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Coluna | O México é um novo país. Mas só nos discursos do presidente

Mais de 61 mil pessoas foram desaparecidas no México nos últimos anos; o atual governo tem encampado buscas por desaparecidos e já encontrou 800 covas clandestinas e mais de mil corpos, a grande maioria homens e jovens entre 15 e 34 anos
México: a disparada no número de homicídios é creditada à estratégia de Calderón de militarização do confronto contra os cartéis Foto: NurPhoto / NurPhoto via Getty Images
México: a disparada no número de homicídios é creditada à estratégia de Calderón de militarização do confronto contra os cartéis Foto: NurPhoto / NurPhoto via Getty Images

Mais de 61 mil pessoas desapareceram no México nos últimos anos, vítimas sobretudo da guerra entre os cartéis e contra os cartéis. O número, divulgado nesta semana, é substancialmente maior que o da última estimativa, de 40 mil desaparecidos, e faz parte de um esforço do governo de Andrés Manuel López Obrador, que tomou posse há pouco mais de um ano, de dar mais transparência ao problema endêmico. Seu discurso, de fato, parece desenhar um novo país. Mas, na prática, a violência segue igual. Ou pior.

A nova cifra engloba pessoas desaparecidas à força desde 1964, mas o grosso dos números é de 2006, quando o então presidente Felipe Calderón lançou uma ofensiva militar contra os cartéis. Desde então, 250 mil pessoas foram mortas. No caso dos desparecidos, as famílias vivem um tipo diferente de luto, sem poder velar seus entes, possivelmente mortos, e com pouca ou nenhuma ajuda estatal em seus esforços de ainda os encontrarem vivos. O resultado é uma sociedade traumatizada.

A disparada no número de homicídios é creditada à estratégia de Calderón de militarização do confronto contra os cartéis. A reação dos grupos narcotraficantes foi se armar à altura e tornar seus assassinatos cada vez mais cruéis e midiáticos. Quando querem mandar um sinal, penduram cabeças decepadas em pontes ou corpos amontoados em carros estacionados em centros urbanos.

Quando não querem deixar vestígios, dissolvem corpos em ácido ou enterram em covas coletivas em lugares inóspitos. No caso mais emblemático do governo anterior, de Enrique Peña Nieto, 43 estudantes foram sequestrados por uma banda corrupta da polícia em Ayotzinapa, supostamente confundidos com integrantes de um grupo criminoso. Isso foi em 2014. Jamais foram encontrados.

Já López Obrador, primeiro presidente de esquerda do país, foi eleito prometendo pacificar o México com uma política de segurança baseada em "abrazos no balazos" (abraços, não tiros). Sua estratégia seria combater a corrupção policial, criar uma Guarda Nacional, legalizar a maconha e outras drogas para enfraquecer a economia dos cartéis, e investir em programas sociais para afastar a população mais vulnerável do crime. Mas, em seu primeiro semestre como presidente, a taxa de homicídios bateu um recorde.

O governo tem encampado buscas por desaparecidos e já encontrou 800 covas clandestinas. Ao todo foram encontrados 1.124 corpos, a grande maioria homens e jovens entre 15 e 34 anos. Mas há inclusive crianças. Muitos são sequestrados para se juntar forçadamente aos cartéis e outros, especialmente imigrantes, são extorquidos e depois mortos. Dos corpos encontrados até agora, 395 foram identificados e os restos de 243 foram entregues às famílias. Cavar a terra no México tornou-se uma atividade invariavelmente forense, como certa vez escreveu Juan Villoro, celebrado escritor mexicano.

Por outro lado, López Obrador tem sido cobrado por não ter uma estratégia eficiente para lidar com a violência. Em outubro, Ovidio Guzmán, filho do maior traficante mexicano, Chapo Gúzmán (preso nos Estados Unidos), foi detido e liberado em seguida depois que o cartel de Sinaloa cercou a cidade de Culiacán e promoveu uma onda de ataques.

Para López Obrador, a decisão de soltar o narcotraficante foi acertada. "Isso não é mais uma guerra. Não se trata mais de força, confronto, aniquilação, extermínio ou matança no calor do momento. Trata-se de pensar em como salvar vidas e alcançar a paz e tranquilidade no país usando outros métodos", disse o presidente na ocasião. Mas críticos de sua gestão — e em especial dessa decisão — viram na ação despreparo da polícia e uma sinalização do governo de que o poder paralelo é quem está no comando.

O controle territorial disputado por grupos criminosos está cada vez mais complexo. Se antes o governo combatia sete grandes cartéis, hoje, descabeçados, se tornaram cerca de 80 grupos. E eles não se confrontam apenas pelo domínio do tráfico de drogas. Há disputa  pelo tráfico de madeira, de combustível e até de abacate. No meio disso, milhares de jovens vulneráveis estão dispostos a se somar a essa guerra descontrolada. Por isso faz todo o sentido que o governo invista em programas sociais e na criação de empregos. Mas, das promessas do presidente mexicano, apenas uma foi cumprida até aqui: a criação da Guarda Nacional.

Para Alejandra Izunza, autora do livro Narcoamérica: de los Andes a Manhattan, 55.000 km tras la ruta de la cocaína (Narcoamérica: doas Andes a Manhattan, 55 mil quilômetros em busca da rota da cocaína) , o discurso ambíguo de López Obrador é uma estratégia. "Ele fala de anistia, de legalização, de não confrontação, mas o país segue militarizado, fazendo operações para prender chefes do tráfico. Suas ações mostram uma perpetuação da estratégia de Calderón e Peña Nieto. Com esse discurso duplo, ele mantém sua popularidade entre os eleitores, dizendo que está salvando vidas civis, mas segue com operações em todo o país, como no caso do Ovidio Guzmán".

"Acredito que ninguém, hoje, no México, é capaz de dizer qual é sua estratégia de segurança", me disse Izunza. Segundo ela, que é mexicana e cofundou o projeto Dromómanos, que investiga o narcotráfico na América Latina, enquanto o eleitor médio fica satisfeito quando ele diz que não mataram mais ninguém na operação contra o Ovidio, na mesma semana outras operações militares tinham matado pelo menos 50 pessoas. "Neste momento, a situação é um emaranhado difícil de entender e resolver e é muito perigoso não ter claro para onde estamos caminhando".