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Época política

Conheça Sabrina Fernandes, a anti-Olavo

Guru progressista é estrela no YouTube e aprendeu sobre Marx no Canadá
Sabrina Fernandes, socióloga com doutorado no Canadá, tem o canal Tese Onze no YouTube. É nele que debate assuntos caros à esquerda, explica conceitos marxistas e critica temas da atualidade. Esquerda caviar? "Eu sou vegana", rebate. Foto: Jorge William / Agência O Globo
Sabrina Fernandes, socióloga com doutorado no Canadá, tem o canal Tese Onze no YouTube. É nele que debate assuntos caros à esquerda, explica conceitos marxistas e critica temas da atualidade. Esquerda caviar? "Eu sou vegana", rebate. Foto: Jorge William / Agência O Globo

Em 1845, aos 27 anos, Karl Marx esboçou 11 notas críticas à filosofia de Ludwig Feuerbach, à timidez política e à propensão dos “hegelianos de esquerda” — patota filosófica da qual o próprio Marx fizera parte —, ao idealismo e à abstração. A mais famosa das “teses sobre Feuerbach” é a 11ª, que foi até insculpida na lápide de Marx: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”. A tese preferida da socióloga Sabrina Fernandes é a terceira, menos sucinta, sobre uma tal práxis revolucionária, indispensável para apreender “a coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade humana”. Como práxis, além de ser um conceito trabalhoso, é nome de um sem-número de revistas e coletivos socialistas, Fernandes resolveu batizar seu canal no YouTube de Tese Onze. Ou melhor: rebatizar. O canal existe desde junho de 2017 e, nos primeiros seis meses, chamava-se À Esquerda. Se há alguém no progressismo youtuber capaz de fazer frente a Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, seu nome é Sabrina Fernandes.

O Tese Onze tem mais de 130 mil inscritos no YouTube, quase 32 mil curtidas no Facebook, 64 mil seguidores no Twitter e 97 mil no Instagram. Os vídeos são publicados quase semanalmente e sua duração varia de 15 a 20 minutos. De seu aconchegante escritório, pintado de lilás e decorado com livros, plantinhas, diplomas e um simpático boneco de Marx, Fernandes dá pequenas aulas sobre marxismo, feminismo e ecologia; comenta a política brasileira — do PSOL a Jair Bolsonaro —; e rebate provocações da direita, desde teorias conspiratórias, como a do marxismo cultural, até xingamentos como “socialista de iPhone”. Ela não dispensa o léxico esquerdista: fala em “classe trabalhadora”, “práxis revolucionária”, “hegemonia” e cita filósofos como Antonio Gramsci e Herbert Marcuse — e Marx, obviamente —, mas desvia do hermetismo com uma linguagem acessível, bem-humorada e um pouco ácida. O vídeo mais visto, com quase 250 mil visualizações, é “O que está acontecendo no Brasil?”, publicado na noite da eleição de Bolsonaro e gravado em inglês para informar o internauta estrangeiro sobre o novo presidente. Alguns haters de direita se confundiram, tomaram Fernandes por uma gringa intrometida e dispararam xingamentos, como “paquita das trevas” e “mercenária de Jorge Soros”, referindo-se ao bilionário húngaro-americano George Soros, financiador do comunismo internacional na visão torpe de teóricos da conspiração.

O primeiro vídeo do À Esquerda foi gravado no Canadá, onde Fernandes cursou graduação, mestrado e doutorado. Do jardim de seu orientador, ela alertou a esquerda a não se deixar seduzir pelo charme e pelo discurso pró-diversidade do primeiro-ministro canadense com pinta de galã, Justin Trudeau. “Boa parte de minha formação militante foi no Canadá, e, se tem uma coisa que eu sei, é que Trudeau não é um modelo a ser seguido”, disse Fernandes, que hoje vive em Brasília, numa conversa por Skype com ÉPOCA. “As notícias que chegavam de Trudeau no Brasil eram ‘Olha só esse feministo maravilhoso! Como ele é sensato!’, mas, por trás do discurso, há políticas concretas e problemáticas.” No vídeo, ela deu exemplos, como o comércio de armas com a Arábia Saudita.

Fernandes começou a gravar vídeos porque se irritava com as besteiras que a esquerda propagava na internet e também por não ter paciência para escrever um “textão”. O irmão sugeriu um canal no YouTube, mas ela relutou e postou os primeiros vídeos no Facebook. “Foi um erro ter pensado primeiro no Facebook e não no YouTube, porque eu acabei ficando presa aos debates do Facebook, à bolha tóxica da esquerda, em que todos se odeiam e já vêm com ideias muito prontas antes de avaliar a posição do outro”, disse. No final de 2017, assumiu-se youtuber e reformulou o canal. Ao longo dos meses, o Tese Onze — e a presença digital de Fernandes — cresceu. Na época das eleições, ela já era uma das vozes mais ouvidas pela esquerda na internet — e alvo preferencial de haters espalhados por todo o espectro ideológico.

Sabrina da Fonseca Borges Fernandes nasceu em Goiânia, em 26 de julho de 1988. Aos 13 anos, começou a estudar inglês. Aos 16, já dava aula. Após concluir o ensino médio, passou seis meses dando aula de inglês e de Photoshop para guardar dinheiro e estudar no exterior. Queria ir para o frio. Pensou na Inglaterra, mas a cotação da libra esterlina a desanimou. Conseguiu uma bolsa e se matriculou na Universidade St. Thomas, em Fredericton, no Canadá. Interessou-se por relações internacionais e ciência política, mas desgostou de ambas e descobriu que gostava mesmo era de economia política. Para se sustentar, acumulou um sem-número de empregos intermitentes: estagiou na reitoria, trabalhou numa padaria, deu aula de espanhol, projetou sites e serviu cereais para degustação num supermercado. “Esse do supermercado foi o que mais odiei! Eles me colocavam na frente de um freezer e eu estava constantemente gripada”, lembrou. Os professores a incentivaram a investir na carreira acadêmica, e Fernandes emendou um mestrado em economia política na Universidade Carleton, em Ottawa, capital do Canadá.

Protesto de membros de grupos de esquerda no Canadá, onde Sabrina Fernandes estudou e iniciou sua militância política. Para ela, o primeiro-ministro galã Justin Trudeau é um embuste de direita que vende armas para países como a Arábia Saudita. Foto: Creative Touch Imaging Ltd. / NurPhoto via Getty Images
Protesto de membros de grupos de esquerda no Canadá, onde Sabrina Fernandes estudou e iniciou sua militância política. Para ela, o primeiro-ministro galã Justin Trudeau é um embuste de direita que vende armas para países como a Arábia Saudita. Foto: Creative Touch Imaging Ltd. / NurPhoto via Getty Images

No mestrado, investigou a proliferação da indústria dos cursinhos pré-vestibulares em Goiânia. No doutorado, migrou para a sociologia e defendeu uma tese com tintas gramscianas sobre a fragmentação e a despolitização da esquerda brasileira. “Eu raramente dou nota A+, só quando o trabalho dos alunos é realmente excepcional, mas Sabrina tirou A+ em todos os cursos que fez comigo”, afirmou Justin Paulson, professor de Carleton e orientador de doutorado de Fernandes. Paulson se lembra de que ela assistiu a seus cursos sobre economia política, teoria marxista moderna e os Cadernos do Cárcere, de Gramsci. “A tese de Sabrina se destacou pela erudição e pelo rigor, além da relevância imediata”, disse Paulson, que acompanha o Tese Onze — alguns vídeos têm legenda em inglês — “com muito orgulho”.

A tese de Fernandes venceu o prêmio da Associação Canadense de Estudos Latino-Americanos e do Caribe e será publicada por aqui em abril, pela pequena editora de esquerda Autonomia Literária. Cauê Ameni, o editor, estima que Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira terá cerca de 400 páginas e tiragem inicial de 5 mil exemplares — o dobro do que a Autonomia Literária costuma imprimir. O título é emprestado de uma citação de Gramsci que serve de epígrafe ao livro: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. No prefácio, Fernandes avisa ao leitor que a conhece do YouTube que, nas páginas seguintes, abandonará a linguagem didática em nome do rigor analítico. “Sabrina sacou o Zeitgeist da nossa época”, disse Ameni.

Fernandes começou a militar no Canadá. “Antes de ir embora do Brasil, eu já era um pouco feminista. Eu não entendia o que era feminismo, mas já era a favor da legalização do aborto, mesmo que ninguém de minha família fosse”, disse. Na universidade, ainda na pequena Fredericton, conheceu o movimento estudantil, os coletivos feministas, a luta ambiental e o marxismo. Quando se mudou para Ottawa para cursar pós-graduação, começou a militar para valer. Passou a dar aulas como professora assistente na universidade, sindicalizou-se e aprendeu na prática como se faz negociação salarial, greve e piquete. Adquiriu cidadania canadense e se filiou ao New Democratic Party (Novo Partido Democrático, ou NDP, na sigla em inglês), uma moderada legenda social-democrata. “É tipo um PDT. Lá no Canadá é difícil...”, brincou. “O NDP é um partido amplo e tem liberdade ideológica, mas às vezes era pior que o próprio Trudeau. Meus amigos e eu sempre pensávamos em nos desfiliar.” Quando voltou ao Brasil, em 2017, filiou-se ao PSOL, mas não pensa em se candidatar a nada. “Seria masoquismo! Meu companheiro foi candidato e eu já achei ele maluco por isso.” O marido dela, o ambientalista Thiago Ávilla, concorreu a uma vaga na Assembleia Legislativa do Distrito Federal nas últimas eleições. Mas não se elegeu.

Fernandes carrega vários rótulos que explicam suas posições políticas: “ecossocialista”, “radical”, “feminista”, “vegana” e — principalmente — “marxista”. “O marxismo me dá uma base para interpretar o mundo, transformá-lo e até mesmo acabar com o patriarcado. Eu sou uma feminista marxista e revolucionária”, explicou. Os ecossocialistas, como ela, propõem um socialismo mais verde do que vermelho, livre da obsessão industrial dos velhos comunistas e mais atento aos conhecimentos dos povos originários e comunidades tradicionais. Fernandes divide a esquerda em “moderada” e “radical” — ela é radical. O que diferencia moderados e radicais é sua posição em relação ao capitalismo. Os primeiros querem humanizá-lo; os últimos, derrubá-lo. Fernandes defende a autogestão, o poder popular — as comunas! — e o trabalho de base, assunto de um vídeo que ela vem prometendo há tempos.

Apesar do radicalismo, Fernandes critica o sectarismo da esquerda e as tentativas de replicar táticas revolucionárias do passado. “Tenho dificuldade em lidar com respostas prontas e imutáveis”, afirmou. “É comum a esquerda radical dizer ‘Ah, porque Lênin escreveu isso, porque Trótski fez aquilo’ e tentar dar essas respostas aos problemas diferentes que temos hoje. Eu reivindico esse legado, mas não podemos ser anacrônicos.” E como ela vê as experiências ditas socialistas que persistem no presente, em especial aquelas que uma parte da esquerda brasileira mais defende: Venezuela e Cuba? “A Venezuela não é socialista. Eu faço uma defesa crítica do regime, porque, se Nicolás Maduro cair, não há alternativa à esquerda. É preciso fiscalizar mais as eleições, criticar a militarização do Estado e construir uma alternativa à esquerda de Maduro”, disse. “A Revolução Cubana eu reivindico, sim, mas não para ser replicada, porque a esquerda aprendeu muito sobre liberdades individuais e feminismo, e todo processo revolucionário deve levar isso em conta. Cuba tem mecanismos de democracia direta que colocam nossa democracia liberal no chinelo. Mas acho problemática a burocratização do Partido Comunista.”

O filósofo marxista Herbert Marcuse é um dos pensadores citados por Sabrina Fernandes, "a paquita das trevas", de acordo com haters de direita. O canal de Fernandes no YouTube, o Tese Onze, tem quase 130 mil seguidores. Foto: Jeff Goode / Toronto Star via Getty Images
O filósofo marxista Herbert Marcuse é um dos pensadores citados por Sabrina Fernandes, "a paquita das trevas", de acordo com haters de direita. O canal de Fernandes no YouTube, o Tese Onze, tem quase 130 mil seguidores. Foto: Jeff Goode / Toronto Star via Getty Images

Fernandes tem três cachorros: Lupin — em homenagem ao professor de Harry Potter —, Clara e Mel — referências a personagens da série britânica Doctor Who. Ela gosta dessa mistura de “ficção cientifica com um pouco de mágica” e promete gravar um vídeo sobre Doctor Who. Para ajudar a sustentar o canal, Fernandes tem uma conta no Apoia.se, uma plataforma de financiamento coletivo. Estima que menos de 400 dos mais de 700 apoiadores do Tese Onze contribuam mensalmente. A maioria doa entre R$ 2 e R$ 5. Alguns poucos desembolsam R$ 50 ou R$ 60, mas os apoios mais generosos são inconstantes. “O Apoia.se me dá um salário que se altera mês a mês. É bom ver um novo apoio, perceber que tem gente acreditando no projeto, mas, quando um apoio é cancelado, eu fico numa insegurança louca, pensando se fiz algo errado.”

De agosto de 2017 até a semana passada, Fernandes deu aula de sociologia na Universidade de Brasília (UnB). Primeiro como professora voluntária — sem salário — e depois como professora substituta. Recentemente, investiu em equipamento para produzir um documentário sobre o qual preferiu não dar detalhes. “Neste ano quero oferecer cursos on-line para aproveitar melhor financeiramente meu tempo. Não serão só vídeos pré-gravados. Mesmo à distância, quero também tirar as dúvidas e acompanhar o desenvolvimento acadêmico dos alunos. Não vai ser um desses cursos baratinhos, de R$ 50 por mês”, disse. “Eu não posso viver de publicidade como os influenciadores digitais.” No entanto, agências de marketing andaram perguntando se ela teria interesse numa parceria com a Coca-Cola — “A Coca-Cola! Eu não bebo Coca-Cola há trocentos anos!” — e com a Koleston, marca de tintura capilar. “A Koleston não é nem uma marca vegana! Acho que as agências não olham o conteúdo dos vídeos, só veem meu cabelo louro e minha cara padrãozinho e acham que eu adoraria fazer stories para a Koleston. Isso não vai acontecer!”

Num vídeo publicado no ano passado, Fernandes recorreu ao conceito de apartheid para explicar a questão palestina. Paulo Ghiraldelli, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e youtuber, discordou da análise e a chamou de “minha filha”, disse que ela era “meio burralda” e sugeriu que ela voltasse “para o ensino básico”. Guiraldelli já foi alvo de protestos na UFRRJ depois de comentários considerados discriminatórios em sala de aula. No final do ano, Fernandes denunciou Ghiraldelli no tribunal da internet, porque seguidores estavam pedindo que ela gravasse um vídeo com ele, num esforço para unir o progressismo youtuber. Fernandes se recusou. “Pessoas como Ghiraldelli são comuns no campo progressista, dizem que são feministas porque escreveram quatro artigos sobre Judith Butler. É de morrer!”, afirmou Fernandes. Ghiraldelli não se arrepende de seus comentários. “Ela acha que há apartheid em Israel. E teima nisso por causa da ideologia de esquerda que a domina acriticamente. Qualquer pessoa que mora em Israel ou na Faixa de Gaza, mesmo sem qualquer diploma de sociologia, não diria isso nem metaforicamente. Essa garotada que faz sociologia tem pouco apreço a teorias e fatos, e adora proselitismo ideológico. Não adianta querer ensiná-los”, disse a ÉPOCA.

Os haters de Fernandes se dividem em dois grupos: os que a xingam de “socialista de iPhone” e os machistas. Alguns são membros dos dois grupos. “Tem uns caras mais sectários na esquerda, que eu suspeito que nunca pagaram um boleto na vida e não gostam de feminismo, que olham para mim e dizem ‘Ah, sua feminista burguesa! Não existe feminismo marxista!’”, contou. “A direita é aquele clássico do ‘esquerda caviar’. Eu acho até engraçado e respondo: ‘Caviar? Eu sou vegana!’.”

Ela dá bronca quando alunos mandam mensagens nas redes sociais endereçadas não à youtuber, mas à professora. “Fui ficando mais chata com privacidade ao perceber que algumas pessoas se aproveitam de vulnerabilidades suas, de detalhes de sua vida pessoal para críticas desleais”, afirmou. “Quero que as pessoas me vejam como uma referência acadêmica e política, não como um modelo a ser seguido. É o conteúdo que eu passo que é interessante. Eu não.”