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Coluna | No México, política, polícia e cartéis se misturam; devemos evitar ir pelo mesmo caminho

O caso dos 43 estudantes foi um divisor de águas porque deixou claro que política, polícia e cartéis eram a mesma pessoa
Protesto, neste ano, contra o sumiço dos 43 estudantes Foto: Cristopher Rogel Blanquet / Getty Images
Protesto, neste ano, contra o sumiço dos 43 estudantes Foto: Cristopher Rogel Blanquet / Getty Images

Essa semana, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, pediu que a procuradoria-geral da República “cure uma ferida” antiga do país: resolver o caso do desaparecimento dos 43 estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, do povoado de Ayotzinapa, no estado mexicano de Guerrero. A pedido do presidente, chefe da Fiscalía General de la República, Alejandro Gertz Manero, se comprometeu com os pais dos estudantes a reconstituir a investigação do zero. A decisão foi tomada depois que 24 suspeitos de envolvimento no crime terem sido libertados sob a justificativa de que foram torturados enquanto estavam presos. Há são 77 suspeitos em liberdade. O México é conhecido pelos assassinatos espetaculosos cometidos por grupos narcotraficantes. Em 2009, por exemplo, 300 corpos foram dissolvidos em ácido a mando do cartel de Tijuana. 2010, 72 imigrantes foram executados pelo cartel dos Zetas. No ano seguinte, três veículos foram abandonados em uma ponte em Guadalajara às véspera da Feira Internacional do Livro, a maior do mundo em língua espanhola.

Mas o desaparecimento dos 43 estudantes marcou o México. Eram jovens estudantes de 17, 18, 19 anos, que deixaram suas famílias numa eterna espera torturante, por não saberem até hoje, cinco anos depois, o aconteceu com eles.

Em 2014, viajei a Ayotzinapa para ajudar na apuração do que aconteceu com os meninos no dia do desaparecimento. Ainda hoje, pouco se avançou nas investigações. Sabe-se que por volta de seis da tarde do dia 26 de setembro de 2014, dezenas de estudantes saíram em dois ônibus a caminho da cidade vizinha, Iguala. Eles iam fazer boteo, como chamam as ações em que arrecadam dinheiro parando motoristas no trânsito, para custear para uma viagem à Cidade do México para a celebração dos 46 anos do Massacre de Tlatelolco, quando centenas de manifestantes foram mortos pela polícia. Na cidade, pegaram mais três ônibus e arrecadaram o dinheiro que precisavam sem maiores sobressaltos. Naquele mesmo horário, porém, a primeira-dama de Iguala, María de los Ángeles Pineda Villa, filha e irmã de narcotraficantes do cartel Guerreros Unidos, participava de um ato político na cidade. O prefeito José Luis Abarca tinha uma rixa antiga com os normalistas e pediu que seu diretor municipal de Segurança Pública detivesse os jovens, ordem cumprida pelo chefe da polícia.

Protesto em 2017 Foto: Manuel Velazquez | Anadolu Agency / Getty Images
Protesto em 2017 Foto: Manuel Velazquez | Anadolu Agency / Getty Images

Os ônibus onde estavam os rapazes foram abordados por policiais armados com fuzis, que dispararam sem aviso. Dois estudantes foram mortos no local. Um foi encontrado no dia seguinte com a pele do rosto arrancada. Vinte e cinco pessoas confundidas com estudantes saíram feridas na noite do massacre. E 43 estudantes desapareceram.

Pela investigação da procuradoria-geral, os estudantes teriam sido entregues pela polícia a sicários do cartel Guerreros Unidos, que queimaram seus corpos e jogaram os restos em um rio. O caso foi um divisor de águas porque não dava mais para o governo colocar o massacre na conta de um grupo criminoso isolado. Estava claro ali que política, polícia e cartéis eram a mesma pessoa.

Na época, Enrique Peña Nieto estava na presidência com seu topete inabalável e a promessa de fazer reformas estruturais na economia – palavras mágicas que conquistaram a confiança de investidores e analistas. Na revista Time , foi chamado, na capa, de “salvador do México”. A tragédia de Ayotzinapa atropelou seus planos. A The Economist foi contundente: “O México nunca conseguirá alcançar o potencial que deseja sem um honesto e eficiente sistema de justiça criminal. Sua democracia vai perder legitimidade se os seus políticos continuarem a tolerar a corrupção”.

O Brasil deveria tomar o caso como lição. Somos o país mais assassino do mundo. Segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 57.341 mortes violentas em 2018. O número é menor que o ano anterior, mas o país bateu o recorde de mortes causadas pela polícia: 6.220.

Reformas econômicas são importantes (quando feitas com preocupação social), mas a ligação cada vez mais evidente da política com a milícia e o aumento do discurso de desprezo em relação aos direitos humanos nunca nos deixará cumprir nosso potencial como país.

SOBRE A AUTORA
Carol Pires
É jornalista e roteirista. Passou pelas redações do Estadão e da revista piauí e hoje escreve para a seção de opinião do The New York Times en Español. É mestre em estudos latinoamericanos pela Columbia University.
SOBRE A AUTORA
Carol Pires
é jornalista e roteirista. Passou pelas redações do Estadão e da revista piauí e hoje escreve para a seção de opinião do The New York Times en Español. É mestre em estudos latinoamericanos pela Columbia University.