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Época Helio Gurovitz Helio Gurovitz

Um alento entre vertigens e bacuraus

País na adolescência, o Brasil se revela incapaz do exercício mínimo de reflexão e autoanálise, necessário para o amanhã

Todo dia o noticiário traz novos motivos para ficarmos decepcionados ou irritados com o Brasil: queimadas e incêndios, declarações absurdas e cenas vergonhosas, asneiras oficiais e oficiosas, conchavos espúrios e políticas desastradas. Conversar com gente inteligente hoje em dia equivale a ouvir diferentes formulações de uma mesma e recorrente frase: “Desisti do Brasil”. Nem o mundo das artes escapa. Entre vertigens e bacuraus, filmes e documentários de sucesso têm sido extremamente infelizes ao captar as transformações em curso ou apontar caminhos para o futuro. Repetem as mesmas e sempiternas narrativas redentoras, histórias da carochinha com os mesmos estereótipos de bandidos e mocinhos, vítimas indefesas e vilões sorrateiros, pobres coitados e poderosos cruéis.

“País na adolescência, o Brasil se revela incapaz do exercício mínimo de reflexão e autoanálise, necessário para o amanhã”

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A ira juvenil só quer saber de apontar culpados — sempre os outros —, alvos a atingir com tiros de espoleta de cento e poucos caracteres. Se estiver cansado dessa mesmice, é hora de tomar fôlego e mergulhar em Das terras bárbaras , romance de estreia do economista e diplomata Ricardo da Costa Aguiar.

O enredo se passa em dois períodos históricos, a época contemporânea e o século XVII, contrastando a vida de dois personagens, um em cada tempo. O primeiro é um jesuíta português que, enviado ao Brasil para catequizar indígenas no interior paulista, se entrega ao amor proibido com a dona de uma fazenda. O segundo é um diplomata metido a latinista que, enviado a trabalhar no Benin, descobre o diário desse jesuíta e, acreditando ser um antepassado, se põe a investigar seus passos em arquivos históricos do Brasil e de Portugal. As duas narrativas se alternam, numa trama ágil e bem amarrada, que prende a atenção da primeira à última página.

Entremeado por citações em latim e descrições detalhadas de África, Brasil e Portugal, é um livro erudito sem ser pedante. O diário narra as peripécias do jesuíta num estilo pseudosseiscentista que, embora nem sempre bem-sucedido, põe o leitor em contato com vocabulário, hábitos, paisagens, eventos e personagens históricos de uma fase crucial na formação do Brasil (Raposo Tavares faz uma ponta; o padre Vieira tem papel relevante — e peca). O dono da fazenda é um brutamontes tosco, de português claudicante, que deriva o poder da força bruta, não de mérito ou talento. Ao descobrir a traição da mulher, arrasta o jesuíta a uma expedição de caça aos índios e ataque a missões espanholas que se transforma numa onda de carnificinas, exemplo da violência que desde o início tisna a história brasileira. Religiosos de fachada, padres amasiados, pajés mistificados, indígenas subjugados, bandeirantes brutais formam o elenco de apoio destas terras bárbaras, onde tudo está por ser conquistado, domado, civilizado. O jesuíta acaba levado a julgamento em Portugal, condenado ao degredo não por crimes que cometeu, mas por outros inventados pela Inquisição. Depois de anos entre navios insalubres, masmorras fétidas, matas enlameadas e o leito da amada, acaba seus dias como pioneiro no tráfico de escravos africanos.

Na narrativa paralela, o diplomata contemporâneo é vítima de uma arapuca: recém-casado com a primeira mulher, cai na lábia de uma funcionária sedutora, recém-contratada para ajudar no serviço consular em Lisboa. Acaba acusado num esquema de desvio de dinheiro e passaportes. É obrigado a se defender na Polícia Federal, vê-se às voltas com intrigas corporativas no Itamaraty, enfrenta doenças da mulher e do pai, tudo isso tentando, nos intervalos, resgatar a história do antepassado que descobrira na África. Num tom irônico, vai saltando entre os desvãos burocráticos até descobrir por que sua investigação incomoda tanto os próceres da Igreja. A verdade lhe chega com um sabor de decepção. Mas não barbárie. Bárbara, no fim, é só o nome das duas mulheres: a dele e a do padre.

DAS TERRAS BÁRBARAS
Ricardo da Costa Aguiar, Tordesilhas
2019 | 336 páginas | R$ 55

Helio Gurovitz é jornalista e blogueiro do portal G1