Época Colunistas Denis R. Burgierman

Coluna | Estamos vivendo um levante contra a complexidade da vida, que passou a ser vista como 'coisa de comunista'

O jeito de lidar com a existência é estudar muito, até entender – e se cercar de gente que estudou
Albert Einstein: físico alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física moderna ao lado da mecânica quântica Foto: Reprodução
Albert Einstein: físico alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física moderna ao lado da mecânica quântica Foto: Reprodução

É ruim não entender alguma coisa. Pior ainda é sentir que, enquanto estamos por fora, tem alguém entendendo tudo. Poucos desconfortos são tão grandes: o de estar boiando em meio a um monte de gente que parece estar sacando tudo. Que raiva.

Sei bem disso. Mal formado em jornalismo, com especialização em bar, comecei minha carreira no jornalismo de ciência convivendo com fontes que diziam coisas que pareciam impossíveis de entender. Física quântica, por exemplo. Cazzo. Sério mesmo que os caras estão convencidos, pelos cálculos que fizeram, de que uma partícula pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, que seu estado real é impossível de conhecer, que informação pode ser teletransportada, que tudo é feito basicamente de nada?

Passei anos lendo e relendo aquelas teorias, dando tapas na testa de raiva da distância que havia entre mim e a compreensão profunda daqueles fatos que eu tinha que explicar. Mas eu sabia que o problema era comigo, não com os fatos. Eu respeitava aqueles físicos, Albert Einstein a frente, e partia do princípio de que, se eu estudasse o suficiente, aquilo tudo acabaria fazendo sentido.

Pois outro dia veio bater aqui nas redes sociais um texto de uma outra pessoa frustrada com a complexidade do tema. Eu entendo a frustração, claro. O que não entra na minha cabeça é a forma como essa turma que está fazendo sucesso nas redes sociais lida com ela. Era um artigo, de estilo arrogante, confiante, assinado por um especialista em "produtos financeiros e gestão de risco", chamado "A complicação como método ideológico".

Em linha gerais, o texto argumentava que toda a complicação foi inventada pela esquerda, como parte de um complicado plano de dominação. "Todo sistema de ideias que seja simples, claro e objetivo, está do lado da Verdade", afirmava o artigo, já errando na colocação da vírgula.

Sobre física quântica, tema que passei anos de minha vida suando para compreender, o tal gestor de risco dizia que "ganhou a fama de ser o ramo científico onde ‘tudo pode’". Haveria aí uma conspiração da esquerda que faz sentido porque "harmoniza" com o uso de drogas, com a ideia de que o indivíduo é uma ilusão, criando uma justificativa racional para a irresponsabilidade e o ateísmo."

O artigo, publicado pelo Instituto Liberal, acabou tirado do ar, tantas eram as bobagens que continha (ficou no entanto guardado para a posteridade nos arquivos da internet). Mas a ideia maluca de que toda a complexidade é má e que aquilo que o meu senso comum me diz vale tanto quanto qualquer teoria científica tornou-se surpreendentemente comum, os terraplanistas que o digam. Assim como ficou comum atribuir toda a complexidade do mundo aos malditos esquerdistas.

Esses talvez sejam os credos centrais do evangelho de Olavo de Carvalho, o polemista digital que influencia o governo Bolsonaro. Olavo gosta de se caracterizar como uma mente livre, igual à dos filósofos gregos antigos, capaz de opinar sobre qualquer coisa sem precisar de conhecimento profundo sobre absolutamente nada – seu intelecto superior é capaz de entender tudo, sem nem precisar estudar.

Numa aula, no meio de um longo comentário sobre teorias que ele evidentemente não conhecia nem um pouquinho, ele soltou: "se eu estiver certo e o Stephen Hawking, errado, qual é o problema? Qualquer um pode falar uma besteira. Eu já falei, o Albert Einstein já falou." Olavo frequentemente usa sua incompreensão de algo como prova de que essa coisa deve estar errada – fez isso em aulas sobre a física quântica, a evolução, a neurociência. Hoje esse palpitismo está no poder.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump, sempre que se incomoda com a complicação do mundo real, inventa teorias próprias, bem mais simples. E essas teorias tiradas do ar embasam boa parte das políticas públicas do país mais poderoso do mundo.

Jair Bolsonaro sintetizou essa demonização da complexidade e glorificação da ignorância ao comentar no início do ano que os livros didáticos de hoje em dia contêm "um montão de um amontoado de muita coisa escrita". Para que tanta complicação? O presidente prometeu para o próximo ano livros mais simples. De novo, a culpa pela complexidade foi colocada na esquerda.

Mas aceitar a complexidade do mundo não tem nada a ver com esquerdismo. Verdadeiros liberais sabem que a sociedade é complexa – e até por isso são tradicionalmente contrários a governantes que, como Bolsonaro, tentam brincar de engenheiro social, microgerenciando os livros didáticos, as escolhas de reitores, o preço do combustível, as multas na estrada, para tentar conformar a sociedade às suas crenças.

A complexidade do mundo é uma realidade da vida, não uma conspiração da esquerda. O jeito de lidar com ela é estudar muito, até entender – e se cercar de gente que estudou. Negar a existência da complexidade não tem a menor chance de fazê-la desaparecer.