Época cultura 1191

O romance de cinema de Nicinha e Jurema

Doméstica moradora da Rocinha conta como encontrou o amor de sua vida e as duas viraram série de TV
Imbatíveis contra o preconceito, Jurema e Nicinha formaram uma família e estão juntas há mais de 40 anos. Foto: Divulgação / Netflix
Imbatíveis contra o preconceito, Jurema e Nicinha formaram uma família e estão juntas há mais de 40 anos. Foto: Divulgação / Netflix

Nasci na Rocinha (comunidade no Rio de Janeiro) . Minha mãe era empregada doméstica, como eu também sou desde os 12 anos. Meu pai trabalhava no Galeão, mas só tenho o nome dele na certidão, nós nunca convivemos. Fui criada pela minha mãe, com ajuda da minha vó e do segundo marido dela. Ele era tudo para a gente.

Minha família era de Petrópolis, mas vieram para a Rocinha quando minha mãe tinha 10 anos, e nunca mais saíram. Somos, ao todo, 12 irmãos. Eu fui a quinta a nascer. Minha infância na comunidade foi maravilhosa. Era uma época boa, não é? Minha avó não deixava muito que a gente se misturasse com outras crianças, mas podíamos brincar na rua com os irmãos, os primos. Éramos muitos, todos sob o controle da minha avó, porque minha mãe trabalhava muito.

Meu avô emprestado, como eu o chamo, porque o pai da minha mãe eu também não conheci, era quem assumia as contas da casa. Ele trabalhava fazendo obras no Colégio Americano desde logo que abriu (a Escola Americana, no bairro da Barra da Tijuca) .

Já adolescente, teve uma época em que eu fui ficando muito levada, estava aprontando demais. Aí, fui morar com minha irmã mais velha, que vivia em Jacarepaguá. Um dia, voltei à Rocinha para ver todo mundo, e minhas primas me chamaram para um samba. Estávamos lá, rolou uma confusão, e a coisa sobrou para o meu lado. As meninas acharam que eu ia sair, mas eu parti para cima: “O que foi, é comigo?”. Aí virou aquele tumulto, uma briga enorme. E, no meio disso tudo, eu encontrei com a Jurema. Muito tempo depois, ela contou que se perguntou como eu, tão novinha, consegui “levar tanta gente no peito”. Acho que chamei a atenção, não é?

Eu tinha 14 anos. Ela tinha 20 e quatro filhos. Acabamos pegando uma amizade, que foi virando uma outra coisa. Foi crescendo, crescendo, crescendo... Até que, uns seis meses depois, chegou no que chegou. Foi minha primeira namorada mulher, mas eu já tinha tido contato com meninos. Com meu primeiro namorado, eu tinha 13. É o pai dos meus dois primeiros filhos. Mas eu nunca tinha pensado em namorar uma mulher. Acho que é o destino.

No começo, eu achava estranho. Eu era muito nova, fiquei um pouco confusa. Mas, depois, já estava topando. Era bom, não é? Para que fugir de um negócio que era bom? Quando vi, já não dava mais tempo de sair. Estava na fogueira, queimando. Muitos anos depois, casamos pulando fogueira, em uma noite de São João. Juramos ficar juntas até que a morte nos separe.

Hoje em dia, a Jurema diz que se apaixonou à primeira vista. Que me viu no samba e se apaixonou, aquela coisa de momento mesmo. Para mim, foi diferente, até por essa questão da idade. Mas o tempo vai passando, vêm a conversa, os beijos... Aí o amor surgiu aqui também. Só veio mais devagarzinho, mas cresceu igual. Minha mãe desconfiava, ela não tinha nascido ontem. Mas nunca chegou em cima da gente. Só mais de dez anos depois, quando já estava morrendo, ela veio falar algo. Disse que nossa forma de agir não era normal, mas que não podia fazer nada sobre isso. E que, então, só queria a nossa felicidade. E que ela via felicidade na gente.

Quando conheci a Jurema, eu já era iniciada na umbanda, e ela também. Comecei muito cedo com o negócio de orixá, acontecia comigo sozinha em casa. E minha mãe, mesmo sendo do espiritismo, não gostava de ver a gente, ainda bem novo, naquilo. Ela não aceitava muito, mas acabou tendo de concordar. Tomei a obrigação (ritual em que, dentro da religião, se firma o compromisso entre o médium e a entidade) , mas depois saí, me afastei, caí na farra (Nicinha ri) . Só com 40 anos fechei a obrigação na umbanda e peguei a bandeja sendo uma ialorixá (mãe de santo) .

Quando eu e Jurema nos aborrecíamos, ou tínhamos uma briga, eu acabava indo para a balada e namorava um pouco com o pai dos meus filhos. Tenho também um terceiro filho, de 28 anos, que eu adotei quando tinha 10 dias de vida.

“Acho que nossa história é bonita, mas nunca imaginei que daria um filme. E, quando chamaram, pensei que seria uma coisa pequena. Nunca passou pela minha cabeça que viraria isso tudo!”

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Éramos duas mulheres vivendo juntas, na mesma cama, e tinha preconceito na escola, em todos os lugares. Então, os meus filhos acabavam chamando a Jurema de avó, e alguns fazem assim até hoje. Mas eles sabem. Com a Michelle (a filha do meio) , conversei quando ela tinha 12 ou 13 anos. Hoje, ela fala que não consegue imaginar a vida sem essas duas mulheres. Diz que somos os pilares, as duas mães dela. Ela não tem nem o sobrenome do pai biológico, e hoje em dia quer incluir o nome da Jurema na certidão de nascimento.

Uma vez, quando ele ainda era jovem, perguntaram para o meu filho mais velho: “Quem é o seu pai?” Ele respondeu: “Desculpa, mas não me interessa. Interessa é que minha mãe é minha mãe, e minha avó é minha avó”, que é como eles chamavam a Jurema. “Foram elas que me criaram e formaram o homem que eu sou”. E meus filhos estão bem encaminhados, graças a Deus. O mais velho é músico, tem um grupo de pagode que faz festas. A do meio é assessora parlamentar. E o mais novo é jardineiro de formação. Muita gente fala que na favela só tem o que não presta, mas é porque não procuram direito. Se buscar, encontra muita coisa maravilhosa.

Os três sempre moraram comigo e com a Jurema, assim como os quatro filhos que a Jurema já tinha, que também me chamam de mãe. E a gente foi caminhando junto, sem grandes brigas ou discussões, sem diferenças. Só um pouco de ciúme, às vezes, mas mais da parte dela (Nicinha dá uma gargalhada) . Além dos sete, nós criamos sobrinhos, netos... Também cuidei de três dos meus irmãos mais novos depois que minha mãe morreu. É tanta criança que até perco as contas. Mas é assim: se a gente tem um pão e souber dividir, dá para alimentar todo mundo. Todos sobrevivem.

Nós duas sempre fomos empregadas domésticas. Tenho orgulho. Ela, que é mais velha (tem 66 anos) , agora já parou. Eu ainda estou trabalhando, mas só dois dias por semana, por causa da pandemia. E também pela minha idade, não está dando para trabalhar muito... Vou fazer 60, não é? Mas a gente vai levando. Estamos terminando de construir uma casinha em Engenheiro Pedreira (bairro de Japeri, na Baixada Fluminense) , no meio do mato. Estamos fazendo aos poucos, mas Deus olha por nós. Devagarzinho vamos chegar lá.

Estou tentando ver se consigo me aposentar. Minha filha está acompanhando, falou que falta um ano e três meses. Ela e os irmãos tentaram pagar alguma coisa para agilizar, mas não deu. Quando eu conseguir aposentar, se eu conseguir, quero ficar com Jurema por lá. Passar minha velhice plantando, capinando, mexendo naquela terra. Eu e ela. É isso que eu gosto. E já deu de pegar trem lotado, não é? Aquele empurra-empurra, maior confusão. Não está dando mais. Tem de dar uma parada, sabe?

Acho que nossa história é bonita, mas nunca imaginei que daria um filme (o último episódio da série documental “Meu amor: seis histórias de amor verdadeiro”, da Netflix) . E, quando chamaram, pensei que seria uma coisa pequena. Nunca passou pela minha cabeça que viraria isso tudo! Eu dando entrevista, imagine? Que maravilha! Mas, na verdade, não sei por que escolheram nós duas. Acho que procuraram bastante, mas podem não ter encontrado com a nossa idade ou com a nossa energia. Existem muitos casais por aí... Mas não com tanto amor, talvez? Agora, muitas pessoas me param na rua, dão parabéns, dizem que adoraram o documentário. Falam que eu arrebentei, que é tudo lindo! Eu não sei nem o que responder, por onde começar. Eu só penso: “Caraca, acho que eu posso estar indo além do que eu pensava, não é?”.

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