Época Fábio Campos

Coluna | Vigiar e punir: Como as ideias do modelo militar se traduziriam no ambiente escolar?

O decreto das escolas cívico-militares representa uma visão punitivista e ultrapassada de sociedade
O presidente Jair Bolsonaro participa da comemoração pelos 130 anos do Colégio Militar, na Tijuca Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
O presidente Jair Bolsonaro participa da comemoração pelos 130 anos do Colégio Militar, na Tijuca Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Alunos fardados cantando o hino nacional, sob a supervisão cerrada de militares da reserva. Esta é uma das faces visíveis do recente decreto das escolas cívico-militares, um projeto elitista e desacertado. Contrariando o presidente, que afirmou que prefeitos e governadores "têm que impor" o modelo a gestores escolares, é preciso sim questionar o que exatamente as escolas cívico-militares pretendem resolver.

Defensores do modelo militar na educação alegam três razões para sua ampliação em escala nacional: a disciplina como caminho para o desenvolvimento do aluno, o resgate do respeito ao professor e a promoção de valores cívicos e patrióticos. Como estas ideias se traduziriam no ambiente escolar?

Primeiro, há que se perguntar que tipo de disciplina é necessária para o crescimento do aluno. Do ponto de vista pedagógico, a lógica militar hierárquica e punitivista, onde respeito é imposto e não conquistado, certamente não é a mais adequada. Sobram no Brasil centros de "correção" de menores infratores onde imperam a disciplina imposta, a punição muitas vezes violenta e, não obstante, a falta de oportunidades de aprendizagem. Devemos também questionar que tipo de educação cívica desejamos para nossos alunos. Amor à bandeira somente não leva a uma sociedade mais justa e igualitária.

Não é de hoje que circula no país a falácia de que a educação militar é superior ao modelo civil. Inúmeros estudos, entretanto, já mostraram que a educação durante o regime dos generais não teve resultados tão positivos . Tampouco há evidências de que as atuais escolas cívico-militares tenham resultados expressivamente superiores no IDEB. Então por que afirmar com tanta veemência — contrariando as evidências — que ordem e disciplina são a solução para a educação?

A resposta é simples: ideologia. A defesa de uma escola baseada em valores militares é tão ideológica — e portanto baseada em um conjunto de ideias e crenças — quanto a escola religiosa. Escolhe-se uma instituição de ensino cristã ou judaica, por exemplo, não somente mirando em resultados acadêmicos, mas sobretudo pela oferta de valores religiosos e culturais. Escola religiosa, entretanto, é opcional e não deve ser imposta a ninguém. O mesmo deveria se aplicar à fé na ordem e progresso, ou à adoração de objetos dito sacrossantos como a bandeira nacional: a crença de alguns não pode se traduzir em plano de nação. Num país tão diverso como o Brasil, Deus e Pátria nem sempre estarão acima de tudo ou de todos.

Enquanto o governo advoga pelo militarismo, a elite brasileira procura cada vez mais por pedagogias "modernas" e "alternativas" para seus filhos. Nas grandes capitais do país, aumentam as filas de alunos aguardando a chance de estudar em instituições de excelência, que trabalham para desenvolver a criatividade, autonomia e pensamento crítico, habilidades apontadas pela OCDE como essenciais para o século 21. Em geral, famílias brasileiras com maior poder aquisitivo passam longe da educação militar.

Se não para os mais ricos, é importante questionar para quem toda a ordem e disciplina do novo decreto será direcionada. A se considerar suas perspectivas de expansão (mais de 200 escolas públicas nos próximos três anos), combinadas às ideias desacertadas de alguns governadores e prefeitos, o decreto pode acabar mirando no aluno da periferia. São os filhos da classe trabalhadora — justamente aqueles que já vivem em ambientes onde imperam a disciplina forçada, a hierarquia e o autoritarismo de milicianos, traficantes e policiais — que serão vigiados e punidos pela nova escola cívico-militar.

Voltemos às evidências. O Brasil é um país onde a cultura militar muitas vezes se confunde com violência. A última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, mostra um aumento de quase 20% nas mortes violentas provocadas por policiais. As vítimas são quase sempre jovens negros do sexo masculino. Episódios recentes envolvendo as Forças Armadas, como o fuzilamento de um carro com 80 tiros, não ficam para trás.

É preciso questionar como instituições que promovem o uso da força em nome da ordem e disciplina podem atuar no ensino ou na melhoria do ambiente escolar. Nada leva o cidadão brasileiro a crer que militares de diferentes corporações possam ser educadores adequados para meninos e meninas das periferias do país.

Aos que defendem as escolas cívico-militares, cabe explicar claramente a que se presta o modelo. É necessário deixar claras suas reais vantagens com base em estudos e evidências e não em  ideologias obscuras e ultrapassadas.

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EM TEMPO: Escolas democráticas, baseadas na liberdade, autonomia e gestão participativa, são o tema de “República de Crianças”, de Helena Singer. Vale ler para voltar a acreditar.

Fabio Campos é mestre em Educação pela Universidade de Stanford, pesquisador em Educação e Tecnologia na New York University e co-fundador do Curso Invest, programa de educação popular no Rio de Janeiro.

Colaborou Samantha Barthelemy, pesquisadora em Segurança Pública e prevenção à violência na John Jay School of Criminal Justice, Nova Iorque.