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Época cultura 1168

A passagem do tempo em 'Arremate', coletânea de Armando Freitas Filho

Aos 80 anos, o poeta lança um inventário lírico de sua obra escrito na quarentena, em que ele reflete sobre os dilemas de existir
O poeta carioca Armando Freitas Filho lança livro de quase 300 páginas, com poemas escritos entre 2013 e 2019. Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O poeta carioca Armando Freitas Filho lança livro de quase 300 páginas, com poemas escritos entre 2013 e 2019. Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Em “2020”, um dos poemas de Arremate , livro recém-lançado por Armando Freitas Filho, versos como Nessa década, não saberei contar/como contei em todas as outras/sem medo de ser interrompido exibem uma das obsessões conhecidas do autor carioca, o medo da morte, que se espalha por muitas outras das quase 300 páginas. A proximidade dos 80 anos, completados em fevereiro de 2020, certamente pesaram na feitura dos poemas ali reunidos, escritos entre 2013 e 2019. Pesou também o susto com o problema cardíaco que, há três anos, o levou à mesa de cirurgia. Por tudo isso, há quem possa enxergar o título do livro, publicado pela Companhia das Letras, como um óbvio sinônimo para fim, para o que se completa, para o que termina. Mas veja lá, se o poeta é de fato um fingidor, nem tudo pode ser encarado ao pé da letra, ainda que a letra seja realmente a expressão mais angustiada e dolorosa da alma do autor.

Ao mesmo tempo que verbaliza seu temor maior (“Acho que esse livro pode ser o meu último”, murmura), Armando, um dos mais importantes poetas brasileiros contemporâneos, pisca o olho para além do que se lê. “Uma coisa que eu gosto é de escrever vendo os duplos sentidos nas palavras, que podem ser uma coisa e outra também. Estou sempre procurando isso”, contou ele, em entrevista por telefone. “Fui aos dicionários e constatei que tanto no Aurélio como no Houaiss, que aliás foram feitos por dois grandes amigos meus, a palavra ‘arremate’ aparece também no sentido futebolístico, como a finalização de um lance. Então arremate pode ser um final, mas pode significar ainda um bom chute.”

Um chute potente, sem dúvida. Talvez a chave maior do entendimento da nova obra do autor, que estreou em 1963, com Palavra , esteja na dedicatória. Pela primeira vez em sua longa trajetória, na qual se destacam livros como À mão livre (1979), Duplo cego (1997), Fio terra (2000), Raro mar (2006) e Rol (2016), ele escreve: “Para mim”. Armando disse ter matutado bastante sobre o significado de dedicar a outra pessoa, seja a Cristina, sua mulher há 40 anos, ou aos filhos, Maria e Carlos, uma obra tão repleta dele mesmo, como reconhece. “Sinceramente pensei muito se eu merecia este livro. É muito forte, tem vida, morte, é algo que veio muito de coisas internas, frases e principalmente confissões. Fiquei com medo de mim mesmo. No final percebi que era muito meu, então achei mais justa essa dedicatória. Uma amiga disse ter achado original. Mas não fiz por originalidade. Fiz por causa do peso de quem faz 80 anos. E fazer 80 anos é fazer 100, é não saber contar mais até dez”, disse.

“Em papel jornal”, com poemas escritos na quentura do noticiário, o incêndio do Museu Nacional, balas perdidas e a queda dos prédios na Muzema dividem as páginas com versos que lamentam a queda de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. Foto: Fabio Gonçalves / Agência O Globo
“Em papel jornal”, com poemas escritos na quentura do noticiário, o incêndio do Museu Nacional, balas perdidas e a queda dos prédios na Muzema dividem as páginas com versos que lamentam a queda de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. Foto: Fabio Gonçalves / Agência O Globo

Chegar às oito décadas de existência em 2020, ano em que um novo vírus já ceifou milhões de vidas em todo o mundo, é algo particularmente assustador para um hipocondríaco quase folclórico como Armando, que não bebe e mantém uma dieta rigorosa, uniforme, sem qualquer concessão a comidas “diferentes” ou cromaticamente chamativas. Se antes qualquer mal-estar, ainda que rapidamente diagnosticado pela mulher como psicológico (“ela me conhece muito”) o incomodava, hoje o leva a vasculhar avidamente a internet em busca de respostas para suas cismas. Não que o poeta se arrisque. Desde março ele e Cristina estão completamente confinados na casa em que moram na tranquila Urca. As voltas no pequeno jardim nos fundos da casa substituem as caminhadas diárias pelas ruas do bairro, das quais muitas vezes Armando voltava com rabiscos ou mesmo novos poemas.

Um deles, aliás, “10 anos”, em homenagem ao filho Carlos (hoje com 29), surgiu exatamente assim, brotado sobre uma foto de Miles Davis estampada num jornal. O poema, que Armando considera “o mais bonito que já escrevi” até hoje, bem como a história de sua criação (“Bastidor de 1 poema e 6 em andamento”), abre Arremate . Durante uma caminhada, a constatação de que o menino entraria “na casa dos dois dígitos para sempre” caiu como uma revelação mágica sobre a cabeça do poeta, que entrou numa banca, pediu jornal e caneta e registrou ali mesmo a frase seminal. “Quando se podia andar na rua eu fazia isso todo dia. Não levo nada comigo, mas, como conheço muita gente, vou pedindo lápis e papel na vizinhança. Esse foi escrito quase inteiro na rua, fui pegando outras canetas no caminho”, contou.

A suspensão das caminhadas, a distância da filha (de seu primeiro casamento) que mora no exterior com os netos e não o visitará neste ano e a ausência do caçula, que deixou a casa dos pais há pouco tempo, têm tornado Armando mais melancólico. Sente saudades até de seus arquivos, com todos os seus cadernos manuscritos, fortuna crítica, artigos, revistas, doados no final do ano passado para o Instituto Moreira Salles. Por isso, apesar de celebrar a felicidade ao lado de Cristina, que ele define como seu “amparo” (ela é objeto direto e indireto de muitos belos poemas em Arremate ), a casa vazia o assusta. Mas não o bloqueia. “Muitas vezes choro de saudade…É difícil, sinto o vazio.”

O livro que marca os 80 anos do poeta faz uma espécie de inventário lírico dos principais temas e influências que atravessam sua obra e se interconectam nas páginas, mesmo que organizados em blocos “temáticos” pelo próprio autor. Em “Pincel lápis tesoura goiva lente martelo tela”, por exemplo, se faz mais presente a paixão pelas artes visuais, com homenagens a obras e seus criadores, entre eles Van Gogh. Em “Canetas múltiplas” o poeta se concentra nas referências (e reverências) a escritores mestres-amigos, como a inescapável trinca formada por Carlos Drummond de Andrade, o preferido (“Ele é Deus, uma bíblia, como pode escrever daquele jeito?”, comentou Armando), João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. Claro que há Ana Cristina Cesar, jovem poeta que marcou Armando com sua vida e morte. E Clarice Lispector, Kafka, Baudelaire, Rimbaud, Emily Dickinson, Graciliano Ramos.

“‘Fui aos dicionários e constatei que tanto no Aurélio como no Houaiss a palavra ‘arremate’ aparece também no sentido futebolístico, como a finalização de um lance. Então arremate pode ser um final, mas pode significar ainda um bom chute’”

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Em “Casa corpo adentro”, além de lançar um olhar ora cortante, ora sereno sobre o amor concreto e o erotismo possível, Armando toma a própria casa, na qual mora há 51 anos, como uma metáfora para o agora. Espelhados, os poemas “Em dúvida” e “Sem dúvida” trazem indagações sobre apressar ou não o fim da nova obra. Faltam quantas folhas afinal/para este livro cansar?/Cansará comigo ou cansarei/antes de elas cansarem? , argumenta, em “Sem dúvida”. “ Arremate é um livro sobre o tempo, sobre envelhecer e se sentir à beira do trampolim”, resumiu a poeta Alice Sant’Anna, editora na Companhia das Letras responsável pela obra de Armando e que tem poema dedicado a ela no livro. “Ele é um dos maiores poetas vivos, e digo isso em muitos sentidos: não só pela obra, gigantesca, feita dia e noite, com dedicação integral, mas também pela generosidade com que recebe os jovens poetas que o procuram, em busca de uma palavra, um conselho. Sou exemplo disso. Fui levada pelo meu pai à casa do Armando aos 15 anos e desde então ele virou uma espécie de avô”, contou.

Embora seja um livro no qual a “fatalidade da existência” se sobressaia de maneira docemente taciturna, Arremate também reflete outras características de Armando: o humor, salpicado aqui e ali, e a indignação, esta bem registrada na seção “Em papel jornal”, com poemas escritos na quentura do noticiário. Balas perdidas, a queda dos prédios na Muzema, o incêndio no Museu Nacional e o assassinato de Marielle Franco dividem as páginas com versos que lamentam a queda de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição do “Mito Mitômano”. “Sempre fui uma pessoa de esquerda, desde os meus 20 anos. E permaneço, sou muito teimoso comigo mesmo.”

A leitura de Arremate , com as visões do poeta sobre amor, arte, sonhos, filhos, decadência, amizades, política e morte, sendo o mesmo e distinto, mostra que Armando tem fôlego para seguir apostando, no sentido mais futebolístico da palavra. O daquele bom chute que abre caminho para um jogo de muitas possibilidades. “Estou contente de ainda escrever com gana de tudo. E se não faço um poema todo dia, como aconselhava João Cabral, faço de dois em dois”, contou o poeta, que, além de ter 164 poemas inéditos, também guarda textos em prosa para compor um futuro livro já batizado por ele de Arquivo . “Eu escrevo para salvar-me. Não sei fazer mais nada.”

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