Época cultura 1190

O retorno das sombras de José Mauro

Fora da cena musical desde os anos 1970 e dado por alguns como morto, autor de “Luzia Mãe-D’água” é redescoberto por DJ inglês e vira cult fora do país
O LP “Obnoxious” (de 1970), de José Mauro, passou a ser cultuado pelos DJs do acid jazz desde os anos 1990, mas só ganhou uma reedição remasterizada, na Inglaterra, em 2016. Foto: Arte de Angelo Bottino sobre reprodução
O LP “Obnoxious” (de 1970), de José Mauro, passou a ser cultuado pelos DJs do acid jazz desde os anos 1990, mas só ganhou uma reedição remasterizada, na Inglaterra, em 2016. Foto: Arte de Angelo Bottino sobre reprodução

Nos anos 1990, enquanto no país LPs lançados duas décadas antes por Marcos Valle, Joyce, Azymuth, Banda Black Rio e Arthur Verocai juntavam poeira nos sebos, uma geração de DJs do Reino Unido e dos Estados Unidos estava bem atenta: não é que aquela música suingada, por vezes elétrica, ricamente arranjada e com uma inegável marca de brasilidade caía muito bem nas pistas de dança britânicas do acid jazz e nas bases dos rappers americanos? Com o tempo, esses brasileiros encontraram não só o reconhecimento, mas um novo mercado no exterior, em festivais e casas de jazz, com a gravação de material inédito e em colaborações com jovens artistas. Uma possibilidade que o cantor, violonista e compositor José Mauro Soares da Cunha não teve a chance de aproveitar.

Cultuado pelos DJs do acid jazz desde os 90, seu LP Obnoxious (de 1970) teve de esperar até 2016 para ganhar uma reedição remasterizada, pelo selo britânico Far Out (por onde gravam Marcos Valle, Joyce e Azymuth). A iniciativa foi tardia, mas certeira: o nome de José Mauro começou a circular e chegou a ouvidos como os do DJ e produtor Gilles Peterson, principal formador de gostos na Inglaterra quando se trata de MPB. No ano passado, na edição pandêmica de verão da revista Q, em que as personalidades da música se uniram para listar “354 álbuns para fazer sua cabeça”, ele se derreteu por Obnoxious : “Os discos psicodélicos brasileiros como esse, feitos num país sob ditadura, são uma fonte de fascinação. Enquanto muitos músicos brasileiros fugiram do regime autoritário, José Mauro ficou e produziu grande música, como a desse disco”.

Ao lado de Ana Maria Bahiana, o cantor e compositor José Mauro compôs suas principais obras, algumas delas no disco “A viagem das horas” (foto abaixo). Foto: Reprodução
Ao lado de Ana Maria Bahiana, o cantor e compositor José Mauro compôs suas principais obras, algumas delas no disco “A viagem das horas” (foto abaixo). Foto: Reprodução

Mas, até 2020, uma questão persistia: descobridor de Obnoxious e dono dos direitos sobre as gravações do disco, o DJ e produtor Joe Davis, dono da Far Out, dizia simplesmente não saber do paradeiro de José Mauro. Os boatos que circulavam, segundo ele, eram que o músico tinha morrido em um acidente automobilístico ou então teria sido assassinado pelo regime militar. “Eu não morri nada, estou vivinho. Não sei quem inventou isso”, indignou-se, em entrevista por WhatsApp, o próprio José Mauro, hoje com 72 anos de idade, vivendo em uma vila de casas simples em Vargem Pequena, bairro afastado da quase rural Zona Oeste carioca — e não “em uma favela”, como rezavam outros boatos. Conectado a Joe Davis graças ao contato feito com o inglês por um vizinho músico, o carioca conseguiu enfim, com a ajuda de sua família e de advogados, negociar o recebimento dos direitos por Obnoxious e por A viagem das horas — seu segundo LP, de 1976, que será relançado pela Far Out em streaming, CD e LP no próximo dia 28.

Mesmo entre seus contemporâneos, poucos se recordam de José Mauro. Artista surgida na mesma época que ele (e hoje colega de Far Out), Joyce, por exemplo, tem a memória escassa e antiga de “um garoto muito talentoso, com um provável futuro brilhante como compositor”. Violonista que estudou com Baden Powell, apreciador de Edu Lobo, Villa-Lobos e Tom Jobim, desde criança José Mauro sabia de seu dom para a composição. Mas só começou a exercitá-lo de fato depois de conhecer, em 1969, aquela que seria sua grande parceira. Uma menina que tinha acabado de sair do colégio e se dividia entre sonhos artísticos e jornalísticos: Ana Maria Bahiana.

­ Foto: Reprodução
­ Foto: Reprodução

“O Zé era um cara extremamente emotivo e parecia um eremita da música. O negócio dele era ficar no seu quartinho, no Jardim Botânico, compondo”, contou de Los Angeles, onde vive desde os anos 1980, Bahiana, uma das mais prestigiadas jornalistas de música do Brasil. “Eu não dava textos meus, só ideias, e dez minutos depois ele tinha o coração da música, expressando a ideia. Outras vezes, era o contrário. Ele dizia: ‘Essa palavra é maravilhosa, vamos fazer uma música com ela’. E eu tinha de criar todo um universo para aquela palavra. Essa criatividade dele, romântica e espiritual, encaixava com o momento que eu estava vivendo. Chegou a hora em que a gente compunha por espiritismo, ele dava um acorde e eu traduzia em letra.”

A dupla tinha música que até “charanga do Fla pode tocar”, anunciava em seu título uma reportagem de O GLOBO, de 8 de junho de 1971, falando sobre a façanha de José Mauro e Bahiana: eles conseguiram emplacar o samba “Exaltação e lamento do último rei” (o tal para a charanga do Fla) e a terna canção “Olhos da manhã” entre as selecionadas para concorrer no VI Festival Internacional da Canção. Mas o grande feito da dupla daquele ano seria em outra competição: um terceiro lugar no IV Festival Universitário de Música Brasileira (vencido por um iniciante Belchior, com “Na hora do almoço”), graças à composição “Luzia Mãe-D’água”, cantada por ninguém menos que Nana Caymmi. “Acho que o José Mauro morreu, gente. Foi o que eu soube”, arriscou Nana, depois de cantar um trecho da música daquele “baixinho, com cara redonda, que morava no Jardim Botânico”. “Eu participei desse festival com o maior prazer porque a música era linda, um escândalo. Era para ser uma parceria ótima essa do José Mauro e da Ana Maria Bahiana, porque os dois combinavam.”

“Em 1971, José Mauro e Ana Maria Bahiana conseguiram emplacar o samba ‘Exaltação e lamento do último rei’ e a terna canção ‘Olhos da manhã’ entre as selecionadas para concorrer no VI Festival Internacional da Canção”

­
­

Um ano antes, essa parceria tinha chamado a atenção de Roberto Quartin (1943-2004), produtor que fundara o selo Forma, responsável pelo lançamento de discos históricos da música brasileira, como o Coisas (1965), de Moacir Santos, e Os afro sambas (1966), de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Depois de ter participado da gravação, nos Estados Unidos, em 1967, do LP que reuniu Tom Jobim e Frank Sinatra, ele criou o selo Quartin, pelo qual ofereceu um contrato de gravação a José Mauro. No estúdio da Odeon, no Rio, com arranjos do maestro Lindolfo Gaya e uma banda de estrelas (o saxofonista Paulo Moura, o baterista Wilson das Neves, o flautista Altamiro Carrilho e o pianista Dom Salvador, entre outros), o cantor e violonista gravou material suficiente para dois LPs.

­ Foto: Agência O Globo
­ Foto: Agência O Globo

Obnoxious foi lançado em 1970, sem repercussão. A viagem das horas só sairia seis anos depois, quando Quartin negociou seu catálogo com a gravadora Tapecar. E saiu mutilado, com algumas músicas do disco de 70 no lugar das inéditas previstas — só agora, em 2021, o álbum sai com todas as faixas que deveria ter. “Na época, o (produtor) Milton Miranda me chamou na sala dele na Odeon e disse: ‘Sua música é maravilhosa, mas eu quero ver você vender dez discos que seja’”, reclama hoje José Mauro, que ainda em 1971 compôs com Ana Maria Bahiana uma missa completa (apresentada apenas uma vez, em programa da TV Educativa) e, também com a parceira, fez figuração na novela da Globo A próxima atração (os dois se passaram por hippies em uma festa promovida pelo publicitário vivido pelo ator Armando Bógus).

“O José Mauro era muito desconfiado, sempre estava com receio de que iam roubar a música ou não iam tratá-lo direito”, recordou-se Ana Maria, que viu a parceria esfriar ainda em 1971, quando resolveu deixar a música de lado e investir no jornalismo. “Vi brigas homéricas dele com o Gonzaguinha, que era bem político. O José Mauro era um romântico, estava sempre falando dos mundos emocionais. Ele é um poeta. Onde ele estava feliz era com o violão, compondo.”

A redescoberta de José Mauro foi por culpa de Joe Davis, que encontrou o LP na seção de saldos de uma loja de discos no Rio, nos anos 1980. Foto: Jorge Bispo / Divulgação
A redescoberta de José Mauro foi por culpa de Joe Davis, que encontrou o LP na seção de saldos de uma loja de discos no Rio, nos anos 1980. Foto: Jorge Bispo / Divulgação

Começava ali o gradual afastamento do artista tanto da composição quanto da cena musical. “Eu parei de compor porque o Viagem das horas demorou anos e anos para ser lançado e eu não tive nenhum retorno dele. Fiquei desanimado e fui para o teatro, para o Tablado. Lá, comecei como sonoplasta e depois fiz algumas direções musicais e compus algumas trilhas sonoras. E dei muitas aulas de violão”, disse ele, que foi professor de cantores como Ruy Maurity e Olivia Byington.

Corta para os anos 1990. Há muito sem ter notícias de José Mauro, Ana Maria Bahiana recebe de surpresa em seu celular uma ligação de Londres, de um amigo jornalista da BBC, Thomas Pappon. “Ele estava desconfiado de que tinha tomado um ácido, porque estava ouvindo minha voz em uma música que tocava na boate”, contou ela, aos risos: era a narração que Bahiana tinha feito, a pedido de Roberto Quartin, para “Exaltação e lamento do último rei”, que entrou em Obnoxious .

A história do cantor e músico americano Sixto Rodriguez virou documentário. Foto: Pierre Andrieu / AFP
A história do cantor e músico americano Sixto Rodriguez virou documentário. Foto: Pierre Andrieu / AFP

A chegada da música às pistas inglesas foi por culpa de Joe Davis, que encontrou o LP de José Mauro na seção de saldos de uma loja de discos no Rio nos anos 1980. “Era um disco maravilhoso, que eu nunca tinha visto em meus fornecedores em São Paulo, acabei comprando vários outros do selo Quartin”, contou ele, por WhatsApp, da Inglaterra. De volta ao Rio, por volta de 1992, Davis conseguiu ser apresentado a Roberto Quartin e com ele desenvolveu uma relação que o levou, três anos depois, a intermediar para o selo inglês Mr Bongo o primeiro relançamento de Obnoxious .

Por intermédio de um amigo de Londres, José Mauro soube, na mesma época, que seu disco tinha saído em CD, mas não se preocupou muito em investigar quem tinha lançado. “Eu me senti bem, porque soube que minha música começava a ser escutada”, justificou-se. O tempo correu, e Joe Davis acabou comprando o catálogo da Quartin, com as fitas originais. Mas, uma vez que a Far Out passou boa parte dos anos 2000 investindo em gravações novas de Marcos Valle, Joyce e Azymuth, ele acabou adiando os planos de relançar Obnoxious — havia ainda, é claro, o problema de não saber por onde andava José Mauro. “Eu perguntei ao Roberto (Quartin) , e ele me disse que não sabia, que provavelmente José Mauro tinha morrido em um acidente de moto. Eu conhecia boa parte dos músicos que participaram do Obnoxious , como o Wilson das Neves e o Mamão (baterista do Azymuth) , e ninguém sabia de nada. Então deduzimos que ele tinha morrido”, explicou-se Joe Davis. “Mas aí depois a Ana Maria Bahiana me garantiu que ele estava vivo. Consegui um número de telefone dele, mas ele nunca me respondeu. De repente, do nada, no meio da pandemia, um cara chamado Guilherme Esteves, que vivia perto do José Mauro, me ligou e disse que ele não estava muito bem.”

“‘Minha música é expressionista, as gravações dos meus discos foram leves e inspiradoras. ‘A viagem das horas’ reflete bem minha visão da época, a mesma que eu tenho até hoje’, afirmou José Mauro”

­
­

Com um princípio de mal de Parkinson, que o impede de tocar violão, e algumas dificuldades para se movimentar, o músico hoje vive sozinho, com uma parca aposentadoria e o apoio da família. Sua fala é vacilante, mas as ideias ainda estão bem claras: “A minha música é expressionista, as gravações dos meus discos foram leves e inspiradoras. Algumas músicas saíram de primeira, outras eu tive de fazer duas ou três versões. Gravei do jeito que queria, sou muito exigente. A viagem das horas reflete bem minha visão da época, a mesma que eu tenho até hoje”.

Filho de um primo do músico, o produtor audiovisual David Butter tem ajudado José Mauro e gravou horas de conversa com ele. Pensa em transformá-las num filme nos moldes de À procura de Sugar Man , vencedor do Oscar de melhor documentário de 2013. É a história de Sixto Rodriguez, obscuro cantor folk americano dos anos 1970 que, por razões improváveis, tornou-se cult na África do Sul. Ele era dado como morto até que fãs, já nos 90, resolveram ir atrás de seu paradeiro — e o encontraram vivo. José Mauro, o Sixto brasileiro, tem expectativas bem mais modestas que as de um Oscar — mas não deixa de sonhar: “Minha vida hoje está simples e normal, espero que o disco faça bastante sucesso”.

O QUE VOCÊ VAI LER EM ÉPOCA DESTA SEMANA

PERSONAGEM DA SEMANA
A SEPARAÇÃO
O anúncio do divórcio entre Bill e Melinda Gates levanta dúvidas sobre o futuro da fundação dos dois, uma das mais ativas em países pobres

GRANDE ESCALA
NO OLHO DO FURACÃO
Com uma população de mais de 1,3 bilhão, a Índia se torna o epicentro da pandemia, com graves consequências para o Brasil e o restante do mundo

ALENTO
BARREIRA INFANTIL
Estudos mostram que crianças têm menor incidência de problemas respiratórios e cardiovasculares crônicos e são mais resilientes à infecção grave pelo coronavírus do que adultos

CONTRA-ATAQUE
ALVO SECUNDÁRIO
Sem munições para atacar Renan Calheiros (MDB-AL), bolsonaristas se armam para atingir a gestão do filho do senador à frente do governo de Alagoas

LADRÃO NA TELA
PANDEMIA DE GOLPES DIGITAIS
Com as pessoas de alta renda fazendo trabalho remoto on-line, dispara o número de crimes cibernéticos no Brasil

PROJETO ESPECIAL
TOMOGRAFIA DA SAÚDE BRASILEIRA
Um fórum promovido por ÉPOCA, O GLOBO e Valor Econômico discute as lições da pandemia

6 PERGUNTAS PARA...
MASSIMO CACCIARI
Ex-prefeito de Veneza, o filósofo italiano afirma que é uma fantasia acreditar que a pandemia pode ser um sintoma de uma crise maior do capitalismo

VIVI PARA CONTAR...
TÃO PERTO, TÃO LONGE
Doutora em sociologia, ela foi selecionada para uma disputadíssima vaga numa instituição alemã de prestígio. Às vésperas de embarcar para a Europa, soube da decisão do país de proibir a entrada de quem venha do Brasil por causa das novas cepas do coronavírus

A VIDA QUE LEVOU
PAULO GUSTAVO, A MÃE DE TODOS
A morte do comediante por Covid-19 é simbólica e atinge milhões de brasileiros indistintamente

78 RPM
DO FUNDO DO BAÚ
Fora da cena musical desde os anos 1970 e dado por alguns como morto, José Mauro, autor de “Luzia Mãe-D’água”, é redescoberto por DJ inglês e vira cult fora do país

PRÉ-ESTREIA
A PROMESSA
Leia um trecho inédito de “O riso dos ratos”, livro de Joca Reiners Terron que será lançado no final de maio

Colunistas

Guilherme Amado
Witzel dispara contra Bolsonaro e Castro

Monica de Bolle
Biden, o centrista

Helio Gurovitz
Por que ter razão não basta para vencer a guerra

Allan Sieber

Larry Rohter
Em busca de uma solução global