Época Giampaolo Morgado Braga

Coluna | Call center do crime

Celular não pode entrar na cadeia, mas o chip, sim, decidiu o STJ
Celulares apreendidos em presídio de Magé, no Rio, após bandidos exibirem aparelhos na internet Foto: Divulgação/Seap
Celulares apreendidos em presídio de Magé, no Rio, após bandidos exibirem aparelhos na internet Foto: Divulgação/Seap

No último dia 20, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que entrar com chips de celular em presídio não é crime. No acórdão, os ministros esclarecem que tomaram tal decisão “pois o legislador limitou-se em punir o ingresso ou o auxílio na introdução de aparelho telefônico móvel ou similar em estabelecimento prisional, não fazendo qualquer referência a outro componente ou acessório utilizados no funcionamento desses equipamentos”. Interessante, não?

Obviamente, não tenho competência, em todos os sentidos da palavra, para refutar juridicamente o posicionamento do STJ. Mas, acredito, posso fazer algumas modestas ponderações de ordem lógica.

A primeira é: por que alguém entraria com um chip de celular, ou dez, ou cem chips num presídio, se não fosse para colocar num telefone que já está dentro da cadeia, escondido em algum lugar? Seria para fazer uma coleção? Decorar a cela? Vejamos: o detento entra na cadeia com um saco cheio de munição calibre 9mm; está mais ou menos implícito que ele vai usá-las numa arma que já entrou antes, ou entrará depois. Seria para fazer o quê? Chupar as balas?

A segunda: os tribunais superiores têm se permitido leituras mais abrangentes da letra da lei. Não cabe aqui discutir se essas interpretações elásticas da legislação estão certas ou erradas. Mas cabe questionar se não seria o caso de fazer uma abordagem mais extensiva do que aquela que o legislador imaginou. Afinal, o chip é uma parte fundamental do celular. Sem ele, o aparelho tem pouca serventia.

Terceira: se pode chip, se o problema é o celular em si, também deve poder roteador. Carregador de celular. Pode entrar celular aos pedaços? Se o chip não é equivalente ao celular, a câmera também não é. Nem a tela. Nem o processador, ou a memória. São componentes que, sozinhos, não fazem um telefone nem tem serventia. Pode?

Num país com dezenas, centenas de milhares de casos de estelionato e extorsão por telefone (o chamado disque-sequestro) por ano, não parece razoável enquadrar a entrada de chips de celular num presídio na categoria de conduta atípico. “Ah, mas nem é um crime violento…”; diga isso para um idoso que perdeu todas as suas economias num golpe, ou a uma senhora que teve um infarto ao achar que o filho havia sido sequestrado.

Talvez o que falte para os detentos é trabalho dentro das prisões. Uma ocupação que gere renda para a família do preso, uma profissão que o condenado possa exercer quando sair do sistema carcerário e uma ocupação para as muitas horas livres atrás das grades. Uma nota técnica do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de junho do ano passado aponta o Mato Grosso do Sul como o estado com maior número de detentos exercendo atividade laboral: 37,34% da população carcerária, seguido pelo Maranhão, com 35,46%, e por Santa Catarina, com 33,65%.

Se nos estados com mais presos trabalhando o percentual pouco passa de um terço da população carcerária, imagine-se nos que têm piores índices. No Rio de Janeiro, segundo o mesmo documento do Depen, o percentual é de 3,54%. No Rio Grande do Norte, fica em 3,37%. Na média do país, apesar de uma evolução razoável nos últimos anos, não supera os 20%. Adicionando-se, com boa vontade, mais uns 15% de presos que estudam, o que se tem é que dois em cada três detentos do país passam o dia fazendo absolutamente nada de útil para si mesmos, suas famílias e a sociedade que os colocou dentro da penitenciária.

Trabalhos forçados são proibidos pela Constituição Federal. OK, sem problemas. Mas aí a sociedade é que acaba forçada a ver o preso, de dentro da cadeia, cometer crimes em sequência enquanto cumpre sua pena. E não ser punido por isso. Na verdade, não tem de entrar chip na prisão. Nem celular. Nem arma, munição, droga, faca, canivete. No fundo, não deveria entrar nada na cadeia. O material de vestuário, higiene e limpeza tem de ser, por lei, fornecido ao preso. A comida deveria ser produzida lá dentro. A roupa, lavada lá também. O contato com parentes e advogados deveria ser apenas por voz, num parlatório. Talvez, assim, o call center do crime que funciona diariamente em cadeias país afora já tivesse saído do ar.