Época política

Jair Bolsonaro, o passado do Brasil acima de tudo

Tales Ab'Sáber, psicanalista e ensaísta, autor de livros sobre os três últimos presidentes, escreve acerca do candidato do PSL, líder nas pesquisas eleitorais na corrida ao Planalto
"Talvez até se deseje mesmo, tanto nas ruas quanto nos grandes bancos dos milionários do Brasil, a ditadura medíocre e conservadora na qual sua eleição ameaça lançar o país para a duplicação do escândalo mundial moderno e contemporâneo sobre quem de fato somos" Foto: Agência O Globo
"Talvez até se deseje mesmo, tanto nas ruas quanto nos grandes bancos dos milionários do Brasil, a ditadura medíocre e conservadora na qual sua eleição ameaça lançar o país para a duplicação do escândalo mundial moderno e contemporâneo sobre quem de fato somos" Foto: Agência O Globo

Em um ponto da barafunda humana e política a que chegamos os seguidores de Jair Bolsonaro têm razão: ele sempre foi um homem coerente. Eu diria o mesmo: ele sempre foi rigorosamente coerente – embora nem sempre tenha se expressado com clareza, dadas as dificuldades com a linguagem que o acometem em momentos de pressão. Ao longo de sua vida política, o deputado de extrema direita, ex-tenente do Exército e capitão reformado, reafirmou com firmeza uma postura acintosa de confronto às leis e direitos civis existentes no país e aos pactos humanistas originais e fundamentais da democracia liberal constituída no Brasil em 1988. A própria existência do Estado Democrático de Direito simplesmente não o agrada, tendo-o desprezado abertamente, em público e em qualquer lugar do mundo.

Posicionando-se entre cínico, niilista, sádico, adolescente ou fascista, o deputado autoritário desdenhou permanentemente do mundo político brasileiro, que o alimentava com grandes privilégios. Pregava um modo de vida política livre de compromissos sociais, éticos ou institucionais, em um mundo próprio de opiniões extralegais, para o júbilo do extrato mais cínico, sádico, niilista, fascista ou adolescente dos cidadãos brasileiros. Sou contra os direitos humanos sim; sou a favor da tortura sim; desprezo homossexuais e quero que eles sejam discriminados sim; este país não tem solução por meio de uma ordem democrática não; eu fecharia o Congresso no dia seguinte que chegar ao poder sim; mataria trinta mil pessoas de esquerda, a começar por Fernando Henrique Cardoso sim. Estas são algumas das mais fantásticas, violentas e antidemocráticas afirmações do passional e destemperado deputado. Em um horizonte mais amplo dos sentidos, contrariam até as normas humanistas ou cristãs.

O psicanalista Tales Ab'Sáber lança Michel Temer e o fascismo comum Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O psicanalista Tales Ab'Sáber lança Michel Temer e o fascismo comum Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Bolsonaro, neste sentido, sempre esteve fora da lei. Sua vida política imaginária correu por fora do pacto social que nos constitui e que aceitamos. Sua paixão política o fazia questionar as raízes do contrato social estabelecido, desconsiderando-o desde sempre. Mais recentemente, começou a tentar se preservar, com grandes dificuldades, do impacto desorganizador de suas próprias opiniões. Elas o punham em risco, embora atraíssem fortemente o público brasileiro maniqueísta e agressivo como ele. Já em campanha para a Presidência da República, um Jair Bolsonaro “controlado” desdenhou publicamente do valor do trabalho das mulheres, das próprias mulheres, dos direitos de indígenas e quilombolas, dos próprios índios e quilombolas, da história da escravidão negra no Brasil, dos próprios negros. Em escandalosa agressão ao Estado de direito, falou muito feliz do alto de um palanque em metralhar seus adversários políticos. Não há dúvida que, em um país mais sério, de tradições democráticas um pouco mais sólidas e exigentes do que as nossas, todas essas posições teriam graves consequências políticas e legais contra o político antissocial. Qualquer coisa pode ser dita do candidato de tendências ditatoriais e de promoção explícita da cultura da violência no Brasil atual – menos que ele engane alguém a respeito de quem verdadeiramente é.

Seus seguidores, quando confrontados com a violência cultural e política de clara ilegalidade do deputado candidato, insistem – meio cínicos, meio niilistas, meio mentirosos, meio adolescentes – em dizer que ele não é bem aquilo o que diz ser. Ou afirmam que o que ele diz não é exatamente o que ele diz. Ou afirmam que é o ouvinte que o ouve erradamente. Tentam nos dizer que eles próprios não são assim tão violentos e tão belicosos quanto o político no limite do acordo civilizatório que desejam levar ao poder.

Biógrafo e psicanalistas analisam a mente de Bolsonaro Foto: Época
Biógrafo e psicanalistas analisam a mente de Bolsonaro Foto: Época

A estrutura de pensamento perversa, quando ativada, precisa aparecer no mundo como não sendo o que ela de fato é. Muitos intelectuais pouco preocupados com a agonia da democracia brasileira – e com a vida das futuras vítimas reais do pensamento do deputado e de seus seguidores mais fanáticos – insistem em dizer que o seu autoritarismo ilimitado, a sua clara transformação da vida política em violência sobre adversários e o seu desprezo constante pela ordem legal existente não representariam um movimento neofascista no Brasil. Refutam proximidade com o fascismo de Mussolini dos anos de 1920 na Itália, em um curto circuito do sentido da verdade típico do choque cultural fascista. Pela primeira vez em nossa história, todos, mesmo os que votam no político, preferiam de algum modo que ele esteja mentindo sobre seu modo de ver a vida, o país e o mundo.

Mas a realidade de Bolsonaro dispensa amplamente o sentido das palavras, verdadeiras ou falsas. E é este o maior problema de considerá-lo uma liderança nacional em um momento de crise. Enquanto os intelectuais adversativos brasileiros – como os nomeou Paulo Roberto Pires – se perdem prazerosamente em uma muito útil e construtiva discussão sobre a evolução do conceito de fascismo nos últimos cem anos, um surto de violência social explícita toma a vida do país. Manifesta-se no desprezo por direitos civis básicos, com ameaças concretas em todo lugar contra gays, mulheres feministas, jovens negros pobres, pessoas de esquerda, professores universitários e qualquer outro inimigo – por exemplo, os imaginados artistas pedófilos.

O problema atual da democracia brasileira está em ter conseguido tornar legítimo, falsificando com astúcia o próprio conceito de democracia, um homem autoritário e indecoroso como Bolsonaro. Ele despreza com prazer as regras do jogo. Por dentro da degradação ética e cultural que o mundo da violência popular alcançou, bem casada com o mundo do desprezo antissocial que o grande dinheiro brasileiro tem pela própria vida popular, ele pode questionar a própria ordem democrática entre nós. Por si, Bolsonaro jamais teria força ou legitimidade, se um quadro de ambivalências e autoritarismo generalizado não o concebesse como bom destino para a crise da democracia brasileira.

Muitos erraram e muitos trabalharam para que um candidato que põe em risco toda a nossa vida pública e civil possa ser percebido como uma alternativa normal na vida política. Jornais de todo o mundo, às dezenas, alertam para o óbvio risco civilizatório. Cidadãos democráticos de outros países estranham demais o caso do Brasil. Por definição, nenhuma força que ponha a democracia em risco pode ser considerada democrática. No Brasil de hoje, no Terra em Transe da vida popular autoritária atual, das religiões neopentecostais e suas alucinações político-teológicas e do mercado financeiro radical sem compromisso algum com a vida coletiva nacional, tornou-se democrática a opção por um político que sempre disse desprezar a própria democracia desde a raiz. No mesmo movimento, inventou-se a grave alucinação psicopolítica de que uma esquerda democrática civilizada é um risco radical ao país, em um discurso apaixonado e simétrico ao elogio do neofascismo, em favor da produção de poder para a extrema direita. Podemos perceber que o movimento autoritário e politicamente irracional que ameaça levar Bolsonaro ao governo do Brasil é bem mais amplo do que a linguagem crua e as opiniões políticas desclassificadas do deputado. Na luta política de verdades e de mentiras públicas para destruir e criminalizar o antigo governo eleito de esquerda no país, não há dúvida que o Brasil se degradou e rebaixou fortemente as próprias expectativas de civilização e de humanidade. O movimento político pró-Bolsonaro quer esconder esta verdade de si mesmo, mas não consegue.

Bolsonaro não é um personagem político especialmente hábil, ou culto, ou qualificado. Muito pelo contrário. Ele representou por muito tempo a voz bruta da desqualificação política. Da política do contrato social anulado. Do poder de rebaixar e de negar direitos ao outro – a vítima sacrificial, sem a mediação de palavras ou de acordos. Seu movimento político, seja dos seus baixos seguidores –homofóbicos, racistas, misóginos e anti-intelectuais –, seja dos homens do grande capital financeiro anti-humanista – que celebra o autoritarismo político a seu favor no país –, de um modo ou de outro também pensa como ele. É hora do direito à violência política direta de Estado no Brasil, que deve romper tratos e contratos sociais. É o que o ex-tenente sem pruridos pode garantir. Cada um dos apoiadores acredita sempre que a violência política será a seu favor.

No grau de gozo da irracionalidade a que o país chegou, não importa o que que dizem cientistas e historiadores, de Harvard, de Yale ou até mesmo do Brasil, economistas e cientistas políticos liberais ingleses, a revista The Economist. Não importa que todos esses digam não haver garantia de estabilidade política nem de mínima seriedade econômica diante de políticos autoritários como Bolsonaro, que chegam ao poder recusando os fundamentos da democracia. Para os amantes do deputado violento, nada mais importa. Talvez até se deseje mesmo, tanto nas ruas quanto nos grandes bancos dos milionários do Brasil, a ditadura medíocre e conservadora na qual sua eleição ameaça lançar o país para a duplicação do escândalo mundial moderno e contemporâneo sobre quem de fato somos.

O ex-tenente, o deputado indecoroso da extrema direita brasileira, não se explica por si mesmo. Ele é a face rebaixada de um movimento nacional mais amplo. Sua linguagem falha, que precisa ser escondida ao máximo do debate público, não diz nada de sério sobre suas opiniões arcaicas, suas ideias fixas, extemporâneas e extralegais. Ele nada sabe, e não se trata mesmo de saber, sobre a sua desconexão real de tudo o que diz respeito à vida no mundo complexo de hoje. Seu mundo, o da ordem autoritária, não é o mundo das palavras trabalhadas. Trata-se apenas de um baixo oficial do Exército Brasileiro sintonizado com a linha dura da ditadura dos anos de 1970 – um homem anormal e um “mau militar”, dizia sobre ele o general ditador Ernesto Geisel, em uma entrevista à Fundação Getúlio Vargas. Elegeu-se por sete mandatos seguidos apenas para manter os privilégios de anistia e de direitos especiais aos militares. Privilégios que foram por muito tempo um escândalo consentido de uma democracia que tinha que conviver com o bobo da corte, torturador e esboço de ditador. Uma sinalização e uma excitação perversa na cultura de que a ditadura dos anos de 1960 e 1970 nunca foi vencida pela democracia dos anos 1980 e 1990, se é que ela não se manteve inteiramente intocada no novo mundo dito democrático. Sobre todos os aspectos, Bolsonaro é o passado brasileiro que, de uma memória preservada e incômoda, se torna novamente vivo. Um pedaço de brasa que de novo pega fogo.

O filósofo Theodor Adorno, que viu a ascensão de Hitler, dizia que o nazismo não se explicava de nenhum modo apenas com história e economia. Para compreendê-lo, também era necessária a psicanálise. Bolsonaro é amplamente um relicto do passado brasileiro, um resto vivo de outro tempo – como meu pai, Aziz Ab’Sáber, dizia sobre a presença de cactos e linhas de pedra em lugares em que eles não deveriam estar, restos do passado natural que lhe permitiram reconstruir o clima e geografia do Brasil de dez ou doze mil anos atrás...

Bolsonaro é o nosso passado autoritário e profundo, anti-intelectual e anti-humanista, de um mundo nacional de fundação escravocrata originária. Tem a profundidade histórica de quinhentos anos no nosso caminho, no qual a democracia nunca passou de um grande mal-entendido, nas palavras irônicas de Sérgio Buarque de Holanda sobre nós.

Bolsonaro e sua horda de pequenos fascistas têm origem nos velhos Capitães do Mato brasileiros, os caçadores e carrascos de escravos, de grave memória, como dizia Caio Prado Jr.. São um extrato popular nacional que tem a violência como profissão contra a própria vida social, como disse bem o general golpista Hamilton Mourão, que o acompanha na chapa. As elites brasileiras de hoje, fracassadas econômica e culturalmente, o convocam para pôr ordem na sua própria vida besta.

O poder ridículo de hoje do ex-tenente, violento e desinformado, nos leva mesmo a uma hipótese sobre a história do Brasil: a de que capitães do mato e homens livres agregados do poder que constituíam a lógica e a vida da sociedade escravocrata brasileira eram seus sujeitos tanto quanto os verdadeiros donos da riqueza, sempre tão hiperconcentrada entre nós.

*Tales Ab'Saber é pscicanalista, autor de Em Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (2011), Dilma Rousseff e o ódio político (2015) e Michel Temer e o fascismo comum (2018).

Este artigo é parte do especial Por dentro da mente de Bolsonaro . Acompanhe ao longo da semana novos textos aqui .