Época Ruan de Sousa Gabriel

Coluna | Narradora de 'O quarto branco', de Gabriela Aguerre, enfrenta luto com a força das palavras

Gloria, a protagonista do romance, parece obcecada em descrever a realidade para organizá-la
Praça da Independência em Montevidéu Foto: Bettmann / Bettmann Archive
Praça da Independência em Montevidéu Foto: Bettmann / Bettmann Archive

Duas cenas, ou melhor, duas reflexões da narradora, me chamaram atenção em O quarto branco , romance de estreia de Gabriela Aguerre publicado pela Todavia. Lá pelo meio do livro, ela descreve a feira conhecida por Tristán Narvaja, que se estende por dezenas de quarteirões nos arredores da Avenida Dieciocho de Julio, na Ciudad Vieja, o centro de Montevidéu. Quem passeia pela Tristán Narvaja aos domingos vai encontrar badulaques diversos à venda: roupas, livros, discos, antiguidades, muletas, dentaduras, cartões-postais, mercadorias brasileiras. É difícil andar no meio de toda aquela mercadoria, daquela gente, daqueles cheiros. Mas, para Gloria, a narradora, “visitar Tristán Narvaja em uma manhã de domingo é entrar em contato com a organização possível do mundo”. Tristán Narvaja para ela “é a paz das coisas em seus lugares: tudo tem lugar e permanece disposto de forma harmoniosa”. Como uma feira congestionada e barulhenta pode ser um modelo de organização (ainda que possível ) e remeter a harmonia e paz? A feira não é lugar das vozes escandalosas, das disputas mesquinhas, dos pequenos golpes, das oportunidades imperdíveis, da briga pelos sentidos e pelo bolso de quem passa? Como essa confusão toda pode ser tomada como metáfora para a ordem ?

A outra cena/reflexão aparece quase no fim do livro (que é curto, 120 páginas), quando Gloria recorda o primeiro quadro que ganhou do namorado, um pintor húngaro e daltônico: “O dia em que ganhei um quadro de uma baleia e ele significou amor, e que amor significava que vai dar certo”. Para Gloria não bastava que aquele quadro simbolizasse o amor que nascia e no qual ela se decidia por apostar. Ela procurava significados nos diversos elementos da pintura: “a tinta do polvo se espalhando para significar medo, o peixe escapando do cardume querendo dizer sozinho, e voltando pro cardume mudando de ideia: juntos”. Não era suficiente a pintura significar amor? Por que era necessário conhecer todas as partes que constituíam esse amor como quem disseca um inseto para saber como funcionam as patinhas, as asas, tudo aquilo que é o inseto?

Não sei, mas suspeito que a desordem — da feira, do amor — deixasse Gloria um pouco desconfortável. Ela confessa que voltava à feira para reaprender a reorganizar o mundo (notem a repetição: re aprender, re organizar). E lembra que quando era criança “ninguém se atrevia muito a falar das coisas como eram, mas sim de como pareciam ser, deveriam ser, poderiam ser. Ser era verbo que não vinha sozinho”. Esses verbos colados ao “ser” não parecem tentar domesticá-lo? Importa menos o que as coisas de fato são do que o que elas poderiam ser, deveriam ser . Importa se apropriar da pretensa lógica por trás da irracionalidade do amor (e da arte abstrata). Importa descobrir harmonia e paz no barulho da feira.

Ao longo do livro, o leitor vai descobrindo mais sobre Gloria e seu hábito de “procurar conforto na ordem”. Mais do que o desenvolvimento do enredo, da ação, é essa mania da narradora de procurar a ordem, de atar todas as pontas, de distribuir pontos finais em histórias mal resolvidas, de lutar contra o é mas não deveria/poderia ser, que torna instigante a leitura de O quarto branco . Gloria é uma uruguaia que veio para São Paulo ainda menina com a família, fugindo da ditadura de lá. Quando nasceu, era gêmea e se chamava Gaia. Gloria era o nome da irmã dela, que morreu ainda bebê. Os nomes foram trocados quando mãe percebeu que Gloria morria engasgada e a batizou com água da pia, mudando seu nome para Gaia. A que nasceu Gloria morreu e foi enterrada como Gaia. A que nasceu Gaia foi criada como Gloria e só descobriu na adolescência que teve outro nome. Gloria cresce carregando lutos. Ao luto pela irmã morta, soma-se o luto por si própria, pois ela nasceu Gaia e, para a burocracia uruguaia, Gaia morreu ainda bebê e está enterrada num cemitério montevideano.

Beirando os 40 anos, Gloria enfrenta um novo luto. Depois de sofrer um aborto espontâneo, ela descobre que não poderá mais ter filhos. Ela perde o bebê e o emprego no mesmo dia. No meio de tudo disso, ainda precisa cuidar o pai hospitalizado (será mais um luto que se anuncia?). O luto talvez seja um pouco como o amor, avesso à lógica – talvez seja inútil dissecá-lo, saber de quais partes ele se constitui para tentar entendê-lo, dominá-lo, vencê-lo antes que ele nos vença. Mas Gloria quer resolver esses lutos todos e, para isso, parte para o Uruguai. Antes de viajar, ela precisa fazer as malas, uma ação que, ninguém há de ficar surpreso, lhe dá prazer: “Nada me dá mais a sensação de ordem do que arrumar uma mala. Não só o que precisa ir como o que fica: tudo vai permanecendo no lugar certo, pelas razões certas, até a razão mais insondável”. Gloria passa uns dias em Montevidéu e estende a viagem para o balneário de La Paloma, apesar de ser inverno. Na viagem, ela realiza alguns gestos, meio ritualísticos, na tentativa de elaborar esses lutos misturados, pela irmã que morreu ainda bebê e pelo bebê que morreu dentro dela. Os gestos às vezes parecem meio bobos, insuficientes demais, simbólicos demais, para elaborar uma dor que não some num passe de mágica. Mas não são meio bobos quase todos os gestos que tentam botar ordem no que é, em essência, caótico, como o amor, o luto e a feira livre?

Gloria é uma narradora bastante atenta: ela descreve com diligência e criatividade tudo que vê, tudo de que se lembra. E descreve com todos os sentidos. Parece ter — ou procurar ter — uma atenção plena do que acontece a sua volta, como se estivesse sempre alerta e não pudesse deixar nada escapar (de seu controle?). Essa linguagem minuciosa espelha a personalidade da narradora, os modos como ela se relaciona com o mundo, como se usasse as palavras para se apropriar de uma realidade às vezes caótica e dolorida. Com as palavras, ela parece tentar ordenar essa realidade, encontrar fechos adequados para o que luto deixou aberto. É curioso que a imagem do título de um livro tão descritivo – um quarto branco – seja tão fácil de descrever e tão diferente de uma feira ou de uma tela abstrata. Como se o objetivo final dessa narradora fosse encontrar uma realidade suficientemente simples, harmônica e pacífica, que pudesse ser descrita sem torturar tanto a linguagem e quem dela faz uso.

SOBRE O AUTOR
Ruan de Sousa Gabriel
É repórter da revista ÉPOCA e do jornal O GLOBO. Estudou jornalismo e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Escreve sobre livros e mercado editorial em ÉPOCA desde 2015.
SOBRE O AUTOR
Ruan de Sousa
Gabriel
É repórter da revista ÉPOCA e do jornal O GLOBO. Estudou jornalismo e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Escreve sobre livros e mercado editorial em ÉPOCA desde 2015.