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Coluna | A vida como ela não deveria ser

O espancamento de uma menina de 6 anos no Sul do Estado do Rio mostra que os agressores não estão com medo
O quarto onde a menina de 6 anos agredida em Porto Real dormia Foto: Isabelle Magalhães / TV Rio Sul
O quarto onde a menina de 6 anos agredida em Porto Real dormia Foto: Isabelle Magalhães / TV Rio Sul

Aos 6 anos, um ser humano não tem idade para dirigir, votar, casar, assumir cargos públicos, concorrer a cargos eletivos, trabalhar, ingerir bebidas alcoólicas e mais um sem número de coisas, boas ou nem tanto, reservadas a adolescentes ou adultos. Mas já tem idade para sofrer. Para ser torturado. Para ser açoitado e espancado com chutes e socos por dias. Para carregar, pelo resto da vida, as sequelas da violência.

A menina de 6 anos espancada dentro de casa em Porto Real, no Sul do Estado do Rio de Janeiro, talvez nunca tenha consciência do que lhe aconteceu. Sua mãe e a namorada dela foram presas pelo crime. Na decisão que converteu a prisão em flagrante em preventiva, o juiz Marco Aurélio da Silva Adania informa que a garotinha “encontra-se internada em estado grave, apresentando hemorragia intracraniana inoperável e sério risco de vir a óbito ou permanecer em estado vegetativo”.

A vítima começou a apanhar às 23h da sexta-feira, 16 de abril de 2021. Continuou sendo espancada pelas 48 horas seguintes, até a noite de domingo. Foi chicoteada com um cabo de TV. Chutada. Socada. Arremessada contra a parede. Jogada de um barranco de sete metros de altura. A sessão de espancamento só parou porque a mãe da madrasta da criança, que mora na mesma casa com o casal e a menina, encontrou a garotinha sem se mexer — nas palavras dela, “com o olho meio aberto, parada, não respondia nada” — e decidiu procurar socorro, com medo que a vítima morresse. Isso, segundo a mulher, com a filha a ameaçando de morte caso falasse a verdade sobre o que aconteceu.

O que detonou essa avalanche de violência contra um ser humano incapaz de se defender? Um copo de leite que a menina tomou sem autorização da mãe e da madrasta. A criança, citando novamente a decisão judicial, “vinha sendo privada de alimentação há meses”. Segundo a mãe da acusada de agressão, a garota não frequentava a escola. Dormia no chão, num colchão velho, como um bicho.

Que haja bestas humanas com ódio suficiente na alma para espancar uma criança por dois dias seguidos não chega a ser novidade. O que também não surpreende mais é a brutalidade e a complacência de quem deveria proteger as crianças — mães, pais, responsáveis, a própria comunidade onde esses meninos e meninas vivem. O fato de a rede de proteção do Estado ter tido eficácia zero no caso de Porto Real não choca ninguém. Até aí, nada de novo sob o sol.

O que causa assombro, ao menos em mim, é que a sessão de tortura da menina de 6 anos tenha ocorrido em meio à repercussão nacional da morte do menino Henry Borel, de 4 anos, e a prisão do padrasto e da mãe do menino pelo crime. A exemplo da vítima mais recente, um menino frágil, indefeso, vítima de seguidos episódios de violência, agredido dentro de casa… Após um mês e meio da morte de Henry, com matérias diárias na imprensa e debates nas redes socias, como alguém espanca assim, sem pudor, uma garotinha? Que não seja por caráter ou decência, ambos artigos em falta, mas pelo menos por medo de que algo dê muito errado. Como deu.

O mundo sempre foi um lugar bruto e cruel, especialmente para os mais frágeis. A criação de sistemas de leis e órgãos governamentais foi uma tentativa de  proteger os indefesos e acuar os agressores. Está dando certo? Pelo menos no caso de Henry e da menina de Porto Real, não. Eles sofreram na pele a realidade de uma vida submersa no desamparo e no desamor. Talvez seja a vida como ela é. Mas não deveria ser assim.