir atos autoritários — sempre preocupados com a violação dos valores da família tradicional e dos bons costumes — que insistem em surgir, como no episódio da Bienal do Livro , no Rio.

Sob a perspectiva do prefeito Crivella, o que significa “pessoa inserida regularmente no convívio social, seguindo padrões contemporâneos da sua comunidade”?

Na sociedade conectada em rede, as definições de “padrões contemporâneos” implodiram – e com elas se foram todos as possibilidades de consenso.

As redes sociais que uniram o planeta e democratizaram a produção e distribuição de informação também contribuíram para o surgimento da brutal polarização ideológica a que assistimos.

Conquistas civilizatórias históricas e discussões sobre arte e obscenidade que há muito haviam sido superadas encontram-se agora, de novo, em aberto.