Época

Escolas e universidades se tornam trincheiras de polarização e vigilância

Nos últimos 12 meses, houve 46 polêmicas envolvendo professores e livros didáticos
Votação do projeto Escola Sem Partido Foto: Jorge William / Agência O Globo
Votação do projeto Escola Sem Partido Foto: Jorge William / Agência O Globo

“Orientação sexual” e “identidade de gênero” eram tópicos em uma apostila para alunos do 6º ano no Colégio Santo Agostinho, escola privada tradicional de Belo Horizonte. As diferenças entre homens e mulheres são culturais, discorre o texto, e o desejo é uma “escolha pessoal”, que “permite viver a sexualidade de forma prazerosa e saudável”. “Não existem comportamentos ‘normais’, e, por essa razão, a homossexualidade e a bissexualidade não são doenças e desvios.”

A filha de Elder Diniz recebeu o livro no início de 2017, para o descontentamento de seu pai. “Vincular orientação sexual a formas de prazer não é apropriado para a faixa etária de 11 anos”, afirmou o administrador de empresas, de 52 anos. “O mais apropriado seria salientar família e relacionamentos, com uma consideração de respeito.” Os pais do colégio se uniram, coletaram 120 assinaturas e se queixaram à direção. Os diretores responderam com a insinuação de que havia certo “pânico social” em reação à apostila e que ensinar igualdade de gênero e tolerância era essencial.

A tréplica veio por meio de uma notificação extrajudicial, com ameaças de responsabilização da escola e dos professores por danos morais. O colégio finalmente recuou e disse que o conteúdo não seria ensinado em sala de aula. “Foi aí que começamos a notar textos com muitas referências a questões homoafetivas, fazendo apologia à Revolução Russa, ao marxismo, com viés político à esquerda”, disse Diniz. O grupo de pais passou a supervisionar e denunciar essas inclinações esquerdistas via WhatsApp. Mais que isso, a vigilância se expandiu para outras cinco escolas de Belo Horizonte: Loyola, Santa Maria, Magnum, Fundação Torino e Santa Doroteia.

Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib para combater a “doutrinação nas escolas”, o movimento Escola sem Partido ganhou nos últimos anos articulações espontâneas. Nas grandes capitais, grupos de pais como os de Belo Horizonte se tornaram corriqueiros. Com a onda conservadora que tomou o país nas eleições deste ano, os ativistas conseguiram furar a bolha das escolas particulares e ampliar a influência no dia a dia do ensino público. ÉPOCA contabilizou 46 casos que envolvem professores e livros didáticos nos últimos 12 meses, a maioria de pais conservadores contra docentes a partir do nível fundamental.

Foram 12 casos em instituições privadas, 29 em instituições públicas e outros envolvendo mais de uma escola ou universidade. Em 71% das ocorrências, houve articulação pelas redes sociais, com maciça divulgação de vídeos e fotos. Doze situações foram levadas às autoridades. Cinco professores relataram ter sofrido ameaças de morte. Destes, quatro dão aulas em universidades. A professora Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), teve de apelar à proteção judicial durante o período eleitoral.

Uma professora do ensino fundamental foi demitida de uma escola particular, em São Paulo, por dizer durante a aula que não votaria em Bolsonaro. No Ceará, um docente do ensino médio humilhou alunos que defendiam o então candidato do PSL. “Quem está mentindo para você é o policial imbecil ou o pastorzinho vagabundo de sua igreja”, disse. No Vale do Paraíba, o Ministério Público Federal investiga um grupo de pais que fiscaliza docentes “esquerdistas” via WhatsApp. Nem todos os profissionais do ensino, é claro, são de esquerda. Um professor de matemática promoveu um churrasco em plena sala de aula, no Distrito Federal, para comemorar a vitória de Bolsonaro.

“Cinco professores relataram ter sofrido ameaças de morte”

ÉPOCA
Detalhes dos 46 casos que envolvem professores e livros didáticos nos últimos 12 meses

O professor de filosofia Vinicius Silva de Souza, que leciona em uma escola pública de ensino médio no Paranoá, na periferia de Brasília, relatou que, após a eleição, um pequeno grupo de alunos ameaçou gravar a aula se ele enveredasse por argumentações consideradas esquerdistas. Ele disse que expõe sua posição sobre assuntos políticos, mas não impõe uma opinião. “Doze alunas minhas, menores de idade, estão grávidas. Como eu não vou falar de sexualidade? Como não vou dizer para a aluna usar um preservativo?”, questionou. Doutrinação não seria possível “nem se quisesse”. Já é uma missão difícil demais, disse ele, fazer com que os alunos leiam o livro didático.

O estopim para o clima de “Estamos te vigiando” nas salas de aula, segundo professores ouvidos por ÉPOCA, foi o momento em que uma deputada estadual eleita por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSC), divulgou, logo após Bolsonaro ser eleito, um canal para denúncias de manifestações “político-partidárias ou ideológicas” de professores, incentivando alunos a gravar as aulas. A Justiça determinou a retirada da postagem da deputada das redes sociais, temendo ameaças à liberdade de expressão, mas a ideia já tinha feito sucesso em grupos de direita. O próprio Bolsonaro disse que é favorável a gravar professores.

Alguns dias depois da vitória do capitão, em um município pequeno no interior do Rio Grande do Sul, a direção de uma escola pública pediu que uma supervisora acompanhasse uma aula de história sobre ditadura militar, como garantia de que não haveria “partidarização” por parte do professor. Uma aluna se recusou a fazer um trabalho da disciplina sobre o tema. Alegou não se sentir confortável, já que seu pai defende que o regime militar não teve um impacto negativo na sociedade.

“Não fiz crítica a nenhum candidato, não debati eleições em sala de aula. Meu ofício, como historiador, é defender a verdade histórica de que, sim, houve uma ditadura”, disse o professor, que não quis se identificar. “O Projeto Escola sem Partido já está sendo implementado moralmente por direções que corroboram com essa visão de mundo (de direita) . A sensação que tenho é que a ideia é constranger o professor para ele se autocensurar.”

Para os defensores do programa, o que está acontecendo é a reação tardia à censura que, até hoje, os direitistas dizem sofrer nos ambientes de ensino. “A eleição de Bolsonaro dá voz para a maioria sufocada”, disse o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS). “Os minoritários diziam ‘Eu sou gay, sou preto, sou índio e os outros me fizeram mal, me excluíram da sociedade’. A maioria ficou quieta porque a economia ia bem.”

O servidor público Daniel Barbosa, de 39 anos, afirmou ter sido perseguido por ter manifestado uma opinião dissidente no ambiente acadêmico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele mantém uma página no Facebook — “Quem a homotransfobia não matou hoje?” — que critica a metodologia empregada por pesquisas que contabilizam mortes de pessoas LGBT. Em fevereiro deste ano, na divulgação de uma pesquisa sobre lesbocídio, ele questionou o método das autoras, que, segundo ele, consideraram até acidentes de trânsito como mortes de mulheres “por serem lésbicas”. A discussão ficou acalorada, e a polícia retirou Barbosa do recinto.

Ele se disse incomodado com o viés com que são apresentadas informações sobre sexualidade e raça na mídia e na universidade. Após o evento, ocasião em que ele relatou ter sido agredido física e verbalmente, Barbosa foi processado pelas pesquisadoras e condenado, em primeira instância, a pagar uma indenização de 20 salários mínimos. Elas pediram também que o réu fosse proibido de citar seu nome e o conteúdo da pesquisa, o que foi negado pela Justiça. Ele está recorrendo da decisão.

O predomínio da esquerda nas ciências humanas pode ser exagerado por seus opositores, mas tem base na realidade. Uma pesquisa publicada em 2015 no Rio Grande do Sul apontou que, no Brasil, 84,5% dos professores de história se declaravam de esquerda ou de centro-esquerda. Para os insatisfeitos, a eleição de Bolsonaro é a oportunidade para mudar este cenário. O presidente eleito disse, em mais de uma ocasião, que tiraria os simpatizantes de Paulo Freire — pedagogo pernambucano, famoso por seu método de alfabetização com conscientização política — com um “lança-chamas” do Ministério da Educação.

Não são poucos, porém, os obstáculos institucionais que esse movimento tem pela frente, mesmo contando com o apoio do futuro chefe de governo. O primeiro sinal vermelho foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir, às vésperas da eleição, uma operação da Justiça Eleitoral que censurou manifestações políticas em mais de 23 universidades pelo país. A decisão da ministra Cármen Lúcia considerou que remover cartazes e proibir comícios fere “também a autonomia das universidades e a liberdade dos docentes e dos discentes”, mesmo levando em conta que a liberdade de expressão em período eleitoral deva seguir regras para garantir a igualdade entre os candidatos.

Uma das ações condenadas pelo STF foi a proibição do comício “Contra o Fascismo. Pela democracia”, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que contaria com Guilherme Boulos (PSOL), Tarso Genro (PT) e Maria do Rosário (PT). A Justiça acatou um pedido do deputado Jerônimo Goergen e do deputado federal eleito Marcel van Hattem (Novo) para vetar o evento. Segundo Goergen, o ato só poderia ocorrer se a direção abrisse espaço para simpatizantes do outro candidato, Bolsonaro.

Na mesma linha de argumentação, o deputado do PP está elaborando um Projeto de Lei para que os eventos políticos em ambientes universitários estejam sempre equilibrados politicamente. “Vai debater impeachment e chamar a Dilma? Tem de chamar o Eduardo Cunha. Quer dizer, o Eduardo Cunha não dá para chamar, mas de repente o Michel Temer.” Dada a decisão recente do STF sobre ações nas universidades, ele está ajustando o Projeto para não correr o risco de propor inconstitucionalidades.

Professores contrários ao Escola sem Partido criaram um estudo colaborativo que mapeou Projetos de Lei em 102 municípios e 15 estados. Segundo esse levantamento, 24 leis municipais já foram aprovadas e 18 foram rejeitadas até hoje. Os textos das leis são padronizados. “O Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”, determina um artigo. As leis também preveem a afixação de um cartaz nas salas para lembrar o professor que ele não deve se aproveitar “da audiência cativa dos alunos para promover os próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.

Cena do filme "O jardim das ilusões", sobre Olavo de Carvalho Foto: Reprodução
Cena do filme "O jardim das ilusões", sobre Olavo de Carvalho Foto: Reprodução

Ainda neste ano, o STF deve julgar se uma lei estadual do Escola sem Partido aprovada em Alagoas é constitucional. A questão principal é se os estados têm competência para legislar sobre diretrizes de educação. O julgamento pode mostrar, colateralmente, a posição dos ministros quanto à questão no âmbito federal. A lei que será julgada é o programa Escola Livre, aprovado pela Assembleia Legislativa do estado em 2016 e suspensa pelo ministro Luís Roberto Barroso por uma liminar em 2017. O Projeto alagoano vai um pouco além do rascunho de Miguel Nagib, pois proíbe “propaganda religiosa” e “ideológica ”, não apenas “político-partidária”.

Na Câmara, deputados tentam votar o Escola sem Partido em uma Comissão Especial desde que Bolsonaro foi eleito. O relator da proposta, Flavinho (PSC-SP), apresentou um texto novo e mais abrangente em 31 de outubro, estendendo o alcance da lei a “políticas e planos educacionais, conteúdos curriculares e projetos pedagógicos das escolas”. O novo texto também cria uma exceção para escolas religiosas, deixando claro que conteúdo “de cunho religioso, moral e ideológico” pode ser promovido. A comissão já tentou se reunir cinco vezes, sem sucesso, sempre com a sala cercada de militantes barulhentos de esquerda e direita.

O deputado Marcos Rogério (DEM-RO), presidente da Comissão, disse não temer a reação do STF à lei, caso seja aprovada e sancionada. Ele afirmou “confiar na Constituição”. “O parâmetro tem de ser a Constituição Federal e a lei. Estamos vivendo conflitos nas universidades e escolas de todos os lados. Não se pode criar uma regra para cada escola só porque a instituição ou os professores têm afinidade com uma ou outra ideologia. Se cada um criar sua própria norma, tem um ambiente de conflito, de guerra”, disse a ÉPOCA.

O filósofo Olavo de Carvalho, reverenciado como guru intelectual por militantes de direita, postou um vídeo recente em que criticou a iniciativa do Projeto de Lei, uma suposta “solução mágica” vinda de pessoas que “não entendem nada” de combate cultural. “O problema não é a opinião que o professor expressa, é a que ele suprime. Exigir que o professor, toda vez que exponha sua opinião, exponha com igual reverência a opinião contrária é um absurdo”, disse o filósofo, que criticou a instituição de um regime da “dedo-duragem”. “A própria palavra ‘doutrinação’ é um absurdo. Que conceito de política vamos usar? O da pequena burguesia inculta, burra, que acha que política é só o que tem a ver com as eleições? Querem, com o formalismo da lei, vencer uma corrente cultural.”

As divergências entre Olavo de Carvalho e os defensores do Escola sem Partido logo foram apaziguadas. No dia seguinte, o filósofo postou: “Andei conversando com o pessoal do Escola sem Partido e eles entenderam perfeitamente minhas observações, prometendo corrigir alguns pontos deficientes da estratégia do movimento”.

Outras vozes dissonantes em relação ao Escola sem Partido surgem do Ministério da Educação. O atual ministro da Educação, Rossieli Soares, é contra o Projeto. Ainda assim, era visto como aliado na semana após a eleição de Bolsonaro, quando um punhado de deputados foi até o ministério para suplicar que profissionais de orientação conservadora pudessem escolher os próximos livros a serem incluídos no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Em julho do ano passado, o Ministério da Educação mudou as regras da comissão para tirar das universidades a tarefa de examinar as obras a serem compradas pelo governo. Agora, serão acionados profissionais inscritos em um banco de avaliadores do MEC, indicados por entidades ligadas à educação. A ideia é evitar episódios como o do livro A triste história de Eredegalda, voltado para crianças de 7 e 8 anos e recolhido em junho de 2017 por abordar o tema do incesto. Os títulos selecionados vão valer pelos próximos quatro anos.

A tensão na escolha dos livros didáticos e na abordagem de gênero e sexualidade no currículo é cada vez maior. O antecessor de Rossieli Soares na pasta, Mendonça Filho (DEM-PE), disse, em 2016, que seria “quase impossível” vigiar o que acontecia em todas as salas de aula do país. No ano seguinte, afirmou que proibir assuntos na sala de aula era “cerceamento da liberdade de expressão” e que proibir a discussão de qualquer assunto em sala de aula era uma violação da Constituição Federal. Procurado na última semana, Mendonça não quis falar sobre o assunto.

Para Gustavo Bambini, professor de políticas públicas e Direito na Universidade de São Paulo (USP), “não há como definir, por lei, o que é ideologia, política ou ideologia de gênero”. Como o Escola sem Partido tende a ser amplo demais, os professores podem se sentir ameaçados e evitar debater qualquer assunto polêmico. “Não é concebível usar a sala de aula para fazer palanque político-eleitoral, mas o debate aberto é mais que necessário”, disse.

Alguns professores sentem que agora precisam tomar muitos cuidados na sala de aula. Uma docente de ensino fundamental de uma escola particular do Sul do país foi advertida, no ano passado, em razão de um PowerPoint em que dizia, com letras maiúsculas e negrito, que os presidentes durante o regime militar eram “ditadores”. “Pensei que era algo absolutamente tranquilo dizer isso do ponto de vista histórico, porque não foram eleitos democraticamente”, afirmou a professora, que não quis se identificar. Ela mudou o material didático para obedecer à direção da escola, mas acabou sendo demitida.

Rafael Mafei, professor de filosofia do Direito na USP, ouviu queixas de docentes de diversas instituições que passaram a se sentir cerceados e as encaminhou para que recebessem assistência jurídica. “Os professores estão sendo objetos de vigilância. Esse ambiente faz com que você, professor, adote estratégias pedagógicas não porque acha que sejam as melhores, mas porque não vão te meter em encrenca”, afirmou.

“Há uma pressão social difusa de pais e mães diretamente sobre os professores, o que muitas vezes não é enfrentado pela escola por medo de se indispor. Escolas abriram mão de defender seus projetos pedagógicos e cederam ao pânico de que há uma doutrinação comunista.” Quando o professor é assediado pelos pais e a escola se omite, ela pode ser responsabilizada na esfera trabalhista, disse Mafei. Além disso, a ocorrência pode dar origem a ações civis, com pedidos de indenização por danos morais, e a processos criminais.

Miguel Nagib, o criador do Escola sem Partido, concorda com o que disse o presidente eleito Jair Bolsonaro: os “bons” professores não têm nada a temer. “Nosso movimento tem sido muito difamado. Os veículos estão avessos à realidade, mas as pessoas têm filhos nas escolas e veem com os próprios olhos. É como se a gente estivesse pedindo um favor para os professores não fazerem propaganda político-partidária nas escolas”, afirmou Nagib a ÉPOCA.

Joelma Vogado Foto: Jorge William / Agência O Globo
Joelma Vogado Foto: Jorge William / Agência O Globo

O governo pode não conseguir controlar todas as salas de aula do país, como diz o Ministério da Educação. Mas os pais estão tentando. Nagib tem um grupo de WhatsApp com pais de São Paulo, da Região Sul, do Nordeste e de Minas Gerais. Em cada estado, há “células” próprias. Uma das mães engajadas na mobilização virtual é Cibele Lazzari, de 43 anos. Ela tem duas filhas, de 4 e 9 anos, que estudam no Rosário, colégio particular de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Na segunda-feira após as eleições, o colégio das filhas foi palco de uma disputa polarizada. Um grupo de alunos vestiu camisetas pretas para manifestar o “luto” por Bolsonaro ter sido eleito. A escola teve de proibir um outro grupo, de verde e amarelo, de acessar o mesmo pátio no recreio, por temer agressões físicas. Os pais se uniram e pediram que o colégio impusesse a obediência ao regimento escolar, que proíbe manifestações político-partidárias.

“Há pais que querem que a doutrinação política continue e pais que não querem”, afirmou Lazzari. “Num conteúdo do ensino fundamental, por exemplo, o aluno tinha de responder por que acha que ainda existe preconceito de cor. Quer dizer, parte do pressuposto de que a criança concorda que existe preconceito. O certo seria estudar português, matemática, história, geografia, sem viés ideológico.” Ela diz que, como não conhece escolas alinhadas à direita, prefere defender o Escola sem Partido. “Vivo num país em que o colégio se diz católico e cristão, mas a aula é de doutrinação ideológica.”

Joelma Vogado, de 40 anos, servidora pública em Brasília, queixa-se da influência que a filha de 18 anos sofreu dos professores de história e geografia na escola particular. “Ela diz que o socialismo é maravilhoso, que a igualdade social em Cuba é admirável, que não existe miserável lá. Eu digo: ‘Onde é que você está vendo miserável aqui em Brasília’? Quer dizer, aqui também não tem miserável. Nossos filhos não estão mais conseguindo olhar para a realidade de onde moram.” Quando algo “já está incrustado na cabeça” de um adolescente, é difícil mudar, argumentou.

ÉPOCA constatou casos de professores que usaram a sala de aula como espaço de proselitismo contra Bolsonaro e a direita. No Ceará, um professor retratou o candidato como nazista em uma questão de prova. Em Santa Catarina, uma professora se posicionou contra o então presidenciável e disse que o vice Hamilton Mourão era “general da ditadura”. Um aluno de Santos Dumont, Minas Gerais, postou uma crítica a Paulo Freire em seu Facebook e, no dia seguinte, disse ter sido humilhado pela professora em sala de aula.

Luis Claudio Megiorin, presidente fundador da Associação de Pais e Alunos das Instituições de Ensino do Distrito Federal e presidente da comissão de educação da OAB-DF Foto: Jorge William / Agência O Globo
Luis Claudio Megiorin, presidente fundador da Associação de Pais e Alunos das Instituições de Ensino do Distrito Federal e presidente da comissão de educação da OAB-DF Foto: Jorge William / Agência O Globo

Em Brasília, o advogado Luis Claudio Megiorin, presidente da Associação de Pais e Alunos das Instituições de Ensino do Distrito Federal, modera um grupo de WhatsApp pelo qual circulam denúncias de “doutrinação” como essas. Ele se revolta com a fama de que os defensores do Escola sem Partido sejam preconceituosos ou homofóbicos. “Eu tenho uma menina de 17 anos e uma menina de 13 anos. Elas jamais ouviram uma piadinha, uma crítica a pessoas que tenham um comportamento sexual diferente.”

Um dos casos que comoveu os brasilienses nas últimas semanas é de uma escola pública com banheiro unissex para crianças de 4 a 8 anos, no Paranoá, periferia da cidade. A escola diz que não separa as crianças por sexo por uma questão pedadógica. Os alunos, no banheiro, usam cabines separadas e só dividem a pia. A escola afirmou também que crianças não vão ao banheiro sozinhas. Mesmo assim, os pais se queixaram de que o banheiro promove abusos, sexualização e “ideologia de gênero”. A diretoria da escola virou alvo de investigação pelo Ministério Público.

Nos casos coletados por ÉPOCA, os temas mais recorrentes de conflito são educação sexual e ditadura militar — o próprio termo “ditadura” é motivo de disputa. Pais sentem que seus filhos são expostos cedo demais a conceitos como sexualidade e controle anticoncepcional, e que professores de história fazem propaganda negativa excessiva do período em que o Brasil foi governado por militares. Os casos mais recentes de disputas nas escolas envolvem, cada vez mais, os próprios adolescentes como protagonistas nas discussões. Muitos são insuflados pelas redes sociais, território em que Bolsonaro ganhou sua eleição a presidente.

Para o professor de história do Rio Grande do Sul, cuja aula sobre ditadura foi “vigiada”, a balança das denúncias está desequilibrada contra a esquerda. “Membros da direção de minha escola se manifestaram a favor de Bolsonaro nas redes sociais. Colegas alinhados com a direita falaram do candidato na sala de aula, mas isso não foi denunciado. Acho que eleições devem ser discutidas na sala de aula, e alguns alunos me pediram para promover um debate eleitoral, mas nem tive coragem de tocar no assunto.”