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Coluna | O preço da guerra

Desde 1998, quase 21 mil pessoas morreram em confronto com a polícia no Rio. Melhorou algo na segurança pública?
Marcas de sangue em casa onde suspeito foi morto durante operação do dia 6 de maio no Jacarezinho Foto: Mauro Pimentel / AFP
Marcas de sangue em casa onde suspeito foi morto durante operação do dia 6 de maio no Jacarezinho Foto: Mauro Pimentel / AFP

A operação policial que deixou 28 mortos no Jacarezinho, Zona Norte do Rio — entre eles, um policial civil — em 6 de maio é o exemplo mais recente de um fenômeno que se repete há décadas no Estado do Rio de Janeiro. Foi a operação com mais mortes em confronto com a polícia? Sim, com certeza. Mas não é, nem de longe, uma novidade na política de segurança fluminense. Entre 1998 e março deste ano, 20.957 pessoas foram mortas em tiroteios com policiais. Desde 2003, quando os dados começaram a ser compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), 443 policiais militares e 73 policiais civis foram mortos em serviço (embora nem todas essas mortes de agentes tenham sido em confrontos). Quais foram as consequências de tantas mortes?

Botando na ponta do lápis, 3.869 municípios do país (ou cerca de sete em cada dez) têm menos de 20.957 habitantes, segundo a estimativa de 2020 do IBGE. Isso dá uma escala de grandeza da fila de homens e adolescentes mortos em conflitos armados no estado. Havia criminosos no meio? Claro, provavelmente são a maioria. Havia inocentes? Com certeza, sim, tanto que há policiais condenados por homicídios e execuções.

Uma parcela significativa dos policiais do Rio se enxerga como uma casta de guerreiros na linha de frente de uma guerra civil velada. Esse conflito não-declarado, se realmente existe, já dura mais tempo do que a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). E, principalmente, chancela todo tipo de ação policial, por mais exótica que seja, e qualquer número de mortes, principalmente as que ocorrem do lado “deles”. Somos “nós” contra “eles”. O resultado prático dessa suposta guerra? Zero.

Uma guerra, seja regular (daquele tipo em que estados nacionais se enfrentam) ou irregular (como conflitos entre estados nacionais e grupos terroristas) pressupõe algumas metas: conquista de território, aniquilação do inimigo, captura de recursos.

Quanto território o Estado recuperou efetivamente das mãos do tráfico ou da milícia? Zero, nem um palmo de terreno. As UPPs ainda deram, por algum tempo, a ilusão de que a polícia mandava em algumas favelas. Como toda ilusão, acabou. Para usar o exemplo do Jacarezinho, a unidade que existia lá foi desativada; num determinado período, seus policiais nem ficavam do lado de dentro da favela. Alguém deveria ter desconfiado que isso não ia acabar bem em outubro de 2012, quando o território foi ocupado pela polícia em 20 minutos e sem que um único tiro fosse disparado. O que vem fácil, vai fácil.

Aniquilação do inimigo? Nenhum dos lados — polícia, tráfico, milícia — desse conflito que não ousa dizer o seu nome passou sequer perto do número de baixas que levaria a uma capitulação. Um relatório de julho do ano passado, feito pela Polícia Civil e enviado ao STF, estimava em 56.600 o número de bandidos portando armas nas favelas do estado. Daquele mês até março deste ano, a polícia matou 920 pessoas. Supondo-se que todas estejam nesse contingente exposto no relatório, o número representa 1,62% do total de criminosos armados no Estado do Rio. E todos os que tinham alguma função na hierarquia do tráfico ou da milícia já foram devidamente substituídos.

Captura de recursos? A polícia, ao longo dos últimos anos, tirou do tráfico e da milícia bilhões de dólares em todo tipo de modalidade: bloqueio de bens e contas, apreensão de armas, explosivos e drogas, prisão de chefes das organizações criminosas, o diabo. E aí, os bandidos estão em desespero, contando os centavos para comprar uma remessa de cocaína, ou regulando quantos tiros dão para economizar munição? Obviamente, não.

Então, essa guerra, se realmente existe, é um retumbante fracasso para todos os envolvidos. Para que serviram todas essas mortes? Tornaram o Rio um lugar melhor, mais seguro? Os moradores de favelas, que vivem sob o tacão do tráfico ou da milícia e são submetidos a toda espécie de humilhação e infâmia, estão mais livres, sentem menos medo? O ir e vir das pessoas está garantido? Os comerciantes não precisam mais pagar taxas irregulares para as quadrilhas? A resposta a todas as perguntas, mais uma vez, é não.

E não, não estou aqui aplaudindo bandido, construindo uma tese a favor da liberação das drogas ou defendendo que a polícia seja extinta ou pare de reprimir o crime. Estou apenas inferindo, a partir de alguns dados da realidade, que o atual modelo de combater a criminalidade no Estado do Rio está cobrando um preço muito alto e dando um resultado muito pequeno, quando se analisa o número de vidas perdidas e o volume de energia, tempo e dinheiro investido.

Qual é a saída? Não sei, não sou especialista em segurança pública. Mas, usando a metáfora da guerra, tenho algumas sugestões. A primeira delas é cortar a linha de suprimentos de drogas, armas e munição, ou torná-la tão custosa que fique inviável; nada entra voando nos morros do Rio; monitorar tudo que entra e que sai, revistar cada carro, cada moto. A segunda é tornar o custo humano alto demais: prender os criminosos em tal volume e por tanto tempo que fique inviável para os criminosos manter o território; isso, é claro, exige mudança na legislação, mas não me parece que seria difícil aumentar a pena máxima no país para, digamos, 60 anos, e só permitir a progressão de regime com 80% da pena cumprida. Terceira, cooptar e baixar o moral do inimigo; convencer os garotos de 13, 14 anos que entrar para o tráfico ou a milícia é uma roubada, um caminho para uma vida curta e com um fim violento. Quarto, silenciar os comandantes; não matando, mas isolando. De vez, para valer. Zero visita íntima, zero visita de parentes, zero cartas, zero contato com o exterior, conversas monitoradas 24 horas por dia, sete dias por semana.

A política do tiro, porrada e bomba pode agradar boa parte da sociedade e até alimentar o espírito de vingança de alguns policiais, mas tem pouco efeito a longo prazo. Só faz a alegria dos fabricantes de armas e munição. O crime não vai acabar, não acabou em nenhum lugar do mundo. Só precisa deixar de valer tanto a pena, como por aqui.