Época Ruan de Sousa Gabriel

Coluna | Romance de Ana Paula Maia nos lembra do tempo em que vivemos

Obra com referências bíblicas e sem referências temporais, 'Enterre seus mortos' foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e é forte candidato ao Jabuti
A escritora Ana Paula Maia Foto: Rafael Dabul/Divulgaçao
A escritora Ana Paula Maia Foto: Rafael Dabul/Divulgaçao

Quase no final do primeiro capítulo de Enterre seus mortos , romance de Ana Paula Maia publicado pela Companhia das Letras, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e forte candidato ao Jabuti, aparecem pequenos grupos de evangélicos atravessando a pé uma estrada poeirenta num canto esquecido do Brasil. A cena parece singela, quase bonita: homens e mulheres humildes, metidos em ternos baratos e saias compridas, carregando suas Bíblias debaixo do braço, caminham com dignidade, como se viessem do passado, de um tempo em que os evangélicos eram associados à honestidade e ao trabalho, e não a projetos totalitários. Mas só parece. Embora não haja referências temporais em Enterre seus mortos , o leitor logo é lembrado dos tempos em que vivemos, nos quais o adjetivo “evangélico”, tão bonito, foi associado ao advérbio “terrivelmente”: “encurvados aos pés de um Cristo irado e cheio de juízo e de fúria, eles apontam suas Bíblias como quem aponta uma pistola”. Os crentes dividem a estrada com prostitutas e travestis “que, por sua vez, preferem continuar perdidos a manter a cartela de clientes”. O fundamentalismo furioso, “terrivelmente evangélico”, e a ausência de marcas temporais explícitas, que dá a impressão de um tempo que não passa, de uma eternidade infernal, fazem de Enterre seus mortos um romance assustador.

O protagonista de Enterre seus mortos é Edgar Wilson, que também aparece em outros romances de Maia. Ele trabalha recolhendo corpos de animais mortos à beira de estrada. Aos sábados, faz bicos no moedor onde essas carcaças são trituradas. Nessa cidadezinha sem nome, há uma pedreira que, três vezes ao dia, dinamita uma rocha de calcário, lançando por toda parte pedras que ferem pessoas e matam animais: “desde que o sino da igreja parou por falta de quem o toque, as horas canônicas são contadas pelas explosões na pedreira”. O colega de trabalho de Edgar Wilson é Tomás, um padre excomungado, com uma coroa de espinhos tatuada no braço, que continua dando a extrema-unção aos moribundos.

Um dia, Edgar Wilson depara com o corpo de uma mulher enforcada no meio do mato (uma prostituta, talvez?). A polícia avisa que não pode recolher o corpo e que o único carro funerário da cidade está quebrado. Para não abandoná-lo aos abutres, Edgar Wilson guarda o corpo num freezer. Poucos dias depois, encontra um homem morto na mata. Ele também vai para o freezer, porque o rabecão da prefeitura continua quebrado. Enterre seus mortos passa a narrar as tentativas de Edgar Wilson e Tomás de encontrar um Instituto Médico Legal (IML) que possa receber esses dois corpos que ninguém nunca reclamou. Enquanto acompanha o percurso dos dois, o leitor volta a ser assombrado pelo fundamentalismo religioso e pelo tempo que parece não passar.

Enterre seus mortos é narrado todo no presente. A linguagem é direta e excessivamente descritiva. O narrador se atém aos fatos e descreve o que os personagens fazem mais do que o que eles pensam ou sentem. Tudo é muito concreto num lugar onde chovem pedras e se tropeça em homens e bichos mortos pelo caminho. Maia tem uma habilidade extraordinária para descrever a lentidão dos gestos: seus personagens fumam e bebem café tranquila e tristemente, saem do banheiro ainda fechando o zíper da calça, ajeitam com o polegar a comida na colher antes de levá-la a boca, lambem o dedo médio para virar vagarosamente as páginas. Há algo de familiar nesses gestos, como se a tranquilidade cotidiana deles também denunciasse a precariedade e a concretude da realidade onde vivem. Uma realidade apartada do tempo: não há menções a celulares ou outros badulaques tecnológicos. Edgar Wilson e Tomás consultam um mapa de papel e o único relógio que aparece parou de funcionar às três e quinze da tarde. O que “narra os minutos que transcorrem” são as explosões na pedreira e “o rangido do limpador de para-brisa”.

É curioso que o tempo não passe num lugar tão religioso: uma das função da religião não é regular o tempo, organizar o calendário? A religião descrita em Enterre seus mortos parece ter perdido todas as suas virtudes e se reduzido a violência e ressentimento. Tomás foi excomungado porque matara um homem em legítima defesa. As autoridades católicas o expulsaram não porque ele derramara sangue, mas porque incomodara as pretensões políticas de um bispo. E os evangélicos, tudo que eles querem é justamente sair do tempo, se libertar da concretude desse mundo tenebroso, “aguardar pela volta de Jesus Cristo, que levará Consigo, para o céu, todos os seus fiéis”.

Um dia, depois do trabalho, Edgar Wilson observa um batismo dos crentes, vê cada um deles submergir nas “águas turvas do rio” e voltar à superfície uma nova criatura. Aos olhos de Edgar Wilson, lembra um ritual de terror, porque o rio onde são batizados os novos crentes é “imundo, vasto e poluído, alimentado por dejetos orgânicos e pelo esgoto, que encobre nas profundezas o horror dos mortos insepultos”. A percepção de Edgar Wilson é interessante: de que adianta manter rituais de pureza quando tudo ao redor está desmoronando? Por um lado, insistir no ritual apesar das adversidades é resistir, é recusar dar a última palavra à precariedade e à distopia. Por outro, às vezes se insiste no ritual justamente para ignorar a água suja, para se manter à parte de uma realidade e se eximir de enfrentá-la. Depois de assistir ao batismo, Edgar Wilson olha para o céu: “não há nada no céu: nem fúria, nem anjos, nem santos. É um céu vazio”.

O céu é descrito várias vezes em Enterre seus mortos . E é sempre um céu vazio, nublado, “toldado”, ameaçador, “áspero e cinzento, como se algo estivesse pressionando para baixo e vedando a luz do sol”. É um céu sem Deus. No entanto, diz o narrador, “por essas bandas a fé em Deus é o bem maior que possuem”, “é a única opção que resta”. Enterre seus mortos descreve um mundo entupido de religião, mas vazio de Deus. Lembra um pouco um daqueles filmes desesperadores de Ingmar Bergman sobre o silêncio de Deus (se Bergman filmasse em rincões esquecidos e chuvosos dos trópicos).

No meio desse mundo sem Deus, surgem dois heróis bíblicos : Edgar Wilson e Tomás. Edgar Wilson um dia encontra uma colmeia de abelhas no meio da carcaça de uma vaca. No Antigo Testamento, Sansão se empanturra com o mel que encontrou na caveira de um leão. Seria Edgar Wilson o Sansão de seu rincão abandonado? Ele não parece forte. Talvez alguma Dalila já tenha cortado seus cabelos. Mas é bom lembrar que foi quando estava fraco e cego que Sansão foi capaz de vingar seu povo. E Tomás, o padre excomungado, é apresentado pelo narrador como “um homem de dores”. É assim que o profeta Isaías se refere ao messias libertador: “um homem de dores”. À primeira vista, perdidos em seu rincão bergmaniano-tropical e preocupados em dar um enterro digno aos mortos, parece faltar heroísmo bíblico a Edgar Wilson e Tomás. Mas muitos dos heróis bíblicos não eram homens que apenas buscava fazer e pregar o que era justo em tempos em que o fanatismo do povo era instrumentalizado pelos poderosos? De fato, mesmo sem referências temporais, Enterre seus mortos nos lembra do tempo em que vivemos.

SOBRE O AUTOR
Ruan de Sousa Gabriel
É repórter da revista ÉPOCA e do jornal O GLOBO. Estudou jornalismo e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Escreve sobre livros e mercado editorial em ÉPOCA desde 2015.
SOBRE O AUTOR
Ruan de Sousa
Gabriel
É repórter da revista ÉPOCA e do jornal O GLOBO. Estudou jornalismo e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Escreve sobre livros e mercado editorial em ÉPOCA desde 2015.