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Época 1105

Como Abdellah Taïa interpreta o amor e a música brasileira

Escritor marroquino fala de sua descoberta da MPB e da influência do colonialismo nas relações amorosas
“Quando eu voltar ao Brasil, vou ter aprendido português de tanto copiar as letras das canções de Agepê”, disse o escritor e cineasta marroquino Abdellah Taïa. Foto: Larry Busacca / Getty Images
“Quando eu voltar ao Brasil, vou ter aprendido português de tanto copiar as letras das canções de Agepê”, disse o escritor e cineasta marroquino Abdellah Taïa. Foto: Larry Busacca / Getty Images

Quando veio ao Brasil pela primeira vez, em outubro do ano passado, para lançar o romance Aquele é digno de ser amado , pela editora Nós, em Porto Alegre, São Paulo e no Rio de Janeiro, o escritor e cineasta marroquino Abdellah Taïa soube que teria dois dias sem compromissos na capital gaúcha. Mas não seriam dois dias de folga. Taïa trouxera na bagagem um pouco de trabalho atrasado. Ele colaborava com a produção de um filme da cineasta alemã Anne Zohra Berrached que conta a história de amor — trágica, obviamente — entre um rapaz árabe e uma moça turca. O rapaz acaba morrendo, mas deixa uma carta para sua amada. A missão de Taïa era redigir essa carta baseando-se numa carta real, escrita por um rapaz árabe para uma moça turca. Ele estava procrastinando havia dois meses, mas, ao desembarcar no Brasil, soube que a cena em que a mocinha leria a carta de seu amante morto seria rodada dali a uma semana. Ele precisava correr para escrever a carta, em francês, a tempo de ser traduzida para o alemão.

“Bem, já que estou no Brasil, talvez o Brasil me ajude a escrever essa carta”, pensou. Taïa foi ao YouTube e buscou por “chanson brésilienne” (música brasileira, na tradução do francês). A primeira canção que apareceu foi “Deixa eu te amar”, do sambista carioca Agepê (1942-1995). Taïa se encantou pela batida, mas não sabia o que Agepê cantava. Com a ajuda do Google Tradutor, descobriu o que Agepê pedia à moça: “Laisse-moi t’aimer”. Talvez fosse isso que um rapaz diria à namorada numa carta póstuma, não? Inspirado pelos versos do sambista, Taïa conseguiu, enfim, escrever a carta. O filme será lançado no ano que vem, com o título A mulher do piloto .

Taïa voltou ao Brasil em agosto. Participou da Bienal do Livro do Ceará, em Fortaleza, e da Balada Literária, em Salvador, e passou uns dias em São Paulo, onde conversou com ÉPOCA numa tarde amena de terça-feira. Aproveitou a viagem para alargar seus conhecimentos de Música Popular Brasileira com a ajuda de sua editora, Simone Paulino, que o apresentou a Marisa Monte, Ana Carolina, Adriana Calcanhotto, Maria Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso e Cidade Negra. As canções de que Taïa mais gostou foram “Amor, I love you” e “Depois”, de Marisa Monte, e “Quem de nós dois”, de Ana Carolina. “Gosto muito de Maria Bethânia e Caetano, mas meu favorito ainda é Agepê”, disse. “Quando eu voltar ao Brasil, vou ter aprendido português de tanto copiar as letras das canções.”

Cena de “Exército da salvação”, uma “adaptação infiel” do romance de mesmo nome de Taïa. Foto: Collection Christophel © Les films de Pierre / AFP
Cena de “Exército da salvação”, uma “adaptação infiel” do romance de mesmo nome de Taïa. Foto: Collection Christophel © Les films de Pierre / AFP

Taïa nasceu em Rabat, capital do Marrocos, em 1973, numa família humilde. Ele é o oitavo de nove filhos. Seu pai trabalhava como zelador numa biblioteca, onde a família chegou a morar por um tempo. Mas Taïa não ligava para os livros quando era menino. “É uma história bonita de contar, que eu nasci numa biblioteca, mas não posso mentir e dizer que o cheiro dos livros me impressionava e que eu queria ler todos aqueles livros e um dia me tornar escritor”, confessou. Ele preferia os filmes egípcios que passavam na televisão e pensava em ser cineasta, em estudar cinema na França. Acabou estudando literatura francesa, primeiro na Suíça, para onde partiu em 1998, e depois em Paris, onde vive há duas décadas.

“Quando cheguei à França, queria impressionar os franceses, falar sobre ( o escritor ) Victor Hugo e ( o cineasta ) François Truffaut, mostrar que eu conhecia a cultura francesa, mas depois percebi que os franceses não sabiam nada sobre nós, os árabes”, contou. “Por que eles nunca me faziam perguntas sobre mim ou sobre minha mãe? Os parisienses não achavam que meu mundo árabe, muçulmano e pobre era digno deles. Só queriam falar de Michel Foucault e Roland Barthes ( filósofos ), de Isabelle Huppert e Isabelle Adjani ( atrizes ). A França me empurrava para ser quem eu não era. Eu teria de abandonar minhas origens para agradar a eles. Mas por que eu faria isso se eles não estavam sequer interessados em mim?” Aos poucos, Taïa foi “perdendo o medo” da França e encontrou na literatura um lugar para elaborar essas questões.

“Taïa foi um dos primeiros intelectuais árabes a assumirem sua homossexualidade em público. ‘No Marrocos, onde a homossexualidade é ilegal, se você é afeminado, dizem que você é o mal, mas, se acharem você sozinho, vão estuprá-lo’, disse”

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Taïa defende que literatura não se faz só com ideias. Em vez de discorrer longamente sobre as feridas coloniais, ele conta histórias de pais e filhos, de amantes, para apontar como as estruturas de poder forjadas sob o colonialismo permanecem e ainda contaminam até mesmo as relações mais íntimas. Quem quiser entender como todos esses assuntos se entrelaçam pode arriscar a leitura de Aquele que é digno de ser amado , o único de seus romances disponível aos leitores brasileiros, em tradução de Paulo Werneck. A dica é do próprio escritor. A editora Nós promete, para o ano que vem, traduzir outro romance de Taïa, Un pays pour mourir ( Um país para morrer ), em que imigrantes árabes acabam se prostituindo nas ruas de Paris.

Aquele que é digno de ser amado é um romance epistolar. São quatro cartas. Duas escritas por Ahmed, um marroquino beirando os 40 anos, homossexual, que vive em Paris desde a juventude. A primeira carta é dirigida a sua mãe morta, a quem ele chama de “ditadora”. A mãe era uma mulher fálica, que amava apenas seu primogênito e usava o sexo para chantagear e humilhar o marido. Na outra carta, Ahmed acerta as contas com Emmanuel, o amante que ele está prestes a abandonar, um francês mais velho e rico que o tirou do Marrocos. As outras duas cartas são destinadas a Ahmed. Uma delas é escrita por um ex-amante francês que o acusa de ser “ditador”. A última fora enviada 15 anos antes por um amigo marroquino, um adolescente que presta serviços sexuais a um francês. Todas as relações descritas no romance são assimétricas. Sempre uma das partes (os homens franceses e a mãe) detém todo o poder. Taïa não crê em nenhum tipo de emancipação. “Tudo é poder. Nunca somos livres, nem no amor”, provocou.

Taïa foi um dos primeiros intelectuais árabes a assumirem sua homossexualidade em público. Em 2006, ele foi capa da revista marroquina de língua francesa Tel Quel . “Homosexuel, envers et contre tous” (“Homossexual, contra tudo e contra todos”), dizia a manchete. A entrevista fez algum barulho, mas o estrondo veio mesmo quando Taïa deu entrevistas a jornais em língua árabe e falou não só de sua orientação sexual, mas também dos inúmeros abusos que sofreu ao longo de sua vida no Marrocos, onde a homossexualidade é ilegal. “Todo mundo sabe o que acontece no Marrocos, mas há muita hipocrisia, e quem sofre são os mais vulneráveis. Se você é afeminado, dizem que você é o mal, mas, se acharem você sozinho, vão estuprá-lo e ainda insultá-lo”, afirmou.

Capa da revista marroquina em que o escritor declarou ser homossexual. Foto: Reprodução
Capa da revista marroquina em que o escritor declarou ser homossexual. Foto: Reprodução

Os livros de Taïa estão disponíveis no Marrocos e foi lá que ele filmou Exército da salvação , uma “adaptação infiel” de seu romance homônimo. O livro e o filme são inspirados nas experiências de Taïa no Marrocos e na Suíça e em sua relação com seu irmão mais velho, adorado pela mãe. A quase ausência de diálogos indica o silêncio mantido pelos marroquinos quando o assunto é a sexualidade.

Taïa não quer ser um escritor que denuncia a repressão política e sexual do mundo árabe de seu apartamento na libérrima Paris. Ele prefere denunciar a França: os crimes do colonialismo, a islamofobia e a tentativa de transformar a literatura de escritores como ele, um “gay livre”, em panfletos contra os países árabes. E ele quer denunciar a França em francês, “na língua do inimigo”. “Na época das colônias, a França tratava os árabes como indigentes. Agora precisam que gays livres como eu venham dizer que a França é boazinha e os países árabes são malvados”, afirmou. No começo, ele suspeitava que os franceses não tolerariam seus livros. Ao perceber que a recepção era positiva, investiu em confrontos ainda mais duros. Seu último romance, La vie lente ( A vida lenta ), narra a improvável amizade de duas figuras marginalizadas pela sociedade francesa: um homossexual árabe e uma idosa. “Para mim, é chocante como o Ocidente trata os idosos. Quando você não pode mais consumir, eles querem que você morra sozinho”, disse. “Minha relação com a França nunca foi de amor e fascinação. Nunca venerei a França. Só venero Isabelle Adjani — porque o pai dela era argelino!” La vie lente foi indicado ao Goncourt, o mais prestigioso prêmio das letras francesas.