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Época cultura 1115

A música ficou mais curta

O streaming mudou não só o modo de escutar músicas, mas também sua duração: as introduções estão menores, e os refrões começam mais cedo
O rapper Lil Nas X ficou 19 semanas no topo da parada com uma música de menos de dois minutos. Foto: Matt Winkelmeyer / Getty Images / Stagecoach
O rapper Lil Nas X ficou 19 semanas no topo da parada com uma música de menos de dois minutos. Foto: Matt Winkelmeyer / Getty Images / Stagecoach

Se tivesse sido lançada hoje, “Hotel California”, a balada dos Eagles que chegou ao topo da parada americana em 1977, estaria condenada ao fracasso — ao menos pelos padrões atuais da música. O que acontece é que o streaming, o serviço pago — Spotify, Deezer e Apple Music, entre outros — em que o ouvinte tem uma musicoteca gigantesca à disposição e muda de faixa como quem troca de canal, alterou não só a maneira como se escuta música, mas também a própria música.

Para capturar a atenção do ouvinte de imediato e evitar que ele pule em busca de outra novidade, as músicas estão mais curtas, com introduções menores e refrões logo no começo. Vem daí a conclusão, um tanto blasfema, de que “Hotel California” não teria muitas chances de vingar: a introdução só de violões dura 52 segundos, para a entrada de outros instrumentos e versos e mais versos, até intermináveis — para os padrões de hoje — um minuto e 45 segundos para que se escute pela primeira vez o refrão.

“O streaming está tendo um impacto sobre como os artistas estão criando música”, reconheceu o inglês Nigel Harding, vice-presidente de marketing artístico da Deezer. “Você precisa chamar a atenção rapidamente ou as pessoas começarão a pular as faixas. No momento, 50% de nossas dez principais faixas são mais curtas do que dois minutos e meio. Na era do rádio antigo, elas costumavam ter cerca de três minutos e meio”, constatou. “Um dos melhores exemplos é ‘Old town road’, do ( rapper americano ) Lil Nas X. Tem apenas um minuto e 53 segundos de duração e passou 19 semanas como número um nas paradas”, afirmou.

Um levantamento mostrou que, de 2013 a 2018, o tempo médio das músicas no Top 100 da Billboard caiu de três minutos e 50 segundos para três minutos e 30 segundos. Na primeira metade da década, apenas 1% das canções tinham menos de dois minutos e meio. No ano passado, já eram 6%.

A realidade é que a facilidade maior para lançar uma música — muitos artistas gravam em seu próprio quarto, e os selos não têm mais o custo de fabricação de CDs para distribuir seu produto — aumentou enormemente a oferta e também a dificuldade de fazer com que ela se destaque na multidão.

“Acontecem dois fenômenos no streaming: ou você vai passando de uma faixa para outra rapidamente ou você acaba escutando só aquilo que conhece. Que é o que acontece comigo quando abro o aplicativo e não sei o que vou ouvir”, observou Rodrigo Gorky, produtor que participou ativamente da criação da estrela Pabllo Vittar.

“Hotel California”, sucesso dos Eagles de 1977 que perdura até hoje, teria menos chance de estourar no atual cenário da música. Foto: Brad Elterman / FilmMagic
“Hotel California”, sucesso dos Eagles de 1977 que perdura até hoje, teria menos chance de estourar no atual cenário da música. Foto: Brad Elterman / FilmMagic

Para Gorky, porém, o streaming, com sua oferta quase infinita de gravações, não trouxe nada de muito novo em termos de comportamento. “Ele só deixou mais claro que as pessoas não têm muita paciência de se sentar e escutar música”, disse. “Mas não temos esse pensamento de que a música precisa ser curta. Se ela começa pelo refrão, se começa pelo verso, é no feeling que a gente vai decidir o que fazer. A gente sempre tenta fazer o melhor para a música.”

Por trás da batalha pelo sucesso existe, claro, a questão do dinheiro. Os artistas só recebem pela música tocada no streaming caso o ouvinte dedique à faixa ao menos 30 segundos. Se mudar antes disso, zero. Por isso também é tão importante conquistar o ouvinte logo de cara — e vieram decisões como a de antecipar a entrada dos refrões e fazer faixas mais curtas, que foram mudando a cara da música pop nos últimos anos.

E não basta romper a barreira dos 30 segundos. Pela lógica do serviço, como o preço pago por execução é ínfimo, é necessário atingir milhões de reproduções para haver alguma relevância financeira para o artista. Por isso, a aposta na mudança da música, que precisa não só fisgar rápido, mas também cativar muitos.

Nem todo mundo atribui a mudança atual na música ao streaming. Presidente da Sony Music do Brasil, Paulo Junqueiro disse que a avaliação desse impacto tem sido exagerada. “Desde que se vende música gravada, não tenho conhecimento de que alguém haja determinado que a música tenha de ter um tamanho X ou que o refrão tenha de entrar até tantos segundos da música”, defendeu. “Ao longo das décadas, vemos que nos anos 1950 e 60 as músicas eram curtas. Depois, com o rock progressivo, chegaram a ter a duração de um lado inteiro do vinil. E com o punk ( nos anos 1970 ) voltaram a ter entre dois e três minutos.”

Para Junqueiro, só o que mudou com o streaming foi a forma de vender a música. “Na época do mundo físico e até do download, o consumidor queria ser proprietário do vinil, do CD, da fita cassete e até do arquivo de download. Agora, a música é consumida por meio de uma assinatura que dá acesso a um catálogo gigantesco”, disse. Sua avaliação soa como música para os ouvidos de muitos artistas.