Época 1087

Como escritores fazem dinheiro à margem dos grandes mercados editoriais

Rodando circuitos alternativos e periféricos, autores vendem milhares de exemplares
Publicados por editoras independentes, os escritores das periferias vendem por meio do contato direto com o leitor, em um circuito que inclui eventos literários em bares e centros comunitários. Foto: Apu Gomes / Folhapress
Publicados por editoras independentes, os escritores das periferias vendem por meio do contato direto com o leitor, em um circuito que inclui eventos literários em bares e centros comunitários. Foto: Apu Gomes / Folhapress

Mais do que poeta, Akins Kintê se vê como “feirante”. Vendendo seus livros de mão em mão, aprendeu por experiência própria que não pode perder tempo na hora de negociar. Criado na Brasilândia, distrito da Zona Norte de São Paulo, ele transformou em versos suas peregrinações por leitores: Vendedor ambulante/Sou um desses, sou um traficante/Com uma tonelada de ideia/Nunca esvazio .

A crise das livrarias, que atingiu em cheio o mercado editorial no ano passado, após o fechamento de lojas das redes Saraiva e Cultura, não fez nenhuma diferença para o poeta-feirante. Isso porque Kintê, assim como inúmeros autores oriundos da periferia, não está nas livrarias. Seu habitat natural são as ruas, de preferência em distritos da Zona Sul de São Paulo, como Capão Redondo, Grajaú, Campo Limpo... É em sua periferia natal que encontra a maior parte de seus leitores, seja em saraus ou outros eventos literários que acontecem nos bares e centros comunitários locais. Publicados por editoras independentes, muitas delas sediadas na própria periferia, os livros vendem bem por meio do contato direto, sem esquemas de distribuição.

“Vender livro é talento também”, disse Kintê. “As grandes editoras, que contam com esquemas para distribuir, deveriam fazer umas consultas com esses vendedores. Em nossa cena literária, as pessoas têm amor pelos livros, é totalmente diferente de quem vê apenas o livro como produto.”

A “cena literária” a que Kintê se refere não é exatamente uma novidade. Em 2018, comemoraram-se em São Paulo os 20 anos de literatura periférica-marginal — um movimento do qual saíram autores hoje consagrados, editados por grandes editoras e traduzidos em várias línguas, como Ferréz, Rodrigo Ciríaco e Sérgio Vaz. Mas há uma consequência menos conhecida desse fenômeno: a cadeia do livro que vem se formando ao longo das últimas duas décadas, com festivais, editoras e, claro, leitores locais.

Trata-se de um mercado paralelo, que se retroalimenta e vem permitindo — também — a sobrevivência de escritores fora do circuito editorial tradicional. O próprio Kintê é um deles. Sem chance em grandes editoras, e nunca lembrado para participar de eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o poeta percebeu que havia “grana andando nas quebradas”. Editada pelo coletivo local LiteraRUA em 2016, os 1.200 exemplares da primeira tiragem de sua principal obra, Muzimba na humildade sem maldade , esgotaram em quatro meses. O livro está na terceira edição.

O momento é de desespero para as editoras tradicionais, que buscam alternativas para chegar de forma mais direta a seus leitores. Tentando driblar a falência das grandes redes de livrarias, ensaiam iniciativas como clubes do livro, por exemplo. Nesse contexto, o estilo “faça você mesmo” da periferia tem tudo para se tornar referência. Pelo menos, essa é aposta de alguns especialistas em literatura marginal, como a jornalista e pesquisadora Jéssica Balbino.

“Tem poeta que em ano de lançamento percorre até 100 saraus e slams espalhados pelo país; alguns não estão nas grandes livrarias, mas venderam milhares de livros de mão em mão”, disse Balbino, criadora do projetos Margens, que mapeia escritoras periféricas pelo Brasil. “A periferia tem consumido, e muito, a literatura. Quando o autor lança um livro, toda a cena vai comprar, independentemente de estar numa grande editora ou na mão dele.”

Akins Kintê se vê como “feirante”, levando sua poesia a bairros da Zona Sul de São Paulo. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Akins Kintê se vê como “feirante”, levando sua poesia a bairros da Zona Sul de São Paulo. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

No mercado editorial brasileiro, quando um autor nacional vende de 3 mil a 5 mil exemplares, já é considerado um sucesso, inclusive pelas grandes editoras. Os poetas Mel Duarte e Pedro Tostes podem entrar nesse time seleto, mas não da maneira convencional. Editados pelas independentes, eles rodam o Brasil com seus livros debaixo do braço. Com muita andança, conseguiram algo raro entre escritores: viver apenas de literatura. Só para o último livro, Na casamata de si , Tostes planeja percorrer 5 mil quilômetros, viajando de ônibus por 13 cidades. Carioca radicado em São Paulo, ele não é de origem periférica, mas circula pelas quebradas. Mais que uma questão geográfica, é a cultura de “vendedor andarilho” que o liga ao movimento. Estratégia que vem dando certo: em 15 anos de carreira, já vendeu 7 mil livros. “Encontro formas de me capitalizar, vendendo também bolsas, camisas e bonés com meus poemas”, contou.

Criada na periferia de São Paulo e idealizadora do Slam das Minas, competição de poesia exclusiva para mulheres que acontece em diversos estados, Mel Duarte garante que o retorno financeiro é muito maior no cara a cara com os leitores. E isso por uma razão simples: o público-alvo da literatura periférica é a própria periferia, aonde as livrarias não chegam.

“Já coloquei títulos em livrarias, mas, para a gente que tem um público específico de baixa renda, não compensa”, disse Duarte, que vendeu 3 mil exemplares de seu Negra nua crua em apenas dois anos. “Até porque esses espaços nunca nos colocam em destaque nas estantes, não fazem qualquer tipo de divulgação. Para mim é muito mais fácil vender depois que me apresento.”

“O importante é ‘circular’, disse o escritor e editor Walner Danziger. ‘Não precisamos de mais livros abandonados na prateleira. A ideia do escritor de gabinete, respaldado por uma grande editora, é falida’”

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O autor periférico, marginal e independente é aquele que leva livros a “lugares inacessíveis e muitas vezes improváveis”, explicou Rodrigo Ciríaco, autor de Te pego lá fora e Vendo pó...esia , entre outros. Bares, rodas de samba e praças estão no roteiro do escritor, mas também escolas, centros culturais, bibliotecas e outros espaços mais convencionais. Juntando “disposição e estratégia”, o autointitulado “traficante literário” calcula ter vendido um total de 15 mil livros, 80% deles mano a mano.

Fez isso seguindo cinco regras fundamentais: 1) estar sempre com livros na mochila; 2) frequentar permanentemente saraus, slams etc.; 3) estabelecer contatos com escolas e mediadores de leitura; 4) propor eventos, atividades, palestras; e 5) não deixar de escrever, ler, comentar, manter seu nome na ativa, principalmente nas redes sociais.

“Nós aproximamos autor e leitor numa relação horizontal, rompendo muros”, resumiu Ciríaco. “Oferecemos nosso trabalho a preços populares, negociamos descontos, distribuímos muitas vezes livros gratuitamente, pois nosso objetivo não é apenas o comercial, mas fomentar novos leitores.”

Pedro Tostes viajará 5 mil quilômetros de ônibus para vender seu novo livro em 13 cidades. Foto: Renata Armelin
Pedro Tostes viajará 5 mil quilômetros de ônibus para vender seu novo livro em 13 cidades. Foto: Renata Armelin

Os eventos literários são parte importante dessa cadeia. Promovem intercâmbio entre autores de diferentes quebradas e os colocam em contato com novos leitores em potencial. Só na Zona Sul de São Paulo, a periferia conta com três grandes festivais: os mais antigos são a Mostra Cultural da Cooperifa e a Feira Literária da Zona Sul (Felizs), criados respectivamente em 2008 e 2015; e o mais novo, a Festa Literária do Grajaú (Flig), cuja primeira edição acabou no último 23 de março.

“Na periferia a gente se consome, se alimenta, e a demanda aumenta porque chegou uma nova geração de leitores. E eles querem ler os escritores que veem nos saraus, nos slams”, disse Suzi Soares, produtora da Felizs, que no ano passado juntou 8 mil pessoas em 12 dias de evento.

O mercado se fortalece internamente, gerando, se não empregos, pelo menos alguns bicos. Do diagramador ao revisor, passando pelos assessores de imprensa e fotógrafos responsáveis pelas fotos de divulgação de autores, é quase certo que os envolvidos na produção e lançamento de um livro também serão da periferia. Não por acaso, o número de editoras locais deu um salto nos últimos anos — há pelo menos 15 empresas atuando na periferia e publicando escritores de lá —, segundo levantamento de Jéssica Balbino.

Mas, para publicar nesses selos, tem de se encaixar na filosofia “feirante” e “andarilha”. Para emprestar o mote da Edições Incendiárias, criada em 2013 pelo escritor, editor e dramaturgo Walner Danziger, o importante é “circular”.

“Não precisamos de mais livros abandonados na prateleira. A ideia do escritor de gabinete, respaldado por uma grande editora, é falida”, afirmou Danziger. “Até alguns nessas condições estão começando a se mexer. E, em nosso caso, escritor de quebrada, quem não bater muita perna, está morto.”