Época Giampaolo Morgado Braga

Coluna | Legislar sobre homofobia não é papel do STF

Cabe ao Legislativo, e não ao Judiciário, decidir a hora de discutir um assunto e criminalizá-lo ou não
Por 8 votos a 3, STF decidiu que homofobia é crime equiparável ao racismo Foto: Agência O Globo
Por 8 votos a 3, STF decidiu que homofobia é crime equiparável ao racismo Foto: Agência O Globo

Na última vez em que dei uma olhada na Constituição Federal , há uns 15 minutos, estava lá no inciso 39 do artigo 5º: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Cominação significa proibição. Ou seja, em termos simples, não existe crime sem uma lei dizendo que aquela conduta é criminosa. Ou, em termos latinos, nulla poena sine leg e. Esse é um dos princípios do estado democrático de direito, é a base do funcionamento do sistema jurídico de persecução penal. Bom, pelo menos é o que se dizia. Oito dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal não pensam assim e decidiram , na semana passada, criminalizar a homofobia e a transfobia.

Sou contra qualquer discriminação de grupo. Seja por orientação sexual, sexo, cor da pele, procedência, etnia, inclinação ideológica, maneira de vestir, peso, corte de cabelo, o que seja. Homofobia realmente deveria ser crime. Mas o STF escolheu o pior caminho para isso. Lei quem faz é o Legislativo. Pelo menos aqui no Brasil, enquanto o chamado Direito consuetudinário — ou seja, baseado nos costumes, em que decisões judiciais viram leis “não escritas” — não se instala de vez, a fórceps.

Se o STF, que é formalmente o guardião da Constituição (pelo menos é o que está no seu artigo 102 e no próprio site do Supremo ), está mexendo nos alicerces da Carta com essa tranquilidade, talvez seja hora de usarmos guarda-chuvas de aço para não levarmos os escombros da Lei Maior na cabeça.

A tese estabelecida pelo STF determina que a decisão vale até que o Congresso crie uma lei a respeito. Parece uma faca colocada no pescoço da Câmara e do Senado. Hoje é com a homofobia, algo condenável sob qualquer aspecto e que já tem projetos tramitando a respeito. Mas acho que cabe ao Legislativo, e não ao Judiciário, decidir a hora de discutir um assunto e criminalizá-lo ou não. Quem tem o voto dado pela sociedade e a representa são os deputados e os senadores. Os ministros do STF não disputam eleição.

A tese do STF também iguala o crime de homofobia ao de racismo. “O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos”, diz a decisão. Valerá essa leitura elástica, então, para outros grupos? Além disso, a tese exclui as igrejas. Padres, pastores, mulás, rabinos etc. poderão pregar contra homossexuais e trans, desde que não configure discurso de ódio. Valerá a leitura elástica ao contrário, então? Poderão pregar contra negros, judeus, árabes, índios etc.?

Além disso, se a homofobia e a transfobia agora são crimes, em teoria passa a ser possível também cometer a falsa comunicação de crime, a denunciação caluniosa. Se uma pessoa for acusada de um crime e restar provado que não o cometeu — e que o acusador sabia disso — a pena é de dois a oito anos de reclusão. Maior que a da homofobia.

A Constituição, goste-se dela ou não, tem um alicerce, e ele é o extenso artigo 5º. Se dá para jogar fora um inciso, dá para jogar todos. Onde passa um boi, passa uma boiada. Alguns exemplos de coisas que não deveriam ser mexidas:

II - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III - Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

IV - É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

VIII - Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX - É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XV - É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

XXII - É garantido o direito de propriedade;

XXXVI - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

XXXVII - Não haverá juízo ou tribunal de exceção;

Na verdade, o artigo 5º está bom do jeitinho que é. Tanto que tem 78 incisos e foi bem pouco alterado nos últimos 31 anos. A questão central não é homofobia ser crime. É bom que seja: pessoas não devem ser discriminadas pelo que decidem fazer na sua vida privada, sem incomodar ninguém nem fazer mal algum à sociedade. O problema é como o STF fez isso.

O Supremo é uma instituição centenária, maior do que a soma dos seus integrantes. Há quem afirme que deve ouvir a voz rouca das ruas na hora de julgar. Humildemente, discordo. Pela vontade de uma parcela significativa da sociedade, teríamos pena de morte no país — proibida pelo mesmo artigo 5º da Constituição. Vamos mexer nisso? Ou na proibição das penas perpétuas, ou de trabalhos forçados? Cláusulas pétreas são exatamente isso, gravadas em pedra. Não em massinha de modelar.