Época Ruan de Sousa Gabriel

Drummond denunciou a mineração predatória e a Vale em versos e crônicas

Tinha um poeta no meio do caminho
Operários extraem hamatita no Pico do Cauê, em Itabira: Drummond denunciou efeitos da mineração em sua cidade natal Foto: Arquivo Público Mineiro
Operários extraem hamatita no Pico do Cauê, em Itabira: Drummond denunciou efeitos da mineração em sua cidade natal Foto: Arquivo Público Mineiro

Lira itabirana
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

O poema acima, assinado por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), circulou nas redes sociais no último fim de semana, após o rompimento da barragem da Vale S.A. em Brumadinho, Minas Gerais. Pouco mais de uma centena de quilômetros separam Brumadinho de Itabira, onde nasceram o poeta e a Companhia Vale do Rio do Doce, criada em 1942 por Getulio Vargas para explorar a riqueza mineral do Quadrilátero Ferrífero e privatizada em 1997 por Fernando Henrique Cardoso. A Fazenda do Pontal, onde Drummond passou a infância, é hoje um depósito de rejeitos da Vale. A “Lira itabirana” foi publicada no jornal O Cometa Itabirano em 1984, mas não aparece em nenhuma antologia poética de Drummond. Os versos mencionam a Vale e o Rio Doce, inundado pela lama mineradora depois do rompimento da barragem da Samarco (empresa controlada pela mineradora anglo-australiana BHP Billiton e pela Vale) em 2015, em Mariana; a gula das mineradoras nacionais e estrangeiras que depredam a serra mineira, arrancam o rico minério da terra e vão embora para os mercados internacionais deixando para trás a terra arrasada; e a dívida impagável da mineração com as populações mineradoras e o meio ambiente: Quantas toneladas exportamos/De ferro?/Quantas lágrimas disfarçamos/Sem berro? .

Se Drummond vivesse ainda hoje, não seria difícil imaginá-lo assistindo à lama de Brumadinho pela televisão, com suas retinas tão fatigadas, e escrevendo esse poema, talvez com outro título, como “Lira mineira”. Drummond compôs um punhado de poemas sobre a mineração, versos que jogavam pedra nas mineradoras e nos governos dispostos a sacrificar a geografia e os trabalhadores mineiros pelo vil (e lucrativo) metal. Quem não se lembra da “pedra de ferro, futuro aço do Brasil”, evocada na “Confidência do Itabirano”? As relações conturbadas de Drummond com a mineração estão muito bem esmiuçadas em Maquinação do mundo , o belo livro de José Miguel Wisnik publicado pela Companhia das Letras no ano passado. Do casarão de sua família, o poeta, ainda menino, avistava o Pico do Cauê, serra riquíssima em minério de ferro que foi reduzida a uma cratera após décadas de exploração da Vale. O pico aparece no poema “Itabira”, de Alguma poesia , estreia editorial de Drummond, de 1930: Cada um de nós tem seu pedaço no Pico do Cauê. A montanha de ferro era o orgulho dos itabiranos, sólida promessa de prosperidade que o poeta sabia que jamais se cumpriria. No último verso do poema, Tutu Caramujo, um comerciante decadente de Itabira, olha a mina e “cisma na derrota incomparável” que já se anunciava.

Drummond não aceitou a derrota de cabeça baixa. Nos anos seguintes à criação da Vale, ele usou seu espaço na imprensa para denunciar as consequências desastrosas da mineração. O poeta aproveitou que 1955 era um ano eleitoral (que terminou com a eleição de um mineiro, Juscelino Kubitschek) e investiu numa campanha diligente contra a Vale, contrastando os lucros bilionários da companhia com a pobreza e o abandono das cidades mineradoras. As crônicas de Drummond no Correio da Manhã , lembra Wisnik, cobravam “instalação de siderurgia, participação dos empregados nos ganhos da empresa, critérios mais justos de participação municipal no preço do ferro e reversão do excedente em benefício da região”.

Numa crônica, Drummond acusou as mineradoras de “indústria ladra, porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto”. Embora as preocupações principais do poeta fossem os direitos dos trabalhadores e a prosperidade do Quadrilátero Ferrífero, ao acusar a Vale de “indústria ladra”, Drummond denunciou também a propensão das mineradoras ao crime ambiental. A Vale, é claro, não gostava das pedradas do poeta e resolveu revidar. No dia 20 de novembro de 1970, estampou no Globo uma peça publicitária que fazia troça do poema mais famoso de Drummond ao dizer que “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro” e depois se congratular por “transformar pedras em lucros para a Nação”.

A propaganda ufanista da Vale lembra uma série de reclames que o governo de Minas veiculou em 2010 em homenagem às cidades mineradoras. Os filmetes (não os encontrei no YouTube, cito de memória), exibiam imagens orgulhosas das cidades mineradoras, desde as mais famosas, como Ouro Preto, Sabará e Mariana, até cidades esquecidas do Sul de Minas onde há extração de bauxita, urânio e feldspato (o que não deixa de ser surpreendente, uma vez que a até a Serra da Mantiqueira sabe do desinteresse da elite política de Belo Horizonte pelas províncias do estado). As peças publicitárias seguiam uma narrativa meio “cada um de nós tem seu pedaço no Pico do Cauê”, insinuando que cada mineiro era de fato um mineiro, um orgulhoso trabalhador que retira das profundezas das montanhas as riquezas do estado. Propagandas como a da Vale e a do governo de Minas só servem para oferecer narrativas compensatórias e simbólicas: o pedaço que cada um tinha no Pico do Cauê, na verdade, foi expropriado pelo capital estrangeiro, virou só uma imagem publicitária oficial; e o lucro das pedras não serviu para estancar a lama. Mariana e Brumadinho cismam ainda a “derrota incomparável”, confirmando, lamentavelmente, a urgência dos versos e das pedradas de Drummond.