Coluna
Márvio dos Anjos * Editor de Esportes de O Globo e Extra
Márvio dos Anjos Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Como convencer quem vota numa gargalhada?

Diante do capitão, o discurso da esquerda perdeu o humor. Enquanto isso, os cansados da política só querem rir do debate empobrecido dos partidos

Manifestação de apoio ao candidato Jair Bolsonaro realizada no último dia 7 de setembro, em frente ao Hospital Albert Einstein, em São Paulo - Nelson Almeida / AFP

A maioria das pessoas gosta de acreditar nas eleições como um processo puramente racional, e que seu voto é resultado de um debate de ideias. Bom, faz tempo que o marketing político descobriu que vender um candidato não é muito diferente de vender um carro. A ideia é criar sensações que abraçam o viés do eleitor, algo que supõe os anseios dele e entrega o que ele acha que quer. O eleitor médio não quer uma verdade difícil, complexa e aborrecida, sobretudo se ela confronta suas percepções de mundo. Entre muitas razões, há a mais cruel de todas: ele não tem tempo para isso.

Criar uma sensação requer inteligência sobre esse mercado. Nos tempos em que o Big Data nem era sonhado, um dos exemplos mais interessantes é a campanha do "Não" no plebiscito chileno de 1988, que decidiu abreviar o mandato do general Augusto Pinochet. Em contraste com o caráter sóbrio, quase lúgubre, da propaganda do "Sim" ao ditador, os articuladores do "Não" apostaram em cores e alegria, injetando esperança nos chilenos. Ganharam por 56% a 44% nos votos válidos. Esse show de imagens ocupou em boa parte o debate político dos anos 1990, chegando ao século XXI com alta qualidade cinematográfica em termos de roteiro, edição e, até mesmo, trilha sonora. Quem tinha espaço de TV e grana para produzir o programa tinha tudo.

As redes sociais, porém, revertem esse jogo. E parecem preferir o que é mais sloganizado e, de preferência, transformado em meme. Nesse jogo, o humor se torna peça-chave. Ridicularizam-se o adversário e a caricatura de eleitor que ele representa.

O jogo da zoeira já foi dominado pela esquerda, que respondia com inúmeros memes às críticas. Talvez a frase "Lula ladrão, roubou meu coração" sintetize essa batalha de mensagens telegráficas: a condenação por corrupção se transforma numa declaração de amor, num jogo de palavras que visa desprezar qualquer conversa séria sobre o tema. Votar era um grande bloco de Carnaval, que espalhava folia em meio à sisudez. Numa outra saída, havia o "humoralismo", com tiradas que soavam como humor, mas exalavam superioridade moral.

Eis que a direita bolsonarista se apropriou dessa estética e imprimiu nela um ritmo industrial. Recebo todos os dias memes e piadas sacaneando todo mundo que se opõe a Bolsonaro, de Marina a Lula. O próprio trocadilho "É melhor Jair se acostumando" tem uma função humorística inegável. Boas ou não, essas piadas cumprem o papel que antes pertencia à TV, por substituir o debate público, entreter e, ao mesmo tempo, entregar ao eleitor um raciocínio pronto, com o qual pode fingir que debate pelo simples ato de encaminhar. Dificilmente haverá caminho melhor que o humor para apresentar um ponto de vista de forma não só catártica quanto memorável -- mesmo que o argumento por baixo dele seja frouxo.

Diante do capitão, porém, o discurso da esquerda perdeu completamente o humor. Confrontadas com os números de Bolsonaro no Ibope e no Datafolha, as manifestações daquele flanco agora oscilam do silêncio respeitoso ao alarme, passando por sermões. Na vasta matéria-prima que Bolsonaro representa, por seus modos de falar e sua declarada ignorância em economia e noutros temas, pouquíssimas piadas surgem. A imitação de Marcelo Adnet para O Globo é talvez um dos raros momentos em que os eleitores puderam rir de Bolsonaro. Da esquerda, só Boulos demonstrou alguma verve para tiradas - a melhor delas, registre-se, foi quando disse "não vou chamar o Meirelles, vou taxar o Meirelles". Só que Meirelles nem chega aos 5% de intenção de voto.

Fazer humor é assumir o risco de ofender, porque envolve a manipulação de uma tensão, envolve caricaturar. O eleitor de Bolsonaro gosta disso, porque o representa em seu desprezo por todo o espectro partidário. Já o eleitor de esquerda se vê sem representação nesse campo. Claro que ajuda o fato de Bolsonaro ser uma espécie de granada lançada pelos impacientes com a política, mas também pesa a difícil relação que a esquerda contemporânea tem com o humor. Seu ativismo digital se especializou em patrulhar discursos de zombaria e escárnio, sinalizando histericamente contra qualquer tipo de linguagem de algum potencial ofensivo, por menor que fosse. No caminho, desaprendeu a entreter quem está fora de sua bolha, e há indecisos por aí.

Não sei se o humor vai salvar o mundo, mas é preciso reconhecer que a campanha mudou de dinâmica e que é preciso disputar a arena das redes com mais do que vídeos bonitinhos. As imagens épicas de comícios e de gente humilde no paraíso, que funcionavam tão bem na TV, perderam o efeito. Nas redes sociais, os cansados da política estão determinados a rir de um debate empobrecido pelos próprios partidos. O desafio do marketing político agora é o pior possível: como convencer quem vota numa gargalhada?

Aparentemente, a resposta escolhida é o medo -- um dos "três impulsos que levam as pessoas à guerra", segundo o historiador grego Tucídides. O maior exemplo disso foi a pressão virtual sobre a popstar Anitta, que viu seus fãs LGBT constrangê-la a fim de que repudiasse Bolsonaro publicamente. A enquadrada virou trending topic mundial. Anitta se recusou. Em algum hospital de São Paulo, alguém riu por último.

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