Época cultura

José Miguel Wisnik visita Itabira para entender a relação da mineração com a obra de Drummond

O garimpo de Wisnik resultou no livro "Maquinação do mundo: Drummond e a mineração"
Operários extraem hematita do Pico do Cauê Foto: Arquivo Público Mineiro
Operários extraem hematita do Pico do Cauê Foto: Arquivo Público Mineiro
O poeta no Rio de Janeiro em 1984. Drummond criticou os efeitos da mineração em sua cidade Foto: Hipólito Pereira / Agência O Globo
O poeta no Rio de Janeiro em 1984. Drummond criticou os efeitos da mineração em sua cidade Foto: Hipólito Pereira / Agência O Globo

O ensaísta José Miguel Wisnik nunca se esqueceu daquele acontecimento, na vida de suas retinas tão fatigadas: no meio do caminho não tinha mais pedra nenhuma. O Pico do Cauê, em Itabira, em Minas Gerais, de onde saiu tanta “pedra de ferro, futuro aço do Brasil”, de acordo com a confidência do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), fora reduzido a uma cratera depois de décadas de mineração. Wisnik, que também é músico e deu muita aula sobre a poesia de Drummond na Universidade de São Paulo (USP), visitou Itabira — a cidadezinha no Quadrilátero Ferrífero mineiro onde o poeta nasceu — em julho de 2014. Não encontrou quase nenhuma daquelas paisagens itabiranas encravadas nos versos de Drummond. A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, cujo sino ressona no poema “Anoitecer” (musicado por Wisnik), desabou em 1970 — provavelmente em decorrência do uso de dinamites para extração de minério. A Fazenda do Pontal, onde Drummond passou a infância, virou um depósito de rejeitos da mineradora Vale S.A., antiga Companhia Vale do Rio Doce. A casa-sede da fazenda foi preservada, mas transposta para o alto de um morro graças a uma manobra de engenharia. Só sobrou o casarão dos Andrades, no centro, com suas janelas voltadas para o pico dilapidado.

“Eu imaginava chegar lá e ver morros escavados, danificados pela mineração, mas não essa subversão radical da paisagem como consequência da exploração mineradora e com efeitos fortes sobre símbolos muito caros à lírica de Drummond”, disse Wisnik numa conversa com ÉPOCA em sua casa, com vista para o nublado paulistano. “Nada por antecipação me avisou daquela mudança na paisagem e de como ela afeta a simbologia de uma poesia que é lírica e de alta potência sócio-histórica.” O desaparecimento dos cartões-postais poéticos de Itabira o levou a perceber que a mineração não apenas consumiu a paisagem da cidadezinha, mas também ajudou a lapidar a lírica de um de nossos maiores poetas modernos. Wisnik se propôs a investigar a presença da mineração na obra de Drummond: nos poemas publicados ao longo da carreira e também em suas prosa de ficção e crônica jornalística — o poeta aproveitava seu espaço na imprensa para denunciar as consequências desastrosas da mineração em Itabira e repreender a Vale do Rio do Doce.

O garimpo de Wisnik resultou no livro Maquinação do mundo: Drummond e a mineração (Companhia das Letras, 328 páginas, R$ 64,90), publicado no fim de julho. No livro, Wisnik penetra surdamente no reino de Drummond para identificar as relações da poesia dele com os descaminhos da mineração em Itabira — que são um pouco os descaminhos do desenvolvimento brasileiro. “Houve um enfrentamento espantoso entre o maior poeta brasileiro e a mineração. Poucas vezes se viu, na história da literatura, um confronto como esse atuando tão concretamente”, disse Wisnik, que também sugere uma nova interpretação de “A máquina do mundo”, um dos poemas mais enigmáticos de Drummond.

Itabira na década de 1930 Foto: Arquivo Público Mineiro
Itabira na década de 1930 Foto: Arquivo Público Mineiro

O Pico do Cauê aparece pela primeira vez no poema “Itabira”, publicado no livro de estreia de Drummond, Alguma poesia , de 1930. “Cada um de nós tem seu pedaço no Pico do Cauê”, diz o primeiro verso. Naquela altura, todavia, os itabiranos não eram mais os donos do pico. No começo do século passado, ingleses e americanos correram para Itabira e compraram, a preço de banana, as terras de pequenos proprietários rurais para explorar as jazidas de ferro. No último verso de “Itabira”, aparece a suspeita de que a extração do minério de ferro não se converteria em riqueza para a cidade: “Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”. Assim como Tutu Caramujo — apelido de um comerciante decadente da infância de Drummond —, o poeta também desconfiava da derrota itabirana. Desde 1911, atuava na cidade a empresa anglo-americana Itabira Iron Ore Company, que tinha autorização do governo brasileiro para explorar e exportar o minério de ferro do Cauê. Repetia-se, ali em Itabira, um dos dilemas do desenvolvimento brasileiro: exportar matéria-prima ou consolidar a indústria nacional? As discussões sobre as minas itabiranas se estenderam por quase três décadas. Intelectuais próximos da esquerda e políticos e engenheiros nacionalistas pressionavam o governo para que livrasse o Cauê da gula estrangeira e desenvolvesse um projeto de siderurgia nacional.

Em agosto de 1939, Getulio Vargas rompeu o compromisso estatal com a Itabira Iron Ore Company. Um mês antes, Drummond publicara o poema “Confidência do itabirano”, no qual rememorava as “prendas diversas” trazidas de Minas. Entre elas, uma “pedra de ferro, futuro aço do Brasil”. Wisnik enxerga nesse verso uma tomada de posição do poeta em favor da siderurgia nacional. “‘Confidência do itabirano’ foi escrito numa situação política emergencial. O poema tem um aspecto programático, algo ufanista, que só pode ser entendido no contexto da luta daquele momento.” Wisnik lembra que a prenda de ferro desapareceu de edições posteriores do poema. “Não sabemos se foi erro tipográfico, mas me parece que foi porque a aposta na siderurgia nacional perdera vigência”, disse. Em 1942, Vargas criou a Companhia Vale do Rio Doce, para extrair o minério itabirano e exportá-lo para os aliados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. A indústria do aço, porém, continuou longe de Itabira. A Companhia Siderúrgica Nacional fora implantada em Volta Redonda e Barra Mansa, no sul fluminense, e a sede da Vale do Rio Doce ficou no Rio de Janeiro, manobra duramente criticada pelo poeta na imprensa.

A capa do novo livro de José Miguel Wisnik Foto: Divulgação
A capa do novo livro de José Miguel Wisnik Foto: Divulgação

Um dos últimos poemas mineradores de Drummond é “A montanha pulverizada”, publicado em 1973 no livro Menino antigo , segundo volume de Boitempo , a autobiografia poética do itabirano. No poema, o eu lírico vai à sacada e não encontra mais a serra, que acabou “Britada em bilhões de lascas/deslizando em correia transportadora/entupindo 150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas”. Drummond havia tido essa visão da montanha pulverizada em 1948, quando chegou a Itabira de táxi-aéreo. Do alto, ele contemplou a devastação do Pico do Cauê, dinamitado pela mineração. Visitou também o Sítio Mirador e viu a destruição das paisagens de sua infância pelas promessas de progresso. “Drummond foi espectador desse processo no qual a modernização comparece como ausência e sobrevém como catástrofe”, disse Wisnik, que suspeita que a visão do pico dinamitado colocou Drummond cara a cara com “A máquina do mundo”, título do poema publicado no ano seguinte. “A máquina do mundo”, referência a uma passagem de Os lusíadas , de Camões, quando a totalidade do Universo é revelada aos navegadores portugueses, foi lido pela crítica como um devaneio filosófico de Drummond. Wisnik arrisca uma leitura mais calcada nos traumas históricos: a “máquina do mundo” como o domínio técnico que tudo controla e tudo destrói. “Podemos olhar a ‘máquina do mundo’ como os dispositivos de exploração e dominação de tudo o que existe no mundo contemporâneo, das esferas subjetiva e objetiva. É essa grande máquina que se insinua em tudo o quanto há”, explicou.

No poema, o eu lírico recusa a “máquina do mundo” — assim como o poeta rejeitou e denunciou a modernização catastrófica trazida pela mineração. Em seus versos e na imprensa, Drummond jogava pedra na Vale do Rio Doce. Era tanta pedrada que a companhia resolveu revidar e, no dia 20 de novembro de 1970, estampou no jornal O Globo uma peça publicitária que dizia “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”, referência ao poema mais famoso de Drummond. No anúncio, a companhia se congratulava por “transformar pedras em lucros para a Nação”. Drummond recortou o jornal e guardou-o em seu arquivo pessoal, como se fosse mais uma das prendas diversas de Itabira.