Época Ruan de Sousa Gabriel

Como entender a adesão de tios e tias ao fascismo?

O rei das sombras, romance de Javier Cercas, investiga o que leva pessoas decentes a defender a barbárie
Multidão franquista comemora na Puerta del Sol, em Madrid. Em 1939 Foto: DE AGOSTINI PICTURE LIBRARY / DeA / Biblioteca Ambrosiana
Multidão franquista comemora na Puerta del Sol, em Madrid. Em 1939 Foto: DE AGOSTINI PICTURE LIBRARY / DeA / Biblioteca Ambrosiana

O escritor espanhol Javier Cercas afirma que escrever um romance é propor uma pergunta complexa da forma mais complexa possível — e não respondê-la . “Formular uma questão é resolvê-la”, já dizia o velho Marx. Cercas construiu seu último romance, O rei das sombras (Biblioteca Azul), em cima da seguinte pergunta: “Será possível ser um jovem nobre e puro e ao mesmo tempo lutar por uma causa errada?”. A pergunta foi inspirada por um retrato desbotado que Cercas conhecia das visitas infantis à casa da avó, em Ibahernando, uma cidadezinha rural espanhola não muito longe da fronteira portuguesa. No retrato, um rapaz muito jovem, quase um menino, fardado, desviava os olhos para a direita. Era Manuel Mena, tio-avô de Cercas, que, em 1936, alistou-se no exército fascista de Francisco Franco para lutar contra os republicanos na Guerra Civil Espanhola. Morreu em 1939, no campo de batalha, poucos meses antes da vitória fascista.

Sim, Cercas teve um tio fascista. Mas Manuel Mena era de fato fascista ou estava sendo manipulado? Um moço inteligente e amoroso, Manuel Mena aderira ao fascismo e pegara em armas em defesa da barbárie por convicção ideológica ou por ter sido enganado, ludibriado por mentiras? Li O rei das sombras em novembro passado, pouco depois das eleições, naquelas semanas longuíssimas em que porções consideráveis da internet discutiam se suas tias eram fascistas ou se estavam sendo manipuladas por fake news distribuídas em grupos de WhatsApp. Os paralelos entre o que Cercas narra no romance e o que assistíamos (e continuamos assistindo) no Brasil são irrecusáveis. Talvez por falta de informação, talvez por mau-caratismo, as tias brasileiras apoiaram uma plataforma política que lembra um pouco aquela pela qual Manuel Mena morreu: uma combinação de desprezo pela democracia, nacionalismo delirante, anticomunismo paranoico, fundamentalismo religioso e propostas econômicas regressivas. Será possível ser um cidadão decente e defender quem exalta torturador, tem saudades da ditadura e se opõe aos direitos humanos e aos direitos sociais?

No romance, Cercas descreve como a polarização contaminou e minou as relações sociais e familiares da pequena Ibahernando. Havia bares para a esquerda e bares para a direita; bailes para os socialistas e republicanos e bailes para os franquistas. Uns espalhavam boatos sobre os outros, queimavam as colheitas de seus inimigos políticos — ou melhor, daqueles que achavam ser seus inimigos políticos. Ibahernando era composta por uma diminuta elite de aristocratas, donos de todas as terras, mas que viviam em Madri e pouco pisavam na cidadezinha. A maioria da população era de camponeses — uns pobres, arrendatários ou pequeníssimos proprietários de terra; outros, miseráveis, sem terra nenhuma. Naqueles tempos de radicalização política, uma estranha luta de classes tomou Ibahernando: os pobres se uniram aos aristocratas em defesa da tradição, da propriedade e do fascismo contra os miseráveis, a República e o espectro do comunismo. “Comam República”, diziam os que quase não tinham comida aos que passavam fome.

“Como é possível que vocês não tenham entendido que seus verdadeiros inimigos eram, sei lá, a duquesa de Valência, o duque de Arión, o marquês de Santa Marta, que moravam em Madri, e não os pequenos proprietários e arrendatários de Ibahernando? Como é possível que vocês não tenham entendido que seu inimigo de classe não eram as pessoas daqui, mas as de lá, e que, em vez de combater os daqui, o que vocês tinham de fazer era se aliar a eles contra os de lá?”, pergunta outro tio de Cercas, um socialista. “Isto é o mais triste do destino de Manuel Mena. Além de morrer por uma causa injusta, morreu lutando por interesses que não eram os dele”, responde Cercas, algumas páginas depois. Será que as tias fascistas brasileiras também apoiaram interesses que não eram os delas? Será que consideraram inimigos aqueles que, na verdade, eram aliados potenciais e se uniram a seus verdadeiros inimigos de classe? É razoável afirmar que muitas tias votaram num programa econômico que pouco ou nada as beneficiará; tomaram como seus inimigos aqueles que dependem de políticas de transferência de renda para viver com alguma dignidade e aqueles cujo comportamento é reprovado por padres e pastores que preferem o Levítico ao Sermão da Montanha.

Em janeiro, o Datafolha divulgou um punhado de pesquisas que escancaravam a distância entre o que pensam os brasileiros e o que promete o novo governo . Os aliados do presidente assediam professores e os acusam de doutrinação vermelha, mas 72% da população quer que assuntos políticos sejam discutidos nas salas de aula. A educação sexual nas escolas é defendida por 55% dos brasileiros; 59% são contrários ao encolhimento das leis trabalhistas. Os que se opõem à redução das áreas destinadas a reservas indígenas representam 62%. E, por fim, 69% são contra facilitar o acesso a armas de fogo. Ao que parece, a maioria dos brasileiros se opõe às principais obsessões do novo governo. Se assim é, como esse governo foi eleito? Os brasileiros votaram contra seus próprios interesses? Será que fomos acometidos por uma “síndrome de Manuel Mena”, cujo sintoma é a adesão acrítica a interesses que não são nossos, mas, sim, dos donos das terras e do dinheiro?

No fim, a pergunta de Cercas nos conduz a outra pergunta: Manuel Mena lutou pelo fascismo porque o enganaram, convenceram-no a lutar por interesses que não eram os dele. Mas como? Como um jovem nobre e puro foi convencido a lutar pela barbárie que destruiria sua vida? Como as tias brasileiras foram convencidas a apoiar um programa que pode lançá-las na insegurança econômica e social? Responder a essa pergunta não é tarefa fácil, como indicam as quase 300 páginas de O rei das sombras , mas, quem sabe, possamos refiná-la, formulá-la melhor. Pode ser o primeiro passo para começar a resolvê-la.

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P.S.: Correndo o risco de argumentar contra a minha própria argumentação, devo dizer que suspeito de que, mais do que uma investigação sobre o fascismo familiar, O rei das sombras seja um livro sobre um narrador que tenta se emancipar da própria mãe. Reparem neste trecho: “Me tornara escritor para não ser escrito por minha mãe, para que minha mãe não escrevesse meu destino com o destino que ela considerava mais elevado”.