Época cultura 1175

Pisadinha, o fenômeno do streaming

O novo forró desbanca o sertanejo nos aplicativos de música e se consolida como ritmo popular para além das fronteiras do Nordeste
A dupla Barões da Pisadinha, de Heliópolis, município baiano na divisa com Sergipe, emplacou dois hits, “Recairei” e “Basta você me ligar”, no Top 50 do Spotify Global, lista das músicas mais ouvidas no mundo na plataforma de streaming. Foto: Divulgação
A dupla Barões da Pisadinha, de Heliópolis, município baiano na divisa com Sergipe, emplacou dois hits, “Recairei” e “Basta você me ligar”, no Top 50 do Spotify Global, lista das músicas mais ouvidas no mundo na plataforma de streaming. Foto: Divulgação

Há quem se lembre — com bem mais do que uma ponta de saudosismo — do Brasil dos anos 1950, quando na proximidade do São João as prensas da gravadora RCA Victor atendiam exclusivamente à produção de discos do Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Mas hoje, quase 70 anos depois, os amantes do arrasta-pé não têm do que reclamar: puxada pelos meios digitais, uma nova onda de forró varre o país, capitaneada pela dupla Barões da Pisadinha, de Heliópolis, município baiano na divisa com Sergipe. No primeiro dia de 2021, eles conquistaram feito inédito na curta carreira: emplacar dois hits, “Recairei” e “Basta você me ligar”, no Top 50 do Spotify Global, lista das músicas mais ouvidas no mundo na maior das plataformas de streaming. Na virada do ano, a dupla chegou ao posto de artista mais ouvido do planeta de outro gigante do streaming, a Deezer.

“Nosso sonho era viver da música, não esperávamos esse sucesso. Ter músicas entre as 50 mais ouvidas do mundo é um negócio inacreditável quando a gente lembra que saiu do interior da Bahia, com dificuldades para investir na carreira”, disseram, em entrevista conjunta por mensagem de texto, os amigos Rodrigo e Felipe, os Barões da Pisadinha (nome que remete a uma moderna variação do baião, vinda do interior do Nordeste). “Começamos em 2015, como Barões do Forró, mas por causa do estilo que começamos a tocar pusemos esse outro nome, e deu muito certo.”

Tierry (na foto), Tarcísio do Acordeon e Biu do Piseiro são expoentes do novo forró que ascendem nos meios digitais. Foto: Divulgação
Tierry (na foto), Tarcísio do Acordeon e Biu do Piseiro são expoentes do novo forró que ascendem nos meios digitais. Foto: Divulgação

Na cola dos Barões, quem chega com força é Tarcísio do Acordeon, cantor e instrumentista cearense da cidade de Campos Sales, no sul do estado, divisa com o Piauí. Ele viveu parte da adolescência em Osasco, São Paulo, e mistura o forró tradicional a sua nova derivação, a chamada pisadinha, ou piseiro — termo que, em alguns lugares, também é conhecido como o lugar onde se toca a pisadinha. Há duas semanas, seu “Meia noite (você tem meu WhatsApp)” chegou ao primeiro lugar entre as músicas mais ouvidas no Brasil do Spotify, onde seu novo álbum, Diferente dos iguais , obteve no mês passado o sétimo lugar entre as melhores estreias globais — só três posições abaixo do McCartney III , de Paul McCartney). Também em dezembro, Diferente foi o segundo álbum mais ouvido do país na plataforma Deezer.

Nascido em uma família humilde (“meus pais chegaram a passar fome, mas nunca deixaram a gente passar”), Tarcísio, de 27 anos, jura que sempre trabalhou muito “pensando mesmo só em pagar as contas”. “Mas Deus foi muito bom comigo e 2020 veio para mudar minha vida. Por ser um tempo de pandemia, todo mundo estar em casa e ninguém querer sair à rua, o povo teve tempo para ouvir coisas novas, melodias diferentes, canções mais leves, que falam de amor”, acredita ele. Apesar de Tarcísio ser compositor, o “WhatsApp” veio da pena de um amigo, Zé Malhada: “Eu ia gravar ao vivo e não podia colocar músicas minhas, que estavam reservadas para um álbum autoral. Saí procurando composições de amigos e aí tinha essa que vários artistas já vinham cantando havia algum tempo. Ela estourou de uma forma que a gente não esperava.”

Tarcísio do Acordeon. Foto: Divulgação
Tarcísio do Acordeon. Foto: Divulgação

Além dos Barões e de Tarcísio do Acordeon, outros nomes do novo forró ascendem nos meios digitais. Em dezembro, na Deezer, o álbum mais ouvido no Brasil foi O original . Superando os de astros do onipresente sertanejo, como Marília Mendonça e Gusttavo Lima, a obra de Zé Vaqueiro, cantor pernambucano de 21 anos, estourou com a música “Letícia”. Logo atrás dele, vêm nomes como os de Jonas Esticado (“Investe em mim”), Tierry (de “Rita”, com seus versos que são puro romantismo, como volta, Rita/que eu perdoo a facada ), Biu do Piseiro (“Sextou”) e Eric Land (“Cidade inteira”), além de Japinha Conde e o Conde do Forró (“Romance desapegado”).

E a onda deflagrada pela pisadinha, ou piseiro, aos poucos vem tomando também as rádios. Na aferição da Crowley Broadcast Analysis do que as emissoras brasileiras mais tocaram entre os dias 10 e 16, o novo forró emplacou oito hits nas 66 músicas mais tocadas. É a vitória de um ritmo que saiu do interior para as capitais, do Nordeste para o resto do país e que, exceto pelos Barões (contratados pela Sony Music), funciona muito bem, obrigado, de forma independente. “O sertanejo estava comendo tudo, e, quando a gente chegou com esse novo forró, muita gente abraçou. Nossa linguagem é a mesma do velho forró, mas a pegada é diferente, com teclado, sanfona... eu fiz uma doideira bem grande, que foi unir o piseiro com o sax”, gabou-se Zé Vaqueiro, que veio de Ouricuri, sertão de Pernambuco, e adotou o nome artístico para cantar vaquejada, estilo típico de sua região. Compositor gravado por Xand Avião, ele tirou a sorte grande no fim do ano passado com o estouro de “Letícia”, cujo vídeo no YouTube agora tem mais de 150 milhões de visualizações. “Acho que o que pegou foi a linguagem da letra, ter falado de mototaxista, de tatuagem... é uma linguagem muito povo”, alegou ele, “o original”, que partilha o nome artístico com outro astro do forró, o Zé Vaqueiro Estilizado: “Houve essa coincidência, mas o sol nasce para todo mundo. Ele tem o trabalho dele e eu o meu.”

“Em 2021, os Barões da Pisadinha já conquistaram feito inédito: emplacar dois hits no Top 50 do Spotify Global, lista das músicas mais ouvidas no mundo na maior das plataformas de streaming”

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Paraibano de Campina Grande, Guilherme Alexandre, de 23 anos, o Biu do Piseiro, artista cujas raízes musicais estão mais no funk carioca do que em Luiz Gonzaga, vai além e diz que seu estilo está à parte do forró: “Por que o piseiro está tão em alta? Porque saiu da mesmice do forró, que é engomado, moldado pelas grandes produtoras. O piseiro é como se fosse o punk derivado do rock’n’roll. O rock estava um saco, a galera pegou ele e fez uma parada simples, com uma energia tremenda.” “O mundo está rodando, os ritmos vão se misturando e criando novos ritmos. E cada vez o público está mais eclético, se identificando com esses ritmos”, explicou o cearense de Fortaleza Eric Land (“o Eric é meu mesmo, e o Land é fantasia, significa território, terra, mundo”), cantor que vem trabalhando com uma equipe de compositores para encontrar “músicas assertivas, que caiam na boca do povo.” Ele ecoa a opinião de Gustavo Faria, gerente artístico da Som Livre, gravadora que agora aposta no novo forró de nomes como Jonas Esticado, Mano Walter e Matheus Fernandes. “O forró e outros gêneros têm conversado bastante entre si, as vantagens e possibilidades vêm sendo bem aproveitadas e os resultados têm sido excelentes dentro das paradas de sucesso”, disse Faria.

No último dia 15, Jonas Esticado lançou sua primeira parceria com Wesley Safadão, astro surgido no começo dos anos 2000, no forró eletrônico, com o grupo Garota Safada. “Hoje nós temos o piseiro fazendo o maior sucesso pelo Brasil, um ritmo mais acelerado com batidas eletrônicas. Foi inclusive um dos elementos que usei em meu recente lançamento, (o álbum) Safadão amplificado ”, admitiu Wesley Safadão, que no disco gravou com os Barões da Pisadinha a música “Ele é ele, eu sou eu”. Outra estrela do forró eletrônico, Xand Avião se confessou otimista com a nova onda — tanto que gravou “Cidade inteira” com Eric Land e o “Basta você me ligar” com os Barões. “No andar da carruagem, tudo pode acontecer”, apostou o cantor. “ O forró deixou de ser ouvido só no Nordeste e só no São-João. Ele uniu todas as classes, virou moda, é alegre e faz bem.”

Biu do Piseiro. Foto: Divulgação
Biu do Piseiro. Foto: Divulgação

E tanto fez bem o forró que ele se tornou o ritmo de maior crescimento no país no período em que tudo parou por causa da Covid-19. “A pandemia travou toda a indústria do show, mas o forró é a música que a galera dança em casa, nas microfestas”, especulou Paulo Lima, presidente da Universal Music do Brasil, gravadora que tem posto suas fichas no “Você não vale”, de Felipe Araújo e Japinha Conde, e no “Já te esqueci”, de Léo Santana e Barões da Pisadinha. “E dessa vez, também, há o fenômeno da digitalização dos fãs do forró. O streaming começou a ter uma penetração maior no Nordeste, o que fez com que esse conteúdo de forró aparecesse mais.” “A galera do forró pegou muito pesado nessa questão de lives”, analisou Pollyana Ferreira, que tem um canal sobre músicas do ritmo no Deezer. Já Roberta Pate, diretora de Relacionamento com Artistas e Gravadoras do Spotify na América Latina, atribui o sucesso ao caráter agregador da música: “ (O forró) nos possibilitou conectar artistas e fãs de uma maneira que não era possível, fazendo com que a cultura local ultrapassasse os limites regionais e se expandisse para todo o país”.

Assim, em 2021, tudo é possível para o forró que um dia foi de Luiz Gonzaga. “O grande plano para o ano é o forró continuar vivo”, informou Tarcísio do Acordeon. “A gente está num barco só, se afundar para um, afunda para todos. Quanto mais artistas surgirem neste segmento da gente, melhor. É um braço a mais, é uma perna a mais.” E Raí Saia Rodada, outro fenômeno do forró eletrônico do começo dos anos 2000, cujo sucesso foi revitalizado nesta década de 20, ofereceu seu prognóstico: “Se Deus quiser, acabando essa pandemia, se prepare, porque o forró vai ser dobrado!”.

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