Época cultura 1103

A poética do sertão pelo bem-sucedido 'Torto arado'

Com romance, o baiano Itamar Vieira Junior ganha um dos principais concursos literários da língua portuguesa e conquista a crítica lusitana
Crianças trabalham na indústria de sisal no interior da Bahia, em registro feito em 1987. Foto: Salomon Cytrynowicz / Pulsar Imagens
Crianças trabalham na indústria de sisal no interior da Bahia, em registro feito em 1987. Foto: Salomon Cytrynowicz / Pulsar Imagens

No dia 17 de outubro de 2018, uma quarta-feira, o escritor e geógrafo baiano Itamar Vieira Junior seguia para o hospital soteropolitano onde seu pai estava internado havia 15 dias para tratar-se de uma insuficiência renal quando foi surpreendido por um telefonema. Eram 7h30 da manhã. Do outro lado da linha, um vozeirão com sotaque lusitano se apresentou — “Quem vos fala é Manuel Alegre” — e anunciou que Vieira Junior vencera o Prêmio LeYa com Torto arado , um romance que ele quase não se lembrava mais de ter inscrito no concurso. O Prêmio LeYa de Romance é entregue desde 2008 a autores lusófonos que concorrem anonimamente a € 100 mil e um contrato de publicação com o Grupo Editorial LeYa. Vieira Junior é o segundo brasileiro a arrebatar o prêmio. O mineiro Murilo Carvalho venceu a primeira edição do concurso literário com o romance O rastro do jaguar . O manuscrito vitorioso é escolhido por um júri composto de sete figuras destacadas do mercado editorial lusófono. No ano passado, estavam entre os jurados o editor brasileiro Paulo Werneck, a poeta angolana Ana Paula Tavares e o escritor português Manuel Alegre, vencedor do Prêmio Camões e presidente do júri.

Depois de se despedir de Vieira Junior, Alegre informou a vitória do escritor brasileiro à imprensa portuguesa com elogios generosos a Torto arado . O escritor destacou “a solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, em sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade patriarcal”. Logo após o anúncio em Portugal, o telefone de Vieira Junior voltou a tocar insistentemente no hospital em Salvador. Eram jornais e emissoras de rádio e TV portuguesas atrás de algumas palavras do vencedor do Prêmio LeYa e um ou outro comentário sobre as eleições brasileiras — estávamos a pouco mais de uma semana do segundo turno que elegeu Jair Bolsonaro.

Vieira Junior passou toda aquela quarta-feira se dividindo entre o telefone e os cuidados com seu pai, que se alegrou muito com o prêmio. O pai estava doente desde o início de 2018, com sucessivas internações. Vieira Junior aproveitou uma de suas altas hospitalares, em março do ano passado, para retocar o manuscrito de Torto arado, que remeteu a Portugal em abril, poucos dias antes do prazo estipulado pelo prêmio. Não se lembrou do concurso nos meses seguintes. “Esqueci completamente”, contou, por telefone, a ÉPOCA. “Não tinha muita esperança de ganhar, porque Torto arado é uma história muito brasileira, do interior do Nordeste.” Alguns dias antes, Vieira Junior soubera que seu livro de contos, A oração do carrasco , concorria ao Jabuti, o mais prestigioso prêmio das letras brasileiras.

Geógrafo, Vieira Junior se divide entre a rotina burocrática do Incra e trabalhos de campo no interior do Nordeste, onde conheceu de perto a vida de trabalhadores rurais que vivem em condições análogas à escravidão. Foto: Divulgação
Geógrafo, Vieira Junior se divide entre a rotina burocrática do Incra e trabalhos de campo no interior do Nordeste, onde conheceu de perto a vida de trabalhadores rurais que vivem em condições análogas à escravidão. Foto: Divulgação

Torto arado , cuja edição brasileira acaba de sair pela Todavia, narra a vida dos trabalhadores rurais de Água Negra, uma fazenda na região da Chapada Diamantina, interior da Bahia. Os trabalhadores de Água Negra não recebiam salário para arar a terra, apenas morada, ou melhor, o direito de construir casebres de paredes de barro e telhado de junco (construções de alvenaria eram proibidas) e cultivar roças no quintal quando não estivessem plantando e colhendo cana-de-açúcar e arroz nas terras do patrão. Só ganhavam algum dinheiro quando vendiam na feira a abóbora, o feijão e a batata que cultivavam no quintal ou quando conseguiam a aposentadoria rural. Eram quase todos negros, descendentes dos escravizados libertos havia poucas décadas.

A primeira parte de Torto arado é narrada por Bibiana; a segunda, por sua irmã, Belonísia. As duas são filhas de Zeca Chapéu Grande, um dos trabalhadores de Água Negra e líder do jarê, religião afro-brasileira praticada na região da Chapada Diamantina, influenciada pela umbanda, pelo espiritismo e pelo catolicismo.  Além de comandar as “brincadeiras de jarê” e curar corpos doentes e espíritos perturbados, Zeca Chapéu Grande fazia as vezes de líder político, de pelego, a apaziguar os conflitos entre trabalhadores que achavam que a terra era de quem nela trabalhava. A terceira e última parte do romance é narrada por uma entidade do jarê.

A prosa de Torto arado é melodiosa, esculpida com rigor, mas não é afetada, como se um narrador urbano quisesse imitar a fala de camponeses baianos. A linguagem, aliás, está no centro do romance. No primeiro capítulo, Bibiana e Belonísia, ainda meninas, brincam com uma faca que a avó mantinha escondida, e uma delas acaba decepando a própria língua. A garota fica muda e a outra se torna sua voz, interpretando seus grunhidos e gestos. O leitor só descobre qual das irmãs perdeu a língua depois de ler um terço do romance. Vieira Junior brinca com esse suspense: descreve os gestos das personagens, mas não suas palavras.

O romance de Vieira Junior ganhou no ano passado o Prêmio LeYa, que dá € 100 mil ao vencedor e um contrato de publicação com o grupo editorial português. O livro teve uma tiragem inicial de 8 mil exemplares em Portugal e 3 mil no Brasil. Foto: Divulgação / Todavia
O romance de Vieira Junior ganhou no ano passado o Prêmio LeYa, que dá € 100 mil ao vencedor e um contrato de publicação com o grupo editorial português. O livro teve uma tiragem inicial de 8 mil exemplares em Portugal e 3 mil no Brasil. Foto: Divulgação / Todavia

Vieira Junior começou a esboçar Torto arado há mais de duas décadas, quando tinha 16 anos, inspirado pela leitura dos romances regionalistas dos anos 30 e 40, nos quais autores como Rachel de Queiroz e José Lins do Rêgo retrataram a pobreza sertaneja. “Essa história das duas irmãs que têm uma relação conflituosa uma com a outra, com o pai e com a terra me veio naturalmente. Mas as personagens tinham outros nomes e não tinha essa história da língua”, recordou. Ele datilografou o romance numa Olivetti Lettera 82 que ganhara de presente do pai, mas perdeu o manuscrito, umas 80 páginas, numa mudança. Deixou a literatura um pouco de lado — os pais o alertaram de que era difícil se sustentar da escrita — e se formou em geografia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Deu aulas e, há 13 anos, ingressou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde é analista agrário e se divide entre a rotina burocrática da repartição pública e trabalhos de campo no interior do Nordeste. “Quando cheguei ao campo, encontrei a realidade que conheci em romances como O quinze e Menino de engenho ”, disse. “Conheci famílias inteiras de trabalhadores que vivem em um sistema semelhante à escravidão, que não recebem dinheiro pelo dia de trabalho e só têm direito à morada. É um Brasil anacrônico, que parou no tempo. Eu quis dividir esse meu espanto, esse choque.”

A vivência de Vieira Junior no campo rendeu uma tese de doutorado em estudos étnicos e africanos defendida na UFBA em 2017. Mas ele logo percebeu que a vida daqueles trabalhadores rurais merecia a literatura. Resolveu escrever sobre essa população, os pobres, quase sempre negros, que pouco aparecem na literatura brasileira recente, principalmente naquela produzida entre Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. “Venho de uma família simples. Meu pai era descendente de indígenas do Recôncavo Baiano. Minha mãe, de camponeses pobres e migrantes. Boa parte de minha família tem ascendência negra. Toda essa história é muito cara para mim, e eu sentia falta dela na literatura”, disse. Num trecho de Torto arado , Belonísia justifica sua falta de interesse pela escola porque a professora, Dona Lourdes, “não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos”, “em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz”. Para Vieira Junior, a recente literatura brasileira às vezes se parece com as lições de Dona Lourdes. “Há coisas incríveis na literatura brasileira contemporânea, mas, em minha opinião, também há um excesso de autoficção, de romances girando em torno do umbigo e dos problemas do escritor branco de classe média. Isso cansa. Mas também há autores, menos divulgados, contando histórias que contemplam toda a nossa diversidade, os muitos ‘Brasis’”, afirmou.

Em Torto arado , Vieira Junior tomou emprestadas não apenas as experiências, mas também a linguagem dos trabalhadores rurais que conheceu. “Fiquei fascinado pela cadência, pela musicalidade dos falares do sertão, pela linguagem elaborada, rítmica e poética com que esses camponeses contavam suas histórias. Literatura também é oralidade. Percebi aí uma possibilidade estética e quis trazer para o romance essa linguagem que me envolveu”, contou. “Havia camponeses que não sabiam ler, mas também alguns que não só sabiam, como andavam com um livro debaixo do braço para ler, à sombra, na hora do descanso.” O título do romance, no entanto, não veio da boca de um trabalhador rural, mas de um verso de Marília de Dirceu , de Tomás António Gonzaga (1744-1810), um dos poetas revoltosos da Inconfidência Mineira: A devorante mão da negra morte/(...)lhe arranca os frios ossos/ferro do torto arado . “Chamou minha atenção essa imagem de um arado torto velho, como se fosse um símbolo de uma realidade imutável, de um campo onde o arado ainda é instrumento de trabalho, apesar da mecanização brutal”, explicou. Torto arado já era o título daquele manuscrito datilografado que se perdeu. “Se eu pudesse resumir em uma sentença a razão de existir do livro, diria que é uma declaração de amor à terra. A mesma declaração de amor que me foi transmitida oralmente pelos muitos camponeses que encontrei em meu caminho.”

Retrato de trabalhadora rural da Bahia. Na comunidade retratada por Vieira Junior em “Torto arado”, eles não recebem salários para arar a terra. Foto: Karla Braga / Opção Brasil Imagens
Retrato de trabalhadora rural da Bahia. Na comunidade retratada por Vieira Junior em “Torto arado”, eles não recebem salários para arar a terra. Foto: Karla Braga / Opção Brasil Imagens

Publicado em Portugal no começo do ano, Torto arado foi bem recebido pela imprensa local. Vieira Junior viajou para o país, onde deu inúmeras entrevistas e participou de eventos literários em todo o país e até na Ilha da Madeira. O romance teve tiragem de 8 mil exemplares em terras lusitanas. A tiragem inicial da edição brasileira é de 3 mil exemplares. Não é pouco, é exatamente a média de um autor brasileiro. “A boa acolhida do livro em Portugal foi uma surpresa”, disse Vieira Junior. “Não pensava que um livro narrado por camponesas de uma região tão remota do país, que é a Chapada Diamantina, sobre questões tão brasileiras, tivesse essa alma universal para atravessar o oceano e conquistar leitores portugueses.”

A poeta Maria do Rosário Pedreira, que editou a edição portuguesa de Torto arado , disse a ÉPOCA que o romance de Vieira Junior caiu no gosto do leitor luso porque, embora “bem brasileiro, é um livro bem universal”. “As questões que Torto arado levanta, como a injustiça, a desigualdade e a escravidão, não são exclusivas do Brasil, são de todos os tempos e lugares. Em Portugal, por exemplo, a situação dos trabalhadores rurais dos latifúndios do Alentejo durante a ditadura salazarista é perfeitamente equiparável à vivida por Bibiana e Belonísia”, afirmou. “A vinda do autor e sua personalidade profunda e ao mesmo tempo muito amistosa também contribuíram para o êxito do livro em Portugal.” Pedreira também destacou o “estilo ora poético, ora cru” de Torto arado e o compromisso político de Vieira Junior, expresso em várias declarações à imprensa portuguesa e também no enredo de seu romance premiado. “Itamar Vieira Junior vai chegar longe, até porque, apesar da extrema delicadeza com que sempre fala e se apresenta, ele vem mostrando em debates e entrevistas que não tem medo de dizer a verdade e pôr o dedo na ferida, denunciando o que vai mal e exigindo correção das injustiças.”

Retrato de trabalhador rural da Bahia. Na comunidade retratada por Vieira Junior em “Torto arado”, o único direito que eles recebem é o de cultivar roças no quintal quando não estão trabalhando nos campos do patrão. Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Retrato de trabalhador rural da Bahia. Na comunidade retratada por Vieira Junior em “Torto arado”, o único direito que eles recebem é o de cultivar roças no quintal quando não estão trabalhando nos campos do patrão. Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Vieira Junior costuma dizer que escreve sobre o que o incomoda. “Tenho uma fé imensa na literatura, porque ela permite uma mudança de papéis. Quando você abre um livro, estabelece um contrato com o autor e os personagens. Durante o tempo daquela leitura, você vai viver um pouco daquelas vidas, o que pode provocar repulsa ou empatia”, explicou. “Escrevo sobre os meus incômodos porque talvez esses incômodos incomodem outras pessoas, para que, nesse jogo de escrita e leitura, nós pensemos um mundo novo, mais humano e capaz de contemplar toda a nossa diversidade.” Vieira Junior perdeu o pai 15 dias depois de vencer o Prêmio LeYa. “Mas ele ainda pôde gozar comigo um pouco daquela alegria.”