Época Colunistas Thiago B. Mendonça

Coluna | ''O homem invisível', de Leigh Whannell e o perigo de subtrair os clássicos

Sua situação invisível poderia caminhar por muitas searas e é uma metáfora poderosa para pensarmos a vida de milhões de pessoas na sociedade atual
O homem invisível, de Leigh Whannell Foto: Divulgação
O homem invisível, de Leigh Whannell Foto: Divulgação

Uma nova versão de O homem invisível chega ao público acompanhada de uma grande campanha publicitária. O filme é adaptação de um clássico da ficção científica, escrito por H.G. Wells no final do século XIX, e já foi levado para as telas em algumas ocasiões. Sua versão mais conhecida é a de James Whale, diretor que se notabilizou como um dos pais do filme de horror, tendo em sua trajetória obras como o icônico Frankenstein (1931) e A casa sinistra (1932).

A nova versão tem como diretor o australiano Leigh Whannell, responsável por filmes que, apesar do sucesso, não são memoráveis, como Sobrenatural: a origem (2015) e Upgrade: atualização (2018).

O diretor tem uma trajetória curiosa. Iniciou sua carreira na TV, trabalhando como ator, mas sonhava um dia fazer filmes. Foi na faculdade que se aproximou de James Wan, na época um aspirante a diretor, nascido na Malásia, que com o tempo se tornou um fenômeno da indústria cinematográfica, realizando obras que se tornaram franquias de sucesso como Jogos mortais , Sobrenatural e Invocação do mal . Whannell foi responsável com Wan pelos roteiros de algumas dessas obras. O sucesso lhe cacifou para que passasse à direção.

O novo O homem invisível não tem como protagonista, como no livro e nas demais adaptações, o cientista que descobre uma forma de se tornar invisível, mudando o índice de refração de luz que incide sobre seu corpo. A trama original tinha como foco justamente a impossibilidade de o cientista voltar seu estado natural, após sua transformação, e seu consequente desespero e demência.

Elisabeth Moss em cena do filme 'O homem invisível' Foto: Divulgação
Elisabeth Moss em cena do filme 'O homem invisível' Foto: Divulgação

Numa tentativa de trazer a história para os tempos atuais, a protagonista é sua esposa Cecília (Elisabeth Moss), vítima de uma relação abusiva, com constantes violências. Ela foge da casa em que vive, uma espécie de cárcere privado. Refugiada na casa de amigos, recebe a notícia da morte do marido, que teria cometido suicídio.

Mas, após esse fato, começa a se sentir observada e a duvidar de que ele tenha realmente falecido.
Whannell se mostra um diretor habilidoso ao conduzir as situações de perseguição e as atuações do elenco. Se sua concepção visual não é brilhante, tampouco é desprezível. Mas é justamente no roteiro, área que o consagrou, que encontramos os maiores problemas de O homem invisível . Suas escolhas tiram força do suspense e deixam a trama previsível.

Em primeiro lugar, não há dúvidas, desde o primeiro momento, de que o marido está vivo, que se tornou invisível e que é ele que a assombra. Não são criadas condições para que pensemos que Cecília pode de fato estar louca, que as situações sejam fruto de sua imaginação. Como consequência, o que veremos é a constante perseguição do vilão, um gênio do mal, perturbando sua vítima.

O suspense é substituído pela ação. Whannell aposta mais nos efeitos especiais do que nos efeitos psicológicos e, com isso, quem perde é o filme. A boa atuação de Elisabeth Moss não poderia salvar a trama da previsibilidade.

Cena de 'O homem invisível' Foto: Divulgação
Cena de 'O homem invisível' Foto: Divulgação

O diretor poderia ter seguido outros caminhos, a começar pelo indicado no livro, pois nenhuma obra torna-se um clássico por acaso: o desespero de um cientista, vítima de seu próprio experimento, que não pode voltar à condição humana. Sua situação invisível poderia caminhar por muitas searas e é uma metáfora poderosa para pensarmos a vida de milhões de pessoas na sociedade atual. Mas essa condição sequer é tratada pelo filme.

O cientista é um personagem plano, sem contradições, que tem como única meta manipular e submeter as pessoas as suas vontades e que pode optar, à hora que bem entender, por voltar parsua condição natural. Mais próximo dos supervilões da Marvel do que da obra de Wells, ele não possui densidade para gerar qualquer sentimento além da rejeição.

Outra possibilidade (entre muitas) seria radicalizar a escolha central do filme, colocando de lado a obra original para, a partir da história de Cecília, trabalhar com a paranoia de alguém que vive perseguida por seu passado de relacionamento abusivo. Um personagem que não sabe se a fantasmagoria que lhe acossa é real ou imaginária.

A construção desse conflito mergulharia de modo mais efetivo na questão do trauma, abrindo caminho para o desenvolvimento de um suspense com mais sofisticação. Whannell tampouco investe nesta possibilidade, pois sabemos desde o princípio que o marido é real, a observa e interfere em sua vida, utilizando-se dos seus conhecimentos científicos para permanecer oculto. É uma pena. Mais de 120 anos após ser imaginado por H.G. Wells, O homem invisível merecia uma construção mais elaborada.

Em cartaz em mais de 30 cidades em todos os estados brasileiros.

Thiago B. Mendonça é crítico de cinema, diretor e roteirista.