Época cultura

Em Campinas, casa de Hilda Hilst, escritora homenageada pela Flip, é cenário de documentário

O filme é baseado em fitas gravadas pela própria escritora, que tentava contato com o sobrenatural
A escritora Hilda Hilst na Casa do Sol em 1990. Para lá, ela foi em busca de paz para escrever, mas sempre cercada de amigos e colaboradores Foto: Agência O Globo
A escritora Hilda Hilst na Casa do Sol em 1990. Para lá, ela foi em busca de paz para escrever, mas sempre cercada de amigos e colaboradores Foto: Agência O Globo

Hilda Hilst acordava pouco depois das 5 horas da manhã, mas não saía de seu quarto na Casa do Sol. Ouvia um pouco de rádio e voltava a dormir. O dia começava de vez por volta das 9 horas, quando todos iam tomar café da manhã — na robusta mesa do pátio quando fazia calor, na da cozinha em dias frios. À mesa, falava-se sobre os sonhos da noite anterior. Hilst pedia a todos que anotassem os seus. Foi à mesa do café que ela contou que o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, que vivera ali no fim dos anos 1960 e início dos 1970, despedira-se dela em sonho. “O Caio morreu. Eu sei disso porque ele veio se despedir de mim”, contou. Abreu estava hospitalizado e Hilst não sabia dele havia tempos. Pouco depois, o escultor Dante Carasini, de quem Hilst era divorciada, mas que continuava a viver ali, chegou com os jornais do dia, como fazia todas as manhãs. Os jornais traziam uma notícia que já era velha para ela: Abreu havia morrido no dia anterior, 25 de fevereiro de 1996.

A Casa do Sol é o principal cenário do documentário Hilda Hilst pede contato, de Gabriela Greeb, que estreia em 30 de julho. Um livro de mesmo nome, com a pesquisa que Greeb fez para o documentário, será lançado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O apego de Hilst à casa era tamanho que ela não sentia vontade de viajar. “Essa casa tinha tudo do que ela precisava”, contou a ÉPOCA Olga Bilenky, amiga de longa data de Hilst, artista plástica e atual moradora da Casa do Sol. Certa vez, ao entrar na casa junto de Bilenky e de seu marido, José Luis Mora Fuentes, Hilst colocou as duas mãos no peito e, como quem não consegue segurar a emoção, exclamou: “Olga, Zé, como eu amo esta minha casa! Como é bom para mim viver e estar nesta casa”.

A Casa do Sol recebia muita gente. Não apenas recebia, mas abrigava. Da mesa do pátio é possível ver as portas que conduzem aos cinco quartos. Apesar de a ter construído — à época em meio à zona rural de Campinas, no interior de São Paulo — para fugir da vida boêmia que levava na capital e se concentrar em sua obra, Hilst não buscava isolamento. Pelo contrário: ao longo dos 38 anos em que lá viveu, dos 36 anos de idade até sua morte, em 2004, aos 73, convidou inúmeras pessoas para passar temporadas com ela, de visitas e fins de semana a estadias que se prolongavam por meses.

Pela Casa do Sol passaram desde o físico César Lattes até desconhecidos que despertaram o interesse de Hilst. Jurandy Valença foi um deles: morou na residência entre 1991 e 1994. Com 21 anos de idade, o jovem alagoano estudara engenharia química, mas queria ser poeta. Desejava ser, para Hilst, o que Samuel Beckett fora para James Joyce — um discípulo. A comparação com Joyce não era arbitrária: para Valença, Hilda e o autor de Ulisses tinham “o mesmo nível de genialidade”. De um orelhão em São Paulo, Valença tomou coragem e declarou sua admiração por ela. Um ano depois Hilst lhe fez um convite: “Quero te oferecer três coisas: casa, comida e tempo. Só não posso dar dinheiro, porque não tenho. Mas você vai ver que, com o passar do tempo, o dinheiro perde completamente o valor. O tempo vale muito mais”. Em uma das paredes da sala principal da casa paira um relógio onde se lê “É mais tarde do que supões”, frase que Hilst leu num livro e passou a repetir.

Um dos três altares da casa e detalhes de porta-retratos. Hilst se relacionava com espaços da casa como se fossem locais de devoção Foto: Laila Mouallem
Um dos três altares da casa e detalhes de porta-retratos. Hilst se relacionava com espaços da casa como se fossem locais de devoção Foto: Laila Mouallem

“Quando decidiu se dedicar a sua obra, Hilda percebeu que tinha tanto a dizer que talvez toda uma vida não seria suficiente. A vida é uma experiência muito rápida”, contou Olga Bilenky, enquanto bebericava a cachaça paratiense Maria Isabel sabor tangerina. A escolha da bebida é auspiciosa. Mauro Munhoz, diretor-presidente da Associação Casa Azul, que promove a Flip, foi apaixonado pela filha de Maria Isabel, a produtora da cachaça. E Hilst, que a vida toda desejou ser lida e entendida, é a autora homenageada pela Flip neste ano.

Hilst passava as manhãs e tardes em seu escritório. Saía de lá para almoçar entre 13 e 14 horas. Mantinha uma disciplina notável. Estabelecia um número de palavras a serem escritas por dia, mesmo que as descartasse depois. A inspiração era respaldada por horas de estudo intenso — física, matemática, filosofia, espiritismo, literatura. Hilst sempre lia cerca de dez livros ao mesmo tempo. O escritório permanecia aberto a quem quer fosse, a qualquer hora do dia. Hilst atendia a todos e adorava conversar sobre o que estava estudando. Gostava de ler os poemas que escrevia em voz alta — e no português lusitano — ou pedir que alguém os lesse. Queria ouvir e ver a reação dos outros. Mora Fuentes (1951-2009), marido de Bilenky, era um de seus ouvintes preferidos. Antes do almoço, eles iam até um banco do jardim ler o que ela havia escrito no dia.

O motivo por que Hilst conseguia produzir seus textos metodicamente e, ainda assim, não barrar as interações sociais ao longo do dia era a atmosfera de trabalho da Casa do Sol. Todos que lá estavam hospedados desenvolviam seus projetos pessoais, estimulados pelo ambiente criativo. “Perto da Hilda, pessoas que já eram criativas ficavam ainda mais criativas. E as que não tinham entrado em contato com esse lado viam a criatividade aflorar. Foi o caso do Dante, que sempre trabalhou em cargos administrativos e, depois, começou a esculpir em madeira”, contou Ana Lúcia Vasconcelos, atriz, jornalista e cientista social que conviveu com Hilst na década de 1970. “Era um silêncio produtivo permeado por momentos muito vivos”, recordou Daniel Fuentes, filho de Bilenky e Mora Fuentes. Ele passou a infância na Casa do Sol e hoje é presidente do Instituto Hilda Hilst, que funciona ali. A casa continua de portas abertas, como a dona gostava. Após a morte de Hilst, Bilenky criou o Projeto de Residências da Casa do Sol, que recebe qualquer um que queira viver em um ambiente propício à criação e ao estudo.

À figueira, Hilst atribuía o poder de realizar desejos Foto: Laila Mouallem
À figueira, Hilst atribuía o poder de realizar desejos Foto: Laila Mouallem

Ao fim da tarde, Hilst interrompia o trabalho para tomar chá e conversar. O chá — Earl Grey, de preferência — era às vezes acompanhado de biscoitos amanteigados com geleia. Às 19 horas, começavam os preparativos para a noite. “Todas as noites eram recebidas como se fossem festas”, relembrou Bilenky. Todos se reuniam na sala principal, repleta de móveis de madeira e couro e grandes janelas. A sala é escura, iluminada apenas por abajures de luz amarela. As paredes são pintadas de um tom de rosa terroso. Antes, a sala era iluminada apenas por lampiões. As paredes já foram brancas, mas Hilst mandou pintá-las de rosa a pedido de sua falecida mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, que lhe apareceu num sonho.

No início da década de 1970, quando começou a viver na Casa do Sol, Hilst bebia somente em dias de festa e em encontros com amigos. No decorrer dos anos, passou a beber todas as noites. De dia, nunca. Bebia, mas estava longe de ser uma alcoólatra. Jamais escreveu uma só palavra alcoolizada — mas escreveu, sim, sobre o álcool. Os poemas do livro Alcoólicas , de 1990, contam sobre sua experiência com a bebida. Para ela, o álcool era também “recusar o sólido, o nodoso, a frieza-armadilha de algum rosto sóbrio”: Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito/Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado/Salpicado de negro, de doçuras e iras.

Hilst bebia uísque todas as noites. Era quase um ritual. Maria Luiza Mendes Furia, jornalista e sua amiga, contou que, em um quartil, ela separava nove doses. Em cima da mesa, uma jarra de água; num copo um pouco maior que o americano, colocava uma dose de uísque e completava com água. Furia chamava a mistura de “suco de uísque”. E Hilst, recordou Belinky, brincava que, quando chegasse à sétima dose, deviam forçá-la a largar o copo.

Hilst gostava de beber enquanto assistia à novela das 8. Sentava-se numa cadeira baixinha, ao nível da mesa de centro — caso quisesse comer em frente à TV, já que jantar nem sempre foi um hábito dos moradores da Casa do Sol. Admirava os autores de novelas por conseguirem criar e sustentar histórias longas, desenvolver tantos personagens e abordar, ao mesmo tempo, as trivialidades e as profundezas do cotidiano. “Hilda não tinha nenhum preconceito. Era uma intelectual erudita, mas não achava que a novela era menos erudita do que ela”, disse Belinky. Hilst gostava de novelas porque gostava de gente. Para elas, as pessoas eram fontes inesgotáveis de conhecimento. Ela costumava perguntar aos funcionários da Casa do Sol como se falavam palavrões como “boceta” e “cu” nos lugares de onde eles vinham. Anotava tudo. Quando acabava a novela, por volta das 22 horas, ia se deitar. Só ficava até mais tarde na sala quando recebia visitas.

Hilst andava lentamente pela casa. Até mesmo o jeito de colocar comida no prato era calmo. Era sensível, afetuosa e bem-humorada. Muitas vezes, porém, era ciumenta e passional. Quebrava copos de propósito. Se o copo estava vazio, não era nada sério. Quando o copo arremessado continha uísque, a coisa era feia. “Hilda era dramática, épica, escandalosa”, definiu Gabriela Greeb, diretora do documentário Hilda Hilst pede contato . O filme é baseado em fitas gravadas pela própria escritora, que tentava contato com o sobrenatural.

Hilst começou a buscar esse contato nos anos 1970. Inspirada pelo cientista e crítico de arte sueco Friedrich Jürgenson, que acreditava que as vozes do além precisavam de corpos para se expressar, Hilst tentava ouvir — e gravar — vozes entre estações de rádio, no ronronar de um gato, nos sons do motor da geladeira. Conseguiu registrar alguns sons nas inúmeras fitas que utilizou. Dizia que “muito pouco se estudou sobre a composição da alma” e se dispôs, ela própria, a encontrar algum fundamento para a finitude da vida. “Ao mesmo tempo que acreditava em tudo, Hilda buscava um rigor científico em suas experiências. Ficava horas e horas ouvindo aqueles ruídos e descartava 99% de tudo”, contou Daniel Fuentes. “Não era uma fé cega, mas uma fé com requinte científico. Era um processo de busca extrema por lucidez.” Hilst reservava as noites para suas experiências transcendentais.

Hilda Hilst em 1954. Ela começou a buscar contatos transcendentais Foto: Reprodução
Hilda Hilst em 1954. Ela começou a buscar contatos transcendentais Foto: Reprodução

Hilst era uma mulher elegante. Usava meias três-quartos de seda e um perfume que anunciava sua chegada. Quase sempre estava acompanhada de um cigarro Chanceller. Fumava um cigarro a cada 15 minutos. Colocava chapéus espalhafatosos quando caminhava até o vizinho. Mas não costumava caminhar muito. Ia, no máximo, até uma figueira no quintal. “Vamos até a figueira”, dizia, como quem se prepara para percorrer um longo caminho. Ela se relacionava com os espaços como se fossem altares. Há, pelo menos, três verdadeiros altares na Casa do Sol. A figueira, que tem mais de 300 anos, é um deles. Hilst construiu a Casa do Sol num pedaço de uma fazenda que pertencia à mãe. Escolheu o terreno de 10 mil metros quadrados por causa da figueira, que considerava mágica. Ao longo dos anos, foram inúmeros os pedidos feitos à árvore — e acatados por ela. Até mesmo Daniel Fuentes, que se diz completamente cético, confessou acreditar no poder da árvore. “Ela é eficiente, isso é real. É um buraco em meu ceticismo”, disse. Dizem que a figueira realiza os desejos de quem pede corretamente: é preciso contato físico com a árvore, que exige explicações detalhadas dos suplicantes. Reza a lenda que, numa noite de lua cheia, Caio Fernando Abreu pediu à figueira uma voz mais grave e o Prêmio Fernando Chinaglia, ao qual concorria. Na manhã seguinte, acordou com a voz mais grossa. E, depois de algum tempo, recebeu o prêmio — pontapé inicial em sua carreira.

Os outros dois altares estão na sala de jantar, próximos à pequena porta que leva ao escritório de Hilst. Um deles, em cima da lareira, contém anjos e um oratório. O outro altar, ao nível da mesa, é puro sincretismo: um amuleto hebraico, mandalas, pirâmides, pequenas facas para “cortar” o mal, elefantes, porta-incenso, tigela tibetana. Em outros cômodos da casa, encontram-se símbolos budistas e moedinhas para jogar I Ching, o oráculo chinês. Pais de santo foram defumar a casa em algumas ocasiões.

Em 1983, Hilst resolveu lotear a fazenda ao redor da Casa do Sol e criar o Parque Shangrilá, hoje um bairro com aparência de condomínio em Campinas. As fazendas ao redor fizeram o mesmo. O que era caminho de terra virou asfalto, enrijeceu. “Hilda deslanchou um movimento de urbanização em uma zona rural que não tem volta”, disse Bilenky. Em dezembro de 2012, a Casa do Sol foi tombada, mas mantém intacta sua aura mística, imortalizada nos versos de sua moradora: A minha Casa é guardiã do meu corpo/E protetora de todas minhas ardências./E transmuta em palavra/Paixão e veemência .