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Época cultura 1143

Uma imersão em tempos sombrios com Milton Hatoum

Um dos maiores escritores brasileiros reflete sobre o significado do atual momento no país e fala de experiências de solidariedade
“Não está fácil. O Brasil talvez seja o único lugar do mundo onde o governo é incapaz de lidar tanto com a pandemia quanto com a democracia”, disse Hatoum. Foto: Karime Xavier / Folhapress
“Não está fácil. O Brasil talvez seja o único lugar do mundo onde o governo é incapaz de lidar tanto com a pandemia quanto com a democracia”, disse Hatoum. Foto: Karime Xavier / Folhapress

Se não fossem as medidas de isolamento social adotadas para conter a pandemia de Covid-19, o escritor Milton Hatoum estaria nas ruas protestando. “Não só eu, mas muita gente, gostaria de ir às ruas, de me mobilizar fisicamente neste momento, mas não podemos, porque não somos irresponsáveis. Não está fácil. O Brasil talvez seja o único lugar do mundo onde o governo é incapaz de lidar tanto com a pandemia quanto com a democracia”, desabafou o manauara de 67 anos, autor de romances benquistos pelo público e pela crítica, como Dois irmãos e Cinzas do Norte , numa conversa com ÉPOCA por Skype. Hatoum só sai de casa se precisa ir à padaria. Às vezes, caminha com os filhos adolescentes, para ajudá-los a espairecer depois de tanto tempo trancafiados em casa.

A pandemia desorganizou sua rotina de escrita. “Acabou. Não tem mais rotina nenhuma”, disse. “À noite, quando a casa já está arrumada e a cozinha limpa, eu leio e escrevo. Não quero parar de revisar este último volume, senão esfria muito.” Hatoum se refere ao terceiro volume da trilogia O lugar mais sombrio , publicada pela Companhia das Letras, que descreve as andanças de Martin, um jovem de São Paulo que se muda para Brasília com o pai em 1968, depois que a mãe foge com um artista. Quando a repressão da ditadura militar aperta, Martin volta para São Paulo e depois se exila em Paris.

Cena de “Dois irmãos”, série da Globo baseada em livro de mesmo nome escrito por Hatoum. Foto: Reprodução
Cena de “Dois irmãos”, série da Globo baseada em livro de mesmo nome escrito por Hatoum. Foto: Reprodução

O primeiro volume, A noite da espera , saiu em 2017 e narra as experiência de Martin em Brasília, onde ele estuda arquitetura na Universidade de Brasília (UnB), se engaja num grupo de teatro com outros estudantes “subversivos” e busca notícias da mãe. No segundo, Pontos de fuga , lançado em novembro passado, Martin se refugia numa república na Vila Madalena, em São Paulo, com alunos da Universidade de São Paulo (USP). A noite da espera é inteiramente composto de anotações feitas por Martin em seu diário, em São Paulo e Brasília, durante os Anos de Chumbo e no exílio parisiense. Em Pontos de fuga surgem outras vozes: cartas enviadas por amigos de Martin e diários de outros personagens. O terceiro volume ainda não tem data para chegar às livrarias e o escritor não tem pressa.

Hatoum também tem escrito “declarações de amor”. “Eu estou muito carente, cara. Sou um velho carente do grupo de risco”, brincou. As “declarações de amor” são, na verdade, dedicatórias. Hatoum fez um acordo com a Livraria Mandarina, perto de sua casa, em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, forçada a fechar as portas durante a quarentena. Quem comprasse qualquer um dos livros dele na Mandarina — que está recebendo pedidos por telefone, e-mail, redes sociais e WhatsApp — ganharia 10% de desconto e uma dedicatória. A promoção mudou depois de algumas semanas. Agora, quem comprar um dos volumes da trilogia recebe 10% de desconto e, de brinde, uma edição de bolso de outro livro de Hatoum, que pode ser Relato de um certo Oriente , Cinzas do Norte ou A cidade ilhada . “O Milton é o padrinho da Mandarina. Ele nos mandou uma mensagem perguntando como estávamos passando a quarentena e perguntando se podia ajudar”, contou Daniela Amendola, uma das sócias da livraria.

Hatoum está ajudando uma pequena editora de Belo Horizonte a sobreviver em tempos de pandemia com a publicação de uma coletânea. Foto: Alberto César Araújo / Amazônia Real
Hatoum está ajudando uma pequena editora de Belo Horizonte a sobreviver em tempos de pandemia com a publicação de uma coletânea. Foto: Alberto César Araújo / Amazônia Real

A promoção tem feito sucesso. “Já mandamos livros do Milton para Brasília, Ceará, Paraíba, Piauí, o Brasil todo. O Milton é o autor mais generoso que eu conheço”, completou Amendola. “Tem muito de todos nós nos livros dele. Os personagens contam uma história que é também nossa história como país”. A equipe da Mandarina deixa os livros na portaria do prédio onde Hatoum mora. Ele sobe com os livros, escreve as dedicatórias e os devolve à portaria, de onde são retirados pela equipe da Mandarina e remetidos aos “leitores invisíveis”. “Sem o leitor não existe literatura. E ganhar um novo leitor num país como este, num momento como este...”, refletiu Hatoum. “Nenhum desses ministros aí citou uma obra literária que seja. A única obra citada pelo presidente é o livro de um torturador”, disse, em referência a A verdade sufocada , de Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), coronel do Exército acusado de torturar presos políticos quando chefiava o DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar.

“Hatoum tem tentado ajudar uma livraria perto de sua casa, num bairro nobre de São Paulo, além do Sarau do Binho, que promove ações culturais na periferia da cidade, e de ONGs ambientais. ‘Sem o leitor, não existe literatura’, afirmou”

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Como não pode sair às ruas para protestar, Hatoum tem aceitado convites para participar de lives nas quais fala de literatura e critica o governo. Também tem firmado parcerias para ajudar aqueles que mais têm sofrido com a quarentena. Enquanto durar a pandemia, Hatoum vai doar tudo que receber pelos direitos autorais ao Sarau do Binho. Desde 2004, o Sarau do Binho promove ações culturais na periferia de São Paulo, como a Feira Literária da Zona Sul (Felizs), à qual Hatoum já compareceu duas vezes. “A proibição das aglomerações atingiu a todos que têm na cultura seu ganha-pão”, disse Suzi Soares, produtora do Sarau do Binho. “Para ajudar as famílias que têm aluguel para pagar e criança pequena, nos juntamos para distribuir cestas básicas que são retiradas aqui no portão de casa.” Quando soube da iniciativa, Hatoum propôs a doação do dinheiro dos direitos autorais para as ações solidárias do Sarau do Binho. “Ele sempre foi muito generoso”, afirmou Soares.

“O Sarau do Binho funciona também como um centro de ajuda. Tem gente que vai lá pedir ajuda quando está com fome. É uma rede de solidariedade impressionante”, disse Hatoum. Ele também firmou uma parceria com a editora e livraria Páginas, de Belo Horizonte. Leida Reis, proprietária da Páginas, procurou o escritor para perguntar se ele tinha algum texto inédito que ela pudesse publicar e reverter os ganhos para alguma ação solidária. Ele não tinha nenhum inédito, mas propôs a reunião de textos de Um solitário à espreita num livreto. A Páginas publicará Sete crônicas de Milton Hatoum nos próximos dias. O livro vai custar R$ 27,90, e os lucros serão repassados, a pedido do autor, a quatro ONGs que assistem indígenas na Amazônia: o centro de medicina indígena Bahserikowi, que cuida de pajés idosos; a Associação das Mulheres Indígenas Sateré Mawé (Amism), uma rede de artesãs indígenas; o Parque das Tribos, que assiste 700 famílias; e a Operação Amazônia Nativa, a mais antiga ONG indigenista do país. “Procurei o Milton pelo respeito que tenho pela obra dele e também por ver nele uma pessoa preocupada com o Brasil”, afirmou Reis.

Na visão do escritor, Manaus perdeu com a criação da Zona Franca. “A cidade cresceu de forma caótica e irresponsável”, disse. Foto: Arquivo / Agência O Globo
Na visão do escritor, Manaus perdeu com a criação da Zona Franca. “A cidade cresceu de forma caótica e irresponsável”, disse. Foto: Arquivo / Agência O Globo

Hatoum anda especialmente preocupado com o avanço da Covid-19 na Amazônia. “Está uma loucura a minha cidade. Manaus virou uma necrópole. A maior necrópole da Amazônia”, alertou. Pelo WhatsApp, ele recebe, alarmado, notícias compartilhadas por parentes e amigos que ainda vivem em Manaus. “A questão urbana na Amazônia é uma catástrofe. O que estamos vendo hoje é consequência de décadas de corrupção e mal planejamento, de uma sucessão de burrices”, afirmou o escritor, arquiteto de formação. “Manaus era pequenininha, no coração da floresta. Com a Zona Franca, cresceu de forma caótica e irresponsável, devastando a floresta e poluindo os igarapés.”

“A pandemia desorganizou a rotina literária de Hatoum. ‘Agora, à noite, quando a casa já está arrumada e a cozinha limpa, eu leio e escrevo. Não quero parar de revisar o último volume da trilogia ‘O lugar mais sombrio’’, disse”

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Em Cinzas do Norte , publicado em 2005 e vencedor do Prêmio Jabuti, Hatoum descreveu o que vê como uma modernização grosseira da Amazônia patrocinada pela ditadura militar. Na conversa com ÉPOCA, ao comentar a desolação trazida pelo coronavírus, ele se lembrou de um trecho do romance, no qual o artista Mundo protesta por meio da instalação Campo de cruzes , apresentada num bairro periférico e extremamente precário erguido pelos militares em Manaus. As discussões sobre os usos políticos da arte são frequentes nos livros de Hatoum, que costumam ter a história do Brasil como pano de fundo e aludir à ditadura militar. Não é à toa que seus romances são povoados por artistas: poetas, tradutores, fotógrafos e, no caso da trilogia em andamento, atores e arquitetos que, cada um a seu modo, tentam resistir ao autoritarismo.

Em A noite da espera , o primeiro volume da trilogia, a trupe de teatro brasiliense a que Martin se junta debate levar as lutas populares ao palco. No segundo volume, Pontos de fuga , a discussão esquenta e engloba também a arquitetura. Na república da Vila Madalena, Sérgio e Ox discutem “o poder redentor da arquitetura, o desenho que humaniza a vida”. Sérgio quer construir moradias populares e sustenta que o traçado racional de Brasília “desafiou o futuro”. Ox, um aristocrata talvez cínico, talvez lúcido, afirma que a nova capital “apenas revelou mais uma vez nossa disparidade social”. “O projeto de Brasília foi pensado para o convívio comunitário, mas isso só é viável numa sociedade com cultura democrática, e bem menos injusta”, diz Ox. Preocupado com a mãe sumida, Martin não participa das discussões.

Enquanto durar a pandemia, Hatoum vai doar tudo que receber pelos direitos autorais ao Sarau do Binho, grupo que atua na periferia de São Paulo. Foto: Michel Filho / Agência O Globo
Enquanto durar a pandemia, Hatoum vai doar tudo que receber pelos direitos autorais ao Sarau do Binho, grupo que atua na periferia de São Paulo. Foto: Michel Filho / Agência O Globo

Quando estudava arquitetura, nos anos 1970, Hatoum preferia a arte à política. “A esquerda era e em parte ainda é muito moralista”, disse. “Havia normas de conduta. Não podia puxar fumo. As meninas não podiam usar minissaia. Veja hoje o descaso de alguns partidos de esquerda com a questão indígena e o meio ambiente.” Hatoum sabe como poucos cifrar a política nos interstícios de uma prosa límpida e ritmada, mas não gosta de arte engajada, que, como um de seus personagens, ele define como “a miséria da imaginação”. No entanto, dada a escalada autoritária em curso no Brasil, ele está disposto a tolerar arte panfletária. “Na iminência do fascismo, a arte de denúncia é importante. Temos de denunciar o autoritarismo. Não é momento para muitas sutilezas. Agora vale tudo, até poema panfleto.”

Hatoum pede que todas as forças progressistas e democráticas se juntem para derrotar a extrema-direita. “Agora é tempo de dialogar, de aglomerar as diferentes ideias e, quando pudermos, sair às ruas chamando todo mundo.” Enquanto não pode ir às ruas, Hatoum protesta como dá.

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